LEMBRANÇAS DE VIAGEM (VOLUME 5): NA BICHA DO OUTLET

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Você não sabe, mas já houve tempo em que não havia hipertensão, colesterol, bullying, transtorno bipolar, onde o Alzheimer, no máximo, era tratado como caduquice. Bom tempo aquele, onde não havia escrúpulos para refrear o consumo de uma feijoada bem suculenta, daquelas de deixar a gente lambendo os dedos para, depois, sair trôpego à procura de um lugar onde esticar o corpo e cair numa santa hibernação.
Você não sabe, mas já houve tempo em que não havia outlet, mas umas chamadas pontas-de-estoque, geralmente tratadas com menosprezo. Veja este diálogo:
- Aonde você vai? – pergunta o curioso.
- Vou até uma ponta-de-estoque fazer umas garimpagens.
- Coitado! Que pobreza!
De repente, com o país tomado de vez pelo estrangeirismo, surgiu o tal do outlet, nome de muito charme. Aí, as reações mudaram, a sabiá mudou de cantiga. Veja este diálogo:
- Aonde você vai? – pergunta o curioso.
- Vou fazer compras num outlet.
- Que chique! Muito bacana!
No passeio a Portugal não podia faltar, especialmente na agenda de Deusarina Rebelada, uma visita a um tal de Freeport Lisboa Fashion Outlet, tido como o maior centro de compras multimarcas da Europa. Ele fica situado a 30 minutos de Lisboa, em Alcochete, com passagem por uma imensa ponte, chamada Vasco da Gama (a mais comprida ponte da Europa, num total de 12.345 metros). Até mesmo Genésia Solaris, arredia a gastar seus euros, ficou entusiasmada. Somente Eleutério, adotando aquela filosofia de Shakespeare, que dizia não esperar nada de nada para não se decepcionar, resolveu – como se diz – “pagar para ver”, isto é, não alimentou grandes ilusões.
Nem bem cinco minutos de circulação pelas lojas foram suficientes para que o desencanto fosse geral: o tal outlet talvez fosse bom... para os padrões europeus. Já para os brasileiros medianos, era tudo absurdamente caro. Conclusão: voltaram para Lisboa com “o rabo entre as pernas”, no maior borocoxô.
Já era tarde, quase 21 horas, quando foram para a paragem (ponto do autocarro, ônibus). Havia algumas pessoas ali, umas três sentadas num banco da guarita e umas três em pé. Tal número foi aumentando, aumentando, o tempo foi passando e nada do autocarro aparecer. Quando ele despontou, quase todos correram para entrar (é preciso inocentar alguns japoneses, que permaneceram quietos, resistindo estoicamente ao desejo de também correr).
No afã de entrar e fazer valer seu direito de ser da “melhor idade”, Eleutério passou à frente de todos e se posicionou frente ao motorista. Este chegou a achar que ele fosse o primeiro da fila. Quando ficou sabendo que havia outros à frente, disse:
- Estamos em Portugal e aqui prevalece o critério da fila. Se no seu país existe prioridade para os mais velhos, aqui isso não vale (já que aqui quase todo mundo é velho, deu a entender); o que vale é a fila.
Eleutério, que a esta altura havia arrastado Percilina Predillecta para junto de si, teve que ficar no meio do corredor, aguardando sua vez de pagar a passagem e ter lugar a um assento.
No entanto, a balbúrdia estava estabelecida, uma discussão danada, com o motorista tendo dificuldade em fazer valer seu moral:
- Aqui mando eu – falou irritado para um senhor que ousava contestá-lo – Se não obedecerem à fila, não partiremos daqui.
A situação era dramática, veja você. Do ponto de vista de Eleutério, era preciso considerar: 1) a ida ao tal outlet tinha sido um fracasso; 2) estava fazendo um frio danado; 3) se perdessem o autocarro, não havia perspectiva de um próximo; 4) julgava que era seu direito fazer valer sua condição de “melhor idade”; 5) não compreendia como aquelas pessoas que estavam sentadas num banco da guarita tivessem direito de estar à frente (se quisessem ficar à frente, que se posicionassem de pé desde o princípio).
Só mais tarde é que Eleutério se deu conta que a fila para o português é mais de ordem moral do que física. Naquele momento de desespero, ele não entendeu nada: fez valer sua condição de brasileiro e foi atropelando tudo, num salve-se quem puder. Ao final, acabou levando reprimendas de Percilina e de Deusarina. No entanto, é preciso dizer que todos acabaram se acomodando (até mesmo os japas), o que fez o motô partir contente por ter mantido o critério da fila.
Falando em fila, só mais um registro. Ele me é repassado por um amigo que, por coincidência, se chama Etevaldo. Ele é baiano. Quando leu a crônica “Todo respeito com a bicha”, teve o cuidado de fazer este comentário:
- Xará. Acho que faltou citar a fila mais interessante que já vi, muito utilizada pelos baianos. Eles ficam bem relaxados, sentados onde tiver lugar, enquanto seus chinelos, tênis, sapatos estão na fila bem organizadinhos, guardando o lugar de cada um. Já viu essa?
Está aí uma boa sugestão de fila para os portugueses, ora pois. Para evitar que os chinelos sejam confundidos, eles podem ser amarrados com fitinhas do Senhor do Bonfim, a exemplo das fitas coloridas das malas nos aeroportos. Valeu, xará.
Etelvaldo Vieira de Melo

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