Nesses tempos pandêmicos, de repente, não mais que
de repente, fui tomado por profunda reflexão. Ei-la:
Na vida, são muitos os momentos em que deixamos de
fazer nossa própria vontade. É quando lamentamos as palavras não ditas, quando
engolimos desaforos, quando – por ignorância ou fraqueza – deixamos que
opiniões alheias prevaleçam sobre as nossas, quando adiamos decisões ou
delegamos a outros o poder de decidir por nós.
Muitas dessas frustrações irão nos incomodar ao
longo do tempo, frequentemente povoando nossos sonhos e pesadelos.
Mas não dá para ficar lamentando o leite derramado
(ou até mesmo a falta de leite). O que importa é ir tocando a vida, não ficar
remoendo o passado, lambendo suas feridas.
Tal reflexão me ocorre agora, justo no momento em
que duas frustrações teimam em me chatear.
A primeira delas tem a ver com fama e riqueza.
Vivemos numa sociedade onde os valores de fama e
riqueza ocupam os primeiros lugares no ranking das preferências. Como desde
cedo me dei conta de uma inabilidade inata para brigar por isso, procurei o que
no jargão popular é chamado de “dourar a pílula”. Vendo conhecidos e colegas
subindo na escala social, eu resmungava:
- Bah! Eles estão procurando “sarna pra coçar”. Como
bem diz meu ídolo Buda: “quanto mais
coisa você tem, mais terá com o que se preocupar”.
Bem ou mal, tal pensamento me confortou ao longo do
tempo, até que cheguei aos dias atuais, quando me vejo tomado de frustração por
não ser rico e famoso.
O que me fez desejar ser rico e famoso foi uma razão
aparentemente banal: entrar na Justiça com ação contra um desafeto qualquer.
Então, eu iria requerer uma indenização por danos morais. Acho chique
demais alguém conseguir uma indenização assim. Hoje em dia, parece que todo
mundo faz isso. E tem famoso que nem precisa trabalhar: pode perfeitamente
viver das ações ganhas na Justiça.
Você pode perguntar: - Mas por que não entra também
com uma ação, se é tão normal?
Simplesmente porque “danos morais” é coisa de gente
rica e famosa. Gente pobre não tem como sofrer dano moral, já que parece não
ter moral. Quando acham que tem, o ressarcimento não irá passar de uma
bagatela. Está lembrado daqueles guardas municipais de Dourados, Mato Grosso do
Sul?
Ao ser multado por uma irregularidade no trânsito,
um motoqueiro, exacerbado, chamou os guardas municipais que o autuaram de “bostas”.
Feita a denúncia, o juiz (Caio Martins de Brito) absolveu o acusado, dizendo,
entre outras sandices, que acatar a denúncia seria “dar muita relevância para
tão pouca coisa”. Além disso, segundo o juiz, chamar alguém de “bosta” pode até
ser um elogio.
Esta é minha frustração: ninguém nunca me difamou ao
ponto de eu ter que recorrer à Justiça, pedindo indenização por danos morais.
Por outro lado, caso isso venha a ocorrer, meu medo maior é o juiz, em sua
sentença, dizer que não tenho moral para ser danificada, que sou igual aos
guardas de Dourados, que não passo de um “bostinha”.
O segundo desapontamento é recorrente do descrito
acima, já que poderia me trazer fama e riqueza.
A leitura de uma notícia de jornal veio despertar um
dos maiores arrependimentos que carrego: o de não ter sido amigo de George
Clooney. Não que eu seja uma pessoa interesseira, mas fiquei sabendo que
Georginho em 2013 reuniu 14 de seus melhores amigos e doou para cada um a
ninharia de US$1 milhão.
(Quando li a notícia, quis saber se entre os felizardos
estava Max. Quando fui checar, querendo evitar uma fake news, me dei conta de
que Max havia falecido em 2006. Para quem não sabe, Max era o porquinho de
estimação de George.)
A explicação do galã para seu gesto é simples,
servindo de exemplo para tantos outros que não sabem o que fazer com seus bens:
- Estamos envelhecendo. Esses caras sempre me
ajudaram. Muitas vezes, dormi em seus sofás quando estava quebrado. Já me
emprestaram dinheiro. Pensei: - Se eu fosse atropelado por um ônibus,
eles estariam no meu testamento. Então, por que esperar ser atropelado?
Veja você como a vida pode ser cruel: logo agora,
estando na curva descendente, tenho que conviver com os sentimentos de
frustração por não ser amigo de George Clooney, nem tampouco rico e famoso. Só
falta mesmo eu me dar conta de que não passo de uma sucata desprezível e sem
moral.