CORRER RISCOS



 CORRER RISCO

(Uma leitura de Sêneca)

 

Ainda que corra o risco de parecer tolo, sorria.

Mesmo que esteja na conta de sentimental, chore.

Estenda a mão, sem medo de se envolver.

Não faz mal mostrar seu verdadeiro eu,

ao expor seus sentimentos.

 

Corre o risco de perder as pessoas

aquele que defende seus sonhos.

Enquanto que corre o risco de não ser amado

aquele que ama.

 

Porque viver é correr o risco de morrer

Confiar é correr o risco de se decepcionar

Tentar é correr o risco de fracassar.

 

Mas não podemos deixar de correr riscos

Porque o maior perigo da vida é não arriscar nada.

 

Há pessoas que não correm nenhum risco,

não fazem nada,

não têm nada

 e não são nada.

 

Elas podem até evitar sofrimentos e desilusões,

mas não conseguem nada,

não sentem nada,

não mudam, não crescem, não amam,

... não vivem.

 

Acorrentadas por suas atitudes, elas viram escravas, privam-se de sua liberdade.

Ao abrir mão da liberdade, deixam de arriscar

julgando as coisas difíceis.

(Justamente porque não arriscam

é que as coisas se tornam cada vez mais difíceis.)

 

Somente quem corre riscos é livre.

Somente quem é livre pode amar.

Somente quem ama pode ser feliz.

Corra riscos, seja livre, ame, seja feliz!

Etelvaldo Vieira de Melo




APRENDIZ DE FEITICEIRA

 

Mil mãos irmãs confessaram-me a infância

Conceberam-me os cachos

Cinzaram-me os olhos

Incensaram-me lá.

 

Menina-mulher

muda mudei-me

                            n’alma d’Alva

                            salva calma

 

bem-me-quer

 

Ruim de cama, boa de mesa

(e pontos-de-cruz)

 

                   afirmo hoje

 

        FEMININA

 

meus dotes

quixotes

na vitrina

do cuscuz

Graça Rios

FRASEADO ESTRAMBÓTICO

 

A famosa história, chamada “Famigerado” e contada por Guimarães Rosa, pode assuceder de maneiras diferentes, de outros jeitos. Nesta, um doutor é procurado por um jagunço, encafifado com uma palavra que nem sabia falar direito, mas que tinha desconfiança de se tratar de alguma coisa ofensiva, um desaforo a ser arresorvido com balas de escopeta ou na ponta de um facão. Por outro lado, ainda o jagunço, ficou ele cismado de que aquela palavra estranha, e que tinha lá sua boniteza, podia ser coisa boa, espécie de elogio ou agrado.

   Vira e remexe, a gente mesmo se vê rodeado com palavrório esquisito, que nem sabe se é ofensa ou elogio, agrado ou desafeto. Vai daí que a gente toma posição, tem como acertada uma coisa que, quando vai ver, é outra bem diferente. Eu próprio já andei, nem sei o tanto de vez, trupicando nesse palavreado estrangeiro, que chegou pra mim cheio de não-me-toques, como se fosse uma madama toda emplumada, me deixando azucrinado, com uma baita pulga por atrás da orelha, sem saber se o caso era de dar um sorriso como resposta ou um tiro bem certeiro de garrucha 44 no meio da testa do intrometido.

   Um fato desses foi acontecido quando eu estava naquela fase de encompridar o corpo e engrossar a voz, ocê sabe. Não me alembro dos antecessórios que levaram um sujeito, com quem eu pouco se me dava, a chegar perto de mim com esta parlenga:

   - Ocê é um cínico.

   Ele falou estas coisas assim de comprido, sem carregar neste ou naquele pedaço, o que dificultou ainda mais meu entendimento.

   Fiquei abobado, sem tomar tenência. Mas como havia tomado gosto daquela palavra esquisita, depois de algum tempo, achando ela bonita e distinta, acertei que em se tratava de um agrado, um elogio. Por isso, respondi:

   - Brigado, eu que não mereço tanto.

   O distinto ficou olhando pra mim com olhos arregalados, dando a entender que não havia entendido a minha resposta.

   Por isso, porque havia uma poeira de suspeita no ar, arresorvi, depois, ir atrás daquele livro grossão, cheinho de palavras empilhadas, ‘o livro que aprende as palavras’, e que os doutores, por caçoada, chamam de “pai dos burros”. O livrão grosso foi curto e grosso na explicação: “Cínico = que tem cinismo”. E daí? – quis saber mais, já que a explicação deixava tudinho do mesmo tamanho. “Cinismo = descaramento, atrevimento, zombaria, deboche”.

   Espremendo minha inteligência em busca de um entendimento apurado, vi que aquele sujeito, com quem eu não se me dava, estava era jogando uma ofensa pra cima de mim.

   Fiquei injuriado, querendo chamar o distinto para uma briga de morte. No entretanto, assim que fui tirar sastifação, vi que a poeira da reiva já havia assentado. Num sei se acontece com ocê o que assucede comigo: eu não respondo por mim é na hora do meu repente, quando ‘a mandioca azeda’. Aí, então, eu mostro com quantos paus a gente faz uma canoa.

   Agora, aquele distinto, que jogou um tanto de desaforo na minha cara, também andou trocando as bolas, confundindo alhos com bugalhos. Se tem uma coisa que não posso ser chamado é desse tal de “cínico”. No normalmente, o de mais que consigo demonstrar é meu olhar de lerdeza, de abobado. Quando consigo enxergar um tiquinho a mais, eu óio com desconfiança, nunca com esse tar de cinismo. Coitado do moço, pelo que eu estou atentando agora, ele devia estar ofendido de vista cansada, precisava usar ócrus!

Tevardinho

Etelvaldo Vieira de Melo

ELÃ

 



MENSAGEM




 

PARECE, MAS NÃO É

 


   Talvez pelo nome, talvez pelo tempo de vida, sei lá, Eleutério é o tipo do sujeito sério. Mas nem sempre foi assim.

   Sua máxima favorita é: melhor ficar quieto e parecer um idiota do que abrir a boca e dar toda a certeza que sim.

   Talvez por isso mesmo, aparenta ser um sujeito que sabe das coisas. Mas nem sempre é assim.

   Assim, foi ele ontem certificar-se sobre um novo sistema de transporte da cidade, chamado de “MOVE”. É que ele tem uma consulta agendada pra hoje, em avenida servida por esse sistema de transporte.

   Para aqueles que moram noutras redondezas, é preciso esclarecer: MOVE nada mais é do que um transporte por ônibus sanfonados, grandes, que usam pistas exclusivas. A prefeitura da cidade parece que desistiu definitivamente de proporcionar aos moradores o tão sonhado serviço de metrô.

   O MOVE acaba sendo o que antiga propaganda de xampu dizia: aquele que parece, mas não é. A propaganda atual fala: Parece serviço de metrô, com os passageiros embarcando em plataformas situadas no mesmo nível dos ônibus. Pois, então: parece metrô, mas não é. Na falta de picolé, é preciso contentar com dim-dim ou chup-chup.

   Eleutério foi se inteirar da forma correta de usar o tal de MOVE, o tipo da roupa que deveria estar vestindo, se social ou esportiva, se poderia estar calçando tênis, se teria direito de usar sua carteirinha de aposentado, se teria que passar aquela colônia que seu mano lhe deu de presente, se o acesso ao ônibus se daria pela plataforma da direita, se da esquerda.

   Antes que alguém venha esbravejar contra tanto “se”, esclareço: Eleutério carrega um trauma de adolescência, que nenhum metido a Freud conseguiu extirpar. E esse trauma tem a ver com ônibus.

   Eleutério morava no interior, em meio a cavalos, bois e burros. Ainda adolescente, veio morar nesta cidade grande, onde há poucos cavalos e bois; burros existem de várias espécies, inclusive aqueles usados nos bairros da periferia, para puxar carroças de entulhos.

   A primeira vez em que pegou lotação, ele estava acompanhado de um colega, o sistema ainda era de catraca e a entrada se dava pela porta traseira.

   O colega entrou, pagou a passagem e passou pela roleta. Distraído, Eleutério vinha atrás e não notou como tudo aconteceu.

   Entrando, ele se posicionou frente à catraca e pagou a passagem ao trocador (hoje, chamado “agente de bordo”). Este, assim que recebeu o dinheiro, falou:

   - Pode passar.

   Eleutério olhou para a catraca, olhou para o trocador e, com os olhos, perguntou:

   - Como?

   O trocador não entendeu a pergunta. Falou:

   - Eu já disse que pode passar.

   Eleutério, com os olhos, perguntou angustiado:

   - Mas como?

   Nessa altura, já havia um número grande de pessoas querendo passar pela roleta. O trocador esbravejou:

   - Passa!

   Como último recurso, Eleutério se agachou e passou por baixo da roleta.

   As pessoas riram, debocharam do pobre coitado? Eleutério não se lembra, que essas coisas ruins a gente deleta do disco rígido da memória. Ele só se lembra de ter passado por baixo da roleta de um ônibus.

   Agora, com esse tal de MOVE, ele foi conferir, pra ver como é que é. Porque essa história de que ele, Eleutério, é sério, sabe das coisas, não passa de uma casquinha, uma tinta de verniz, um parece que é mas não é. Em muitos casos, pra burro completo, só lhe falta pena ou estar puxando uma carroça. Coitado!

Etelvaldo Vieira de Melo


ARCO-ÍRIS

 

Saudade

rosada,

roxa.

 

Lilás,

claro.

 

Ai, negra

vermelhidão.

 

Toda azul,

verdeja

branca,

 

Num

cinzento

amarelão.

 

Ai, cor

ação!

Graça Rios


PLANTANDO UMA SEMENTINHA DE BONDADE

 

Por causa de sua crendice e boa-fé, está se tornando cada vez mais difícil para Ingenaldo sobreviver no mundo de hoje. Apesar de seu esforço físico, ele não dá conta de driblar tantas decepções: ao final de cada dia está ele coberto de arranhões e hematomas.

  Fridolino Xexeo, seu amigo e primo em terceiro grau, encontrando-o certo dia com o braço direito enfaixado e com o olho esquerdo todo roxo e inchado, tentou aplicar-lhe uma vacina, ora veja, através de palavras de alerta. Disse Fridolino:

  - Meu caro amigo, o que vale hoje é a esperteza, já que as pessoas não têm mais escrúpulos em furar os olhos dos outros. A título de exemplo, por esses dias, foi um técnico lá em casa fazer um reparo no aquecedor solar. Tinha ele uma conversa mansa e humilde, o que me deixou um pouco aliviado. Pensei: “taí um cara que não vai me meter a mão com um preço absurdo”. Ele calculou que gastaria dois dias de serviço, com a mão de obra custando seiscentos reais. Apesar de meu salário não chegar aos pés de sua proposta, considerei que era razoável, e que era o meu salário que não prestava. Acontece que o sujeitinho de fala mansa gastou trinta minutos, quando muito, para terminar todo o serviço. Como o almoço estava pronto, ele não se fez de rogado ao convite, comeu um prato (de comida) que, se não atingiu o cume do Pico da Neblina, ultrapassou o da Serra da Piedade. Piedade que ele não teve na hora do acerto de conta: foram seiscentos reais, sem tirar nem pôr. Depois, ele explicou que havia levado sua caminhonete para fazer uma retífica de motor. O conserto girou em torno de oitocentos reais. Concluindo a conversa, que já me dava voltas no estômago, ele disse: “A vida é assim: um toma lá, dá cá”.

  Ingenaldo, você está entendendo minhas palavras, ou estou falando para as paredes?

  Ingenaldo olhou por sobre as lentes dos óculos azuis, fazendo um gesto de “sim” com a cabeça.

  Quando se despediram, foi ele para o ponto de lotação (Ingenaldo é sobrinho de Eleutério, outro que só anda de ônibus). Ali, uma menina de 9 a 10 anos de idade, que estava de uniforme escolar e carregava nas costas uma mochila, lhe perguntou:

  - Você não viu por acaso uma nota de R$10,00 aí no chão?

  Ingenaldo achou estranho aquele tipo de pergunta. A menina insistiu em dar detalhes sobre o sumiço da nota.

  - Eu ia passar na farmácia comprar um xampu para minha mãe. Quando fui ver, o dinheiro havia sumido.

  Ingenaldo ficou condoído com o sofrimento da menina, mas estava também impregnado das palavras de Xexeo. Falou:

  - Se eu tivesse dinheiro comigo (na verdade, ele tinha, mas pouco), poderia ajudá-la. Fala pra sua mãe, explica pra ela...

  - Eu coloquei o dinheiro aqui no bolso de trás – a menina mostrou o bolso, que apresentava um rasgão.

  - Pois é, deve ser por aí que o dinheiro sumiu.

  - Minha mãe vai me colocar de castigo – e uma lágrima rolou pelo rosto da garota.

  Nesta hora, Ingenaldo exorcizou de vez as palavras de Xexeo. Pensou: - Não vou deixar de ser uma pessoa crédula, não posso abandonar meu sentimento de humanidade.

  Assim pensando, retirou uma nota de 10 e deu para a menina.

  - Obrigada – falou ela.

  Ingenaldo ficou sabendo que havia plantado uma sementinha de bondade no coração de uma criança. Quem sabe, pensou ele, esta semente não irá florescer e ajudar a colorir o mundo?

Etelvaldo Vieira de Melo

SÉRIE BLOGFLIX: TEMPORADA 2 (PODE ATÉ TER, MAS TEM QUE SER ABSCONTO, EMBIOCADO)

Como bem diz dona Jandira: “Tem desfecho que não tem nem ganho, nem graça, nem feiura, só perda de tempo”.

Em tempo bem atrás, estava eu em um ponto de ônibus, quando fui surpreendido por um grupo de pivetes. Um deles arrancou o relógio de meu pulso e saiu correndo, sendo acompanhado pelos demais. Quando chegaram do outro lado da rua, um dos meninos falou para aquele que havia me surrupiado o relógio:

- Cara, esse relógio não vale nada, é coisa de camelô.

Com ar triste, o ladrãozinho pegou o dito relógio e o colocou delicadamente no passeio, próximo ao meio-fio. Olhou para mim, e seu olhar dizia assim: “Pode vir pegar seu relógio, pois vejo que você está em situação pior que eu”. E aquele olhar fez com que uma lágrima de desgosto escorresse pelo meu rosto.

As pessoas que estavam próximas, usando daquela atribuição que a Psicologia pode chamar de “solidariedade mórbida”, vieram me perguntar, todas com os olhos arregalados:

- Roubaram mais alguma coisa? Machucaram você? Tiraram algum pedaço? Deixaram você sangrando?

Como nada de excepcional havia acontecido, elas se afastaram, decepcionadas, dando razão ao que dizia Dona Jandira: tanta preocupação tinha sido uma perda de tempo.

De minha parte, depois de aparar a lágrima furtiva com lenço, atravessei a rua, peguei o relógio e o coloquei novamente no pulso.

Foi a partir dessa data que os ladrões me deixaram em paz, eu que já havia sido assaltado por sete vezes. É que eu me dava certos ares de importância, vestindo roupas um pouco sofisticadas, embora, no fundo e a bem da verdade, pouco mais valiam que um real furado.

Os ladrões me deixaram em paz porque passei a usar artigos de quinta categoria. Qualquer meliante (que palavra exótica!) ao olhar para mim, ia logo pensando: “Esse aí não está com nada!” Com isso, não melhorei minha situação financeira, mas parei de levar sustos ao andar pelas ruas da cidade.

Você está vendo, é difícil ser capitalista nesse nosso Brasil varonil: não dá pra ostentar nem produto de terceira categoria. Desse jeito, o melhor mesmo é adotar o regime comunista, dando razão de vez a esse povo doido que tomou conta do país.

Porque, a bem da verdade, ser capitalista nesse país tupiniquim é difícil até para as pessoas mais abonadas. Que o diga aquele apresentador de TV (ô loco meu!, aquele que falou certa vez:  “Sabe por que existe espingarda de dois canos? Pra matar dupla sertaneja!”), que tem mania de colecionar relógios, todos custando mais de milhão. Ele acaba de cancelar seu contrato com a emissora em que trabalhava há muitos anos. O que fez logo depois foi acertar com uma emissora concorrente, não pelo dinheiro, já que ele está podre de rico. Dizem as más línguas (fake news?) que ele até vai pagar para apresentar seu programa. Sua compensação? Exibir seus caros relógios. Porque, para o capitalismo, não basta ter: é preciso ostentar, deixando os outros babando de inveja. Arre! 

Etelvaldo Vieira de Melo

HISTÓRIA DO TEMPO DO ONÇA

   

 
    Vovó me conta que no tempo em que os bichos falavam, apareceu na floresta um papagaio linguarudo e trapaceiro.

- Vivi séculos na terra dos homens. Trago comigo... Currupaco... os seus mínimos segredos... papaco! Dá o pé, louro?

Quando o rei leão ficou sabendo do novo súdito, quis verificar se lhe era fiel. O pobre, a duras penas, confiou-lhe um negócio da China: vinha montar um “jogo do homem”, tal e qual os homens faziam com o “jogo do bicho”. O leão achou majestosa a manha da loteca, desde que fosse o sócio-mor, com porcentagem de setenta por cento, sem nenhuma papagaiada.

No dia da estreia, bem cedo começaram as apostas. O veado jogou no número 42, dado ao esquimó. O tigre, sinuqueiro por natureza, lançou uma fortuna no número sete, dado ao africano. E assim, sucessivamente, apostavam no inglês, no americano, no francês, no alemão.

Vovó não sabe porque a zebra ganhou no treze. Como o número era brasileiro, e o símio tinha dado palpite, todo mundo ficou falando que aquela marmelada era pura macaquice do leão e do papagaio.

Graça Rios