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Este é um texto limpo, sem misturador
de voz.
Estava
achando o Eleutério muito esquisito, de pouca conversa, ele que tinha a língua
sempre trelosa. Alguns conhecidos comuns falavam mesmo que ele estava muito
arredio, parece que evitando fazer novas amizades. Como o tenho na conta de
amigo, pedi-lhe uma explicação. Eleutério apresentou a seguinte desculpa:
-
Sei que não faz diferença eu falar isso, mas, lá em casa, sou eu quem anda
latindo no quintal, para economizar energia do cachorro e, assim, gastar menos
ração.
-
Mas o que sucede? A recessão bateu à sua porta?
-
Não faz ideia. Sei que não faz diferença dizer, mas me sinto como alguém que
está no meio de uma lagoa, com as mãos amarradas às costas. Estou na ponta dos
pés, com água até o queixo. Vejo que na margem tem um pé de jaca, com aquelas
frutonas maduradas. Se uma delas cair na lagoa vai ser suficiente para me
afogar.
-
Nossa! Pelo que você descreve, a situação está mesmo brava. Então, é esse o
motivo de andar borocoxô?
-
Como bem disse o poeta Raimundo Correia, as pessoas só enxergam a máscara da
face. Fazem juízos superficiais e falsos. Mas falar disso também não faz
diferença.
-
Tem algum outro exemplo para ilustrar essa sua tese? – quis saber.
-
Como você sabe – e isso poderia fazer diferença, mas não faz - andei
frequentando um curso de redação. Quando faltava à aula, uma colega enviava
mensagem, dizendo: “Seu silêncio fez falta”. Eu ficava quase sempre calado
durante as aulas, demonstrando atenção para com os colegas. Acontece que o silêncio
era por causa de uma perda auditiva que não me deixava entender as falas, e a
atenção era para ver se entendia alguma coisa através da leitura labial.
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Mas essa sua surdez não justifica seu ar de poucos amigos...
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Mas você não sabe? Não sei se vai fazer alguma diferença, mas o fato é que
estou casando minha filha. O número de convidados já está estourando a cota
máxima. Daí eu estar me sentindo como que amarrado numa lagoa, até proibido
pela família de fazer novas amizades. Isso justifica meu ar arredio e de pouca
conversa.
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Citando Maiakóvski, você já disse que viver é fácil, morrer é difícil, enterrar
pode ser difícil.
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Acrescente, se fizer diferença: casar, hoje em dia, está mais do que difícil.
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Uma última coisa, Eleutério: por que essa mania de usar expressões como “sei
que não faz diferença”, “se fizer diferença”...?
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Eu sei que não faz diferença; como diria o Chico, o Buarque, nesse país só uma
emissora de TV faz a diferença. Acho que peguei esse cacoete ar ler tanta
notícia de corrupção. Apesar das denúncias e das provas, fica tudo do mesmo
tamanho, quer dizer: não faz diferença. Parece que a “justiça” nesse país só
funciona à base de delações e suposições. Não adianta apresentar conversas,
telefonemas, gravações e malas abarrotadas de dinheiro. Agora, juntando surdez,
falta de dinheiro, corrupção, roubo, safadeza, falta de vergonha na cara,
acordos espúrios, justiça seletiva, você quer o quê? Dá pra fazer diferença?
Etelvaldo Vieira de Melo