A famosa história, chamada
“Famigerado” e contada por Guimarães Rosa, pode assuceder de maneiras
diferentes, de outros jeitos. Nesta, um doutor é procurado por um jagunço,
encafifado com uma palavra que nem sabia falar direito, mas que tinha
desconfiança de se tratar de alguma coisa ofensiva, um desaforo a ser
arresorvido com balas de escopeta ou na ponta de um facão. Por outro lado,
ainda o jagunço, ficou ele cismado de que aquela palavra estranha, e que tinha
lá sua boniteza, podia ser coisa boa, espécie de elogio ou agrado.
Vira e remexe, a gente mesmo se vê rodeado com palavrório esquisito,
que nem sabe se é ofensa ou elogio, agrado ou desafeto. Vai daí que a gente
toma posição, tem como acertada uma coisa que, quando vai ver, é outra bem
diferente. Eu próprio já andei, nem sei o tanto de vez, trupicando nesse
palavreado estrangeiro, que chegou pra mim cheio de não-me-toques, como se
fosse uma madama toda emplumada, me deixando azucrinado, com uma baita pulga
por atrás da orelha, sem saber se o caso era de dar um sorriso como resposta ou
um tiro bem certeiro de garrucha 44 no meio da testa do intrometido.
Um fato desses foi acontecido quando eu estava naquela fase de
encompridar o corpo e engrossar a voz, ocê sabe. Não me alembro dos
antecessórios que levaram um sujeito, com quem eu pouco se me dava, a chegar
perto de mim com esta parlenga:
- Ocê é um cínico.
Ele falou estas coisas assim de comprido, sem carregar neste ou
naquele pedaço, o que dificultou ainda mais meu entendimento.
Fiquei abobado, sem tomar tenência. Mas como havia tomado gosto
daquela palavra esquisita, depois de algum tempo, achando ela bonita e
distinta, acertei que em se tratava de um agrado, um elogio. Por isso,
respondi:
- Brigado, eu que não mereço tanto.
O distinto ficou olhando pra mim com olhos arregalados, dando a
entender que não havia entendido a minha resposta.
Por isso, porque havia uma poeira de suspeita no ar, arresorvi,
depois, ir atrás daquele livro grossão, cheinho de palavras empilhadas, ‘o
livro que aprende as palavras’, e que os doutores, por caçoada, chamam de “pai
dos burros”. O livrão grosso foi curto e grosso na explicação: “Cínico = que
tem cinismo”. E daí? – quis saber mais, já que a explicação deixava tudinho do
mesmo tamanho. “Cinismo = descaramento, atrevimento, zombaria, deboche”.
Espremendo minha inteligência em busca de um entendimento apurado,
vi que aquele sujeito, com quem eu não se me dava, estava era jogando uma
ofensa pra cima de mim.
Fiquei injuriado, querendo chamar o distinto para uma briga de
morte. No entretanto, assim que fui tirar sastifação, vi que a poeira da reiva
já havia assentado. Num sei se acontece com ocê o que assucede comigo: eu não
respondo por mim é na hora do meu repente, quando ‘a mandioca azeda’. Aí,
então, eu mostro com quantos paus a gente faz uma canoa.
Agora, aquele distinto, que jogou um tanto de desaforo na minha
cara, também andou trocando as bolas, confundindo alhos com bugalhos. Se tem
uma coisa que não posso ser chamado é desse tal de “cínico”. No normalmente, o
de mais que consigo demonstrar é meu olhar de lerdeza, de abobado. Quando
consigo enxergar um tiquinho a mais, eu óio com desconfiança, nunca com esse tar
de cinismo. Coitado do moço, pelo que eu estou atentando agora, ele devia estar
ofendido de vista cansada, precisava usar ócrus!
Tevardinho
Etelvaldo Vieira de Melo