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bner desde quase sempre se julgou um
predestinado, com forças ocultas livrando-o das fatalidades e
proporcionando-lhe agradáveis aventuras.
Tudo começou quando
tinha três anos e ele se escondeu debaixo de um carro Passat, importado do
Iraque, pensando ser aquele o veículo de seu pai. Não era. Quando o motorista
arrancou com o carro, por pouco muito pouco ele não partiu dessa, batendo a caçuleta. Aos cinco anos,
aconteceu uma nova aventura de carro, com Abner e seu pai. Estavam indo para
uma pescaria, justo quando um carro com as mesmas características tinha sido usado
num assalto.
A polícia, passando
junto ao Passat do pai de Abner, começou a atirar, com a intenção de fazer as
perguntas depois. Foi quando um dos milicos viu a criança e ordenou aos colegas
para suspenderem o tiroteio:
- Pelotão, este não é
o veículo do assalto! Vejam: tem uma criança no banco!
Aos oito anos, Abner
caiu num canal, cheio por causa da chuva. Ele não sabia nadar, mas exercitara
prender a respiração. Por isso, conseguiu chegar ao outro lado, caminhando por
baixo d’água.
Aos dezoito, foi para
São Paulo em busca de estudo e trabalho. Quando completou dezenove anos,
começou a namorar uma menina da comunidade chamada Terebentina.
Certa noite, foi ela
quem chamou Abner para ir até sua casa para roçar
a pitoca, já que seus pais estariam fora. Acontece que eles voltaram logo,
quase pegando o aventureiro com as calças nas mãos. Ele comeu brocha, tendo que se esconder no guarda-roupa, pois o pai intimou:
- Filhinha, por que
você trancou a porta do seu quarto? Trate de abrir logo.
O tempo passou, sem
que o perigo desanuviasse. O garoto acabou caindo no sono, sendo acordado já de
madrugada.
- Pode sair, meu bem,
pois a ameaça já passou.
No dia seguinte Abner
ficou sabendo que o paizinho de Terebentina, conhecido como Alagoano, era o
chefão do tráfego na região e que, por um nada, mandava matar seus desafetos.
Como o rapaz era esperto, tratou de voltar para o torrão natal, que não ficava
no Rio Grande do Norte, mas em Pernambuco.
Depois de Terebentina,
Abner contabilizou mais quarenta e cinco namoradas, arriando os pneus pra todas elas. Entre uma e outra, ou no meio
delas, arranjava tempo para aventuras, como a de frequentar uma praia de
nudismo na Paraíba, a praia de Tambaba. Foi lá que foi surpreendido por uma
colega muito apetrechada e que trabalhava
com ele numa concessionária de automóveis.
Constrangido pelo
flagrante e pelo estado precário em que se encontrava, falou:
- Não pense que a
coisa é do jeito que está vendo, não. Sou muito ajegado, mas estou assim por causa do frio.
Depois que ele me
contou o caso, durante uma viagem de passeio, estando agora trabalhando na área
de turismo, percebi que aquela era uma desculpa bem esfarrapada, já que frio
não é coisa que aconteça pr’aquelas bandas.
Muito mais ele
contou, já que era cheio de leriado,
com uma língua pra lá de trelosa, fazendo
com o tempo passasse rápido, embora as informações culturais viessem em
conta-gotas, enquanto as bobagens vinham de montão.
Só mais um caso, para
acabar com tanta aresia.
Estava se preparando
para o vestibular, quando recebeu uma proposta de Adalisa, uma conhecida:
- Se você passar no
vestibular, eu lhe dou de presente minha virgindade.
Um ano se passou, sem
que se encontrassem. Certo dia, ela bateu em sua porta:
- Vim pagar a
promessa.
Depois, ficaram um
bom tempo sem se ver. Quando Abner viu Adalisa novamente, ela foi logo
falando:
- Estou namorando
firme. E tem mais: meu namorado dá de dez a zero em você.
Abner ficou tabacudo ao ouvir aquilo, julgou um
absurdo aquelas palavras. Aquela moça era uma má agradecida, não reconhecendo
seu trabalho de desbravador, tendo que derrubar matas, enfrentando toda espécie
de perigo. Ela estava agindo como o povo, que não reconhece o trabalho árduo de
um político que cuida das obras de infraestrutura, que só dá valor àqueles que
constroem praças e viadutos.
Se aveche não, Abner, que o ser humano é
assim mesmo: não sabe dar valor àqueles que merecem, enquanto é xeleléu de canalhas e medíocres. Pode
ter certeza que se você fosse um papel de
enrolar prego ou um pirangueiro, Adalisa não seria de tanto saimento.
Glossário:
* Potoca = conversa sem importância
* Cão chupando manga = o bom, o cara que
sabe tudo, o tal
* Batendo a caçuleta = morrendo
*Roçar a pitoca = tirar um sarro
* Comeu brocha = passou por apuros
* arriando os pneus = apaixonando-se
* Apetrechada = dotada de beleza física
* Ajegado = bem dotado
* Cheio de leriado = conversador
* Trelosa = que fala besteira
* Aresia = conversa besta, sem sentido, fundamento
* Tabacudo = abestalhado, abilolado
* Aveche = preocupe
* Xeleléu = puxa-saco
* Papel de enrolar prego = pessoa grosseira
* Pirangueiro = sujeito pão-duro, avarento
* Saimento = atrevimento
Etelvaldo Vieira de
Melo
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