Quando falei pro Loprefâncio que acabara
de comprar ingressos para ir com minha namorada à apresentação do Cirque du
Soleil, ele olhou para mim como se não estivesse me vendo e, com voz trêmula,
começou a falar dos tempos de sua infância:
Nos tempos de antigamente, era comum que
circos de picadeiro e de tourada, assim como parques de diversão, fizessem
turismo pelas cidadezinhas do interior, onde chegavam se arrastando, tal a
penúria de suas condições financeiras. Os circos de picadeiro podiam ser
avaliados pela quantidade de remendos em suas lonas. Quando aparecia um com
lonas novas, só tal fato era suficiente para que as lotações se esgotassem.
Independentemente da quantidade de furos
em suas lonas, a chegada de um circo ou de um parque era sempre motivo de
comemoração, diante da perspectiva de algo diferente para uma cidade que vivia
jogada às moscas.
Os parques apareciam raramente. Como a
entrada era livre, eu era frequentador assíduo e não me cansava de ver
apostadores tentando laçar maços de cigarro com argolas, outros tentando
acertar tiros ou bolachas. O máximo de emoção acontecia com a Roda Gigante e
com gangorras em forma de canoas, onde duas pessoas se revezavam puxando
cordas. Às vezes, um puxava tão alto que
passava a sensação de que iria cair lá de cima. O desejo proibido ficava por
conta do carrossel, onde eu esgotava toda minha cota de inveja, vendo outros
meninos girando em cavalos de faz-de-conta.
Os circos de touradas eram ainda mais
raros. Todos fracassavam, pois usavam bois das fazendas da região. Como nenhum
tinha uma gota sequer de sangue espanhol, assim que eram colocados na arena,
ficavam olhando calmamente para os toureiros e para a plateia. Não havia
provocação que os deixasse enraivecidos. O vexame era inevitável.
Quanto aos circos de picadeiro, como bem
diz o ditado “em terra de cego, quem tem um olho é diferente”, aquelas pessoas
estranhas, desde a chegada, eram vistas com curiosidade e deferência. Sempre
havia um rapaz de belas proporções - em geral, um trapezista - a quem todos
davam o direito de namoriscar a mocinha mais atraente do lugar.
Quando o circo era de maior envergadura,
seus principais artistas desfilavam em caravana pelas principais avenidas da
cidade, assim que os mastros fossem fincados e as lonas levantadas, para dizer à população que haveria espetáculo. E lá estava o palhaço e seu acompanhante
anão fazendo graça para os meninos; lá estava o rapaz musculoso - certamente um
trapezista - a arrancar suspiros das mocinhas; havia também aquela atriz de
maiô e aquele atleta de short collant despertando pensamentos sombrios
em homens e mulheres; fechando o desfile – que surpresa, que aperto no coração!
– vinha um leão enjaulado. Uma emoção indescritível tomava conta das pessoas.
À noite, o som do serviço de
alto-falante se espalhava pela cidade, anunciando o espetáculo. “Respeitável público, não perca, em
instantes, o início do maior espetáculo que esta cidade já viu. Venha rir com
as travessuras dos palhaços Mingau e Fubá, admirar a coragem do Homem Bala,
passar pelo suspense do Globo da Morte, emocionar-se com o drama ‘O Céu Uniu os
dois Corações’ e muito, muito mais!” E a sirene toca, em desespero, uma, duas,
três vezes.
E Loprefâncio completava: Lá de minha
casa, eu ouvia tudo aquilo, com o coração doendo e umas lágrimas teimando em
descer pela minha face. Eu me recriminava: Por que eu sou tão covarde? Por que
não tenho a coragem de um Tonho da Biba, que sempre dá um jeito de entrar por debaixo
da lona? Durante muito tempo, eu me sufocava, ouvindo músicas, gritos e risos.
Depois, eu me consolava e adormecia com o pensamento de que, daí a uns dias,
quando a população da cidade estivesse quase toda depenada, o circo iria
promover uma matinê a preços reduzidos e, até lá, quem sabe?
Quando, enfim, o circo deixava a cidade,
nós, as crianças, cuidávamos de montar o nosso, geralmente debaixo de um
bambuzal que havia no fundo do quintal de casa. Bambus eram utilizados para
fazer a armação, enquanto a lona era de folhas das bananeiras. Certamente que
tínhamos trapézio e palhaço, mas a atração principal ficava por conta de um
primo que conseguia a proeza de deslocar o pescoço, igualzinho ao que fazia a
moça do circo verdadeiro. Como eu não tinha nenhuma habilidade artística,
ficava cuidando da bilheteria. Os ingressos eram folhas de pés de café. Ainda
guardo uma toda ressecada dentro de um livro. Você quer ver, Ingenaldo?
0 comentários:
Postar um comentário