|
Imagem: coisasdecajazeiras.com.br |
Para Geraldo Felix
Peço
suas desculpas se tenho uma conversa difícil para um pronto entendimento. É
que, entre outros senões, venho lá das beiradas de mato, lugar afastado,
desrruado.
Foi
lá que nasci, numa casinha sequinha, coitada, de adobe e taipa, bambus
trançados.
Para
entrar na casa, gente grande tinha que encolher a cabeça, que a porta era
estreita e baixa.
Os
cômodos davam quatro: o quarto de pais e o da meninada, cozinha e a sala; tudo
de chão batido onde, de vez em quando, era preciso aspergir água pra acalmar a
poeira.
Na
sala, tinha um jogo de quatro cadeiras, em volta de uma mesa retangular,
geralmente coberta com um forro de linho. Uma jarra com flores decorava o
cenário.
Na
parede sobre o portal que levava para a cozinha, havia o quadro do Sagrado
Coração de Jesus, com a frase: “Deus abençoe este lar”. Na outra lateral, tinha
um retrato de meus avós paternos, José Marcelino e Maria Ângela. Eles
aparentavam ar sério e um pouco assustado.
Vira
e mexe, ainda hoje, tenho sonhos com vô que, pra dizer a verdade, nem conheci
em vida, mas cuja braveza era cantada e decantada por pai. Nos pesadelos, vô
Marcelino me pega pela orelha e, rindo, pergunta:
-
Sua orelha tem sebo?
-
Tem? Então, tiremos, tiremos.
-
Sua orelha tem sebo?
- Não? Então, pusemos, pusemos.
A cozinha apresentava, num canto, um
fogão à lenha; ao lado, ficava uma mesa comprida de madeira bruta, cercada de
tamboretes. No lado oposto ao fogão, sobre uma cantoneira, havia uma bilha com
água para beber; ao seu lado, um toco fincado no chão e, sobre ele, um moinho
de café.
A porta da sala dava para um terreiro.
A fim de evitar a entrada de cachorros e galinhas, meu pai achou por bem
colocar ali uma cancela. Era feita de varas de bambu e estava presa no portal
com solado de couro.
Ao lado da casa, de comprido, tinha um
jardim, onde mãe plantava malvas, rosas, beijos, onze horas, trevos. Aquele
jardim dava uma cor especial à paisagem.
Naquela casa, durante a semana, a
gente, mesmo as crianças, não tinha hora pra preguiça e não ter o que fazer.
Nem bem o dia amanhecia, e cada um ia pro seu mister, tudo conforme as estações
e as condições do tempo.
O fim de semana ficava por conta de
vencer a ignorância e salvar a alma. Era quando pai cobrava os deveres
escolares, e a gente ia pra igrejinha do povoado pra missa dominical.
Deste modo, e ali, naquela casa de
adobe, nasci e passei a minha infância. Tudo com muita dificuldade. Mesmo
assim, olhando pro passado, diante da falta de quase tudo, vejo que o pouco que
tive sempre me pareceu muito. De resto, aprendi que não importava o resto, que
era quase tudo. E aquela casinha de taipa, construída num remanso de mata, também
tinha nome de felicidade.
Agora, vem você me perguntar se eu
tivesse continuado a quebrar cocos, arear as fivelas de arreio pro meu pai, a
engraxar sapatos e polir botas lá na vila, se assim eu seria mais ou menos
infeliz.
Tal pergunta requer dois tipos de
consideração. A primeira vem com o estudo, com os tempos de escola. Veja você
que a pergunta é feita no futuro do pretérito. O futuro do pretérito é tão
imperfeito... não é pretérito e nem futuro! Sempre condicional, nunca
afirmativo! Parece um tempo verbal para mesuras, tempo de rever, não de reter.
Ele não retém nada com ele. Tudo escorre por entre os dedos!
A pergunta também fala como se
houvesse uma sina, um destino. Ora, destino é destino, a gente decide a cada
dia, em cada encruzilhada. O que muitos não atentam é que a escolha de hoje
conformará o amanhã. Assim, a agulha puxa a linha e a linha puxa a agulha e a
mão dá o ponto.
No crescimento, há as deficiências e
os excessos. E muitos não têm a sorte de ver onde cortar e onde crescer.
Qual o tamanho da felicidade? Qual a
sua medida?
Ah, essa tal felicidade! Trata-se de
miragem ou sonho possível? É ela o objetivo primordial do ser humano? Se for,
parece que estamos, a exemplo de Sísifo e em última análise, condenados ao
fracasso.
O capitalismo, esse sistema que está
aí e dita as regras do jogo, diz que, na essência, tudo pode ser reduzido a
números, números, por exemplo, que expressam os valores de um saldo bancário.
Pela minha formação e pela minha maneira de ver a vida, creio que as coisas não
são bem assim. Mais do que nas conquistas e na posse de bens, a vida se
justifica pela realização de sonhos... sonhos de felicidade. Foi assim na minha
infância! Foi isso que permitiu ao rio da aldeia de Fernando Pessoa se tornar
mais importante do que o Tejo. É isso que me permite dizer também que a vida de
pai, José Raimundo, lá de União de Caeté, fez mais sentido e foi mais completa
do que a de um banqueiro de Wall Street. Porque não importa o que você faz, mas
a maneira como você faz. E o poeta, sapateiro e arreeiro Zé Raimundo – nas
horas vagas, escrevedor de discurso, farmacêutico e juiz de paz – sempre
temperou sua vida com paixão e amor.
Querendo ir até o limite possível de
entendimento, vejo que dois termos, felicidade e liberdade, têm raízes ou radicais diferentes (felic e liber), mas um mesmo sufixo (idade). Para mim, querem dizer: é preciso “líber” para
ser “felici”.
Quando se pergunta qual a maior ameaça
à felicidade, muitos irão responder: a perda da liberdade. Faz todo sentido.
Porque nada incomoda mais o ser humano do que ser ameaçado em sua liberdade.
Pior do que isso só a morte. Os presídios estão aí para não me deixarem mentir.
O ser humano nasceu para ser livre;
sua história é o relato de todo o seu esforço em romper as amarras que
dificultam sua liberdade, a começar pelo corte do cordão umbilical. Deste modo,
quanto mais livre, mais feliz uma pessoa pode ser (apesar dos riscos e da
“loucura” que a liberdade pode representar). É por isso que, olhando para as
pessoas hoje, muitas são profundamente infelizes, seja por permitirem aos
outras a posse e o direito de decidir sobre suas vidas, seja por estarem
esmagadas ao peso de bens que lhes impedem a leveza para poder voar... ser
livre... ser feliz.
Etelvaldo Vieira de Melo