DECISÃO DE PARTIR

Tânia Maria Gonçalves Moreira é mineira de Belo Horizonte. Artista plástica, dedica-se também, paralelamente, a pesquisas nas áreas de História do Brasil, História Geral e História da Arte. Ingressa atualmente na literatura, trabalhando em seu primeiro livro, um romance histórico. Abaixo, o capítulo X.
Constance caminhou até o quarto, devagar, a apoiar-se nos móveis. Deixou-se cair ao leito e ali ficou por toda a noite, olhos fechados, imóvel. Mal respirava, presa do horror que a paralisava. Sequer ouviu o alarido dos filhos que chegavam da casa do Ventura.
Na manhã seguinte José Galdino encontrou-a meio inconsciente, a balbuciar palavras sem sentido. Assustado, tomou-lhe o pulso, buscou indícios de enfermidade, mas nada encontrou que justificasse aquele estado em que mergulhara a mulher.
Consternado, chamou por Coaraci para que cuidasse da esposa. A índia reclinou-a em travesseiros, recompôs-lhe as roupas. Mais tarde levou-lhe uma tigela de mingau.
No dia seguinte, Constance deixou o leito e caminhou até a sala, amparada pela índia. Emerenciana acomodou-a na cadeira de braços e sentou-se a seu lado, angustiada. Ali ficaram por toda a manhã, a menina a bordar e a mãe a olhar para algum lugar perdido na parede.    
Passavam-se os dias e Constance não apresentava melhora, perdida em uma ausência que não tinha fim.
O marido desesperava-se.
“Que hei de fazer, ó Senhor? Tende misericórdia!”, implorava ele, com o coração oprimido pela tristeza. “Trazei-me de volta a minha Constance... Trazei-a, Senhor, para mim e para os filhos!”.
Todas as noites, ao deitar-se, abraçava a esposa com amor e acolhia-a ao peito. Retinha-a junto a si.
Certa vez, ouviu-a murmurar: 
“A casa de meu pai!... Quero voltar... para a casa de meu pai!...”
Galdino surpreendeu-se. Há dias não dava a esposa sinal de entendimento. Voltou-se para ela e viu-lhe os olhos marejados de lágrimas.
“Quero voltar... para a casa de meu pai!...”.
Acariciou o rosto da esposa e respondeu-lhe que sim, que a levaria de volta, para a casa de seu pai. 
Mas disse apenas para confortá-la. Na verdade, ponderou, decisão daquela monta não era de tomar-se assim, de momento. Não lhe parecia fácil deitar por terra tudo o que construíra em tantos anos de trabalho. E, ademais, tinha ainda fé em que a mulher se restabeleceria.      
Na manhã seguinte, na sala, Constance voltou-se para Emerenciana e disse-lhe, com um fio de voz:
“Filha!... Ó filha!... Segura minha mão... que tenho medo!...”.
Emerenciana surpreendeu-se ao ouvir a mãe. Tomou-lhe as mãos entre as suas e dirigiu-lhe algumas palavras. Mas Constance distanciou o olhar e novamente quedou-se em seu triste silêncio.
Nos dias que se seguiram José Galdino, amargurado, ouviu a esposa pedir-lhe outras vezes que a levasse de volta à casa do pai. E nada mais dizia ela que lhe desse alguma esperança de vê-la de volta a seus afazeres, a sorrir, a conversar. De volta à vida, enfim.
Constance delirava. Vagueava por ruas e igrejas, entre as paredes rosadas de sua cidade. Atravessava antigos portais, perdia-se em escuras florestas. Aparecia-lhe a mãe, em gestos, a chamá-la. Rodeavam-na, a dançar, os cântaros do pai. Sorria. Chorava.
Pedro e Henrique passavam horas a seu lado, na esperança de ouvi-la dizer-lhes alguma palavra ou de receber dela algum afago. Mas Constance seguia distanciada, com o olhar perdido em algum ponto da parede, alheia a tudo o que a cercava.
Emerenciana desvelava-se em cuidados com a mãe. Vestia-a, penteava-a, tomava-lhe as mãos com ternura. Porém, mais passava o tempo mais esmorecia a menina.
Ia, enfim, a amargurar-se toda a família.  E a casa a desleixar-se, sem o cuidado de Constance. 
José Galdino entrou a perder o juízo. Já não conseguia firmar uma tala, prescrever um xarope. Tremiam-lhe as mãos, embotava-se-lhe o cérebro. Estava a vencê-lo o desespero!
Certa noite, a esposa a dormir, encontrou entre suas mãos uma carta. Era de Michel. Trazia-a Constance guardada há alguns anos, dois ou três. Observou o rosto da esposa, pálido e emagrecido, um rastro de sofrimento a perpassar-lhe as feições ainda um pouco contraídas.
Tomou-lhe a carta das mãos com cuidado, sentou-se ao pé da cama e, com a cabeça entre as mãos, chorou.
Já não era mais possível prolongar aquele estado de coisas! Não era mais possível!... O que poderia importar a ele, agora, além de ter sua Constance de volta? 
Com o coração confrangido, consumido pela dor, decidiu que a levaria de volta a Toulouse, para a casa de Michel Fleuret.
As linhas da sua vida desenhavam-se novamente em curva, refletiu, amargurado. Mas desta vez já não era ele o rapaz esperançoso que anos atrás aventurara-se, quase às cegas, em uma empreitada desconhecida. Era agora um homem, desolado, sem certezas, curvado pelo destino.
Lembrou-se dos dias em que ali chegara. Era feliz, apesar dos desafios, dos imprevistos que lhe atravessaram o caminho. Mas o amor de sua família sustentara-lhe a felicidade!... A amizade do Manuel!...
Naquele desalento, lembrou-se do amigo. Era preciso participar a ele a decisão.
“Ademais,” pensou, “uma palavra do Manuel há decerto de trazer-me algum conforto, nesse momento... Vou ter com ele amanhã!”.
Deitou-se ao lado de Constance, afagou-lhe os cabelos com carinho e, tristemente, começou a pensar nas providências para a viagem. 


4 comentários:

mgracarios@gmail.com disse...

Esse é um trecho da monumental obra histórico-literária da amiga Tânia. A linguagem possui a fidedignidade com o princípio da colonização brasileira. O estilo incomum da autora busca fontes de pesquisa constante. Estou lendo os capítulos tomada de encantamento e admiração textual.

Anônimo disse...

Texto muito bem redigido com enredo envolvente. Trabalho muito bem elaborado e apresentado.

Carolina disse...

A autora demonstra um grande conhecimento histórico o qual retrata neste texto brilhante

France Gripp disse...

Excelente texto! A história é muito envolvente! Aguardo o próximo capítulo do romance da amiga Tânia!

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