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Imagem: infobibos.com |
Palavras de Ingenaldo:
No princípio dessa embrulhada toda, que é a vida do
ser humano na Terra, um animal, um réptil, foi destaque, alcançando o topo da
parada de sucesso: a serpente (a propósito, um adivinha que acabo de inventar: qual
o réptil que queria ser passado na cabeça de homem com cabelo?). Segundo o
relato bíblico, foi ela que induziu a primeira mulher a comer do fruto
proibido. Como consequência, todo mundo sabe: o paraíso foi perdido, foi pras
cucuias, e o homem teve que comer do pão que o diabo amassou com o rabo, isto
é, foi inventado o trabalho, essa coisa horrorosa que aflige a humanidade, esse
eterno castigo de Sísifo, de empurrar uma pedra morro acima.
Se não me falha a memória por tantos quilômetros
rodados, prometeu o Senhor Deus que uma “outra mulher” haveria de esmagar a
cabeça da serpente. Não é isso que está registrado nos anais bíblicos?
Pois bem, o tempo passou, ou a humanidade passou
diante do tempo, até que, no início do século XXI da era cristã, em certo país
da América do Sul, aconteceu um ferrenho debate envolvendo uma subespécie desse
ofídio, a jararaca, e que, pelas proporções do bate-boca, deveria ter cedido o
destaque do desfile para sua parente mais avantajada, a surucucu ou
surucutinga.
O que anda acontecendo é que uma parcela
significativa da população do país desandou a alimentar hostilidade para com um
partido político, encastelado no poder, e – em especial – contra a figura de um
ex-presidente da coisa pública. A artilharia pesada de ofensas mútuas se
espalhou das trincheiras das grande, média e nanica imprensas para a Internet e
suas redes sociais.
De minha parte, devo dizer que não vejo nenhum
santo ou beato nessa história; não chego a colocar minha mão no fogo pra
ninguém, nem mesmo estando usando uma luva térmica, dessas de 1 e 99,
importadas da China. Entretanto, prezo a verdade e defendo a justiça.
Quando o ex-presidente foi intimado a depor, de
forma coercitiva, junto aos responsáveis por uma operação (Lava-Jato? Lava a
Jato?), ele saiu “cuspindo marimbondo”, soltando palavrões e dizendo que haviam
“acertado o rabo da jararaca, mas não a mataram”. Logo, pensei com meus botões:
“Preciso pedir ao Instituto Butantan a criação de uma vacina dupla, que me
livre do mosquito da dengue e da picada de jararaca”.
Dois dias depois desse notável acontecimento, e que
chegou a chamar atenção de pessoas desatentas como eu, um alto prelado da
Igreja Católica, em homilia, isto é, no sermão que é feito durante uma missa,
onde muitos assistentes aproveitam para dar um cochilo, disse, candidamente,
sem transparecer nenhuma sombra de maldade: “Peça, meu irmão e minha irmã, a
graça de pisar a cabeça da serpente... daqueles que se autodenominam
jararacas...”
De tudo por tudo, eu me pergunto quais os
fundamentos científicos, racionais e de bom senso para tudo isso que acontece e
que irá acarretar desdobramentos (ameaçadores - pra todos os lados em que a
gente apontar o nariz).
Cuidando da semântica e da morfologia, sem cutucar
a jararaca com vara curta, vejo que:
- A incumbência de esmagar a cabeça da serpente foi
dada a determinada mulher; ou seja: não é tarefa de nenhuma “minha irmã” e,
muito menos, de nenhum “meu irmão”.
- O termo “jararaca” se presta a diferentes
leituras. Entre elas, está a de designar alguém “linguarudo”, falastrão, que
“fala pelos cotovelos”. Este sentido está expresso na música que diz: “Que
mulher danada essa que eu arranjei / Ela é uma jararaca, meu Deus / Com ela eu
me casei / Quando está desesperada, fala, fala pra chuchu / E, quando abre a
matraca, logo vem o sururu...”. Neste
sentido, o termo se assemelha ao de “cachorro que late, mas não morde”.
- A jararaca não é o tipo de serpente que
frequentou os jardins do Éden, já que é nativa da América do Sul, e o
continente nem havia sido descoberto naqueles tempos de antigamente.
- Nesta história em que a jararaca é execrada por
uns, por ser réptil peçonhento, merece consideração o fato de que seu veneno é
responsável pela fabricação de um dos mais utilizados medicamentos para
hipertensão, o Captopril. Por isso, antes de matar a cobra e mostrar o pau, é
preciso considerar que a preservação da espécie tem suas conveniências.
- Uma jararaca tem como pratos preferidos sapos e
ratos. Pra gente que vive engolindo sapos, é sempre bom poder contar com o
adjutório de uma cobra. Quantos aos ratos, seria uma boa sugestão pedir ao
referido Instituto Butantan providenciar uma remessa de jararacas para serem
transportadas para Brasília. Fiquei sabendo que a capital federal está
infestada de ratos e ratazanas.
- Esta consideração anterior me leva a questionar a
descrição que o ex-presidente faz de si mesmo, como se ele fosse uma jararaca.
Eu não sei, só pergunto: é mesmo?
- Em nome da verdade, vejo que ele passou dos
limites com seu linguajar, exacerbou ainda mais o clima de tensão em que o país
está mergulhado.
- Considero que o prelado, no alto de sua
sapiência, enfiou os pés pelas mãos, sem medir o alcance de suas palavras.
Depois, falou que não era sua intenção usar aqueles termos, mas que foram bem
empregados. Quer dizer: não quis assumir plenamente o que disse, subiu em cima
do muro.
O que necessitamos é de bom senso, racionalidade,
cuidado com o bem comum. Muitas pessoas públicas e de influência parece que não
se dão conta dos riscos do sectarismo, do fanatismo religioso ou ideológico. Se
atentassem para a sabedoria popular, haveriam de aprender de ditados que
ensinam: * “quem com ferro fere, com ferro será ferido”; *
“quem semeia vento, colhe tempestade”; * “em boca fechada não entra mosquito”, e assim vai.
De minha parte, poderia recorrer a outro dito: “em
poço que tem piranha, macaco esperto bebe água de canudinho”; ou um outro ainda
mais grave: “quem fala demais dá bom dia a cavalo”. Mas quem me mandou ter a
língua trelosa?
Etelvaldo Vieira de Melo