Quando a morte arrebatou pela
segunda vez a vida de Eurídice, seu marido Orfeu foi tomado de profunda dor.
Afastou-se das pessoas e buscou acalmar sua melancolia através de músicas, que
tocava com sua lira, presente do pai Apolo.
Atraídas pelo som das belas
melodias, mulheres da Trácia se aproximaram, ficando ainda mais espantadas
diante da beleza de Orfeu. Tentaram seduzi-lo com palavras amorosas, mas o vate
estava entregue à sua dor e não ligou para elas.
Enciumadas, as moças começaram
a ofendê-lo, enquanto atiravam-lhe pedras. No entanto, assim que as pedras
esbarravam no som da melodia, caíam inermes no solo. Ainda mais enfurecidas, as
mulheres passaram a atirar pedras e mais pedras que, no entanto, caíam ao chão,
não atingindo Orfeu.
Depois de certo tempo,
contudo, os gritos conseguiram abafar o som da melodia e, com isso, as pedras
finalmente atingiram o vate e o mataram.
É impressionante como este
relato mitológico nunca perde seu tom de atualidade. Estamos em 2022 e, abaixo,
transcrevo uma leitura possível.
O ser humano foi criado para
viver em harmonia com seus semelhantes, com os outros animais e com todos os
seres da natureza. É esta a ideia do Paraíso Terrestre, aquele sonho que ficou
perdido no início dos tempos. A música, expressão do Amor, é aquilo que nos
aproxima uns dos outros e nos faz viver em harmonia. Porque, a bem da verdade,
vivemos para amar e sermos amados.
Esse sonho de felicidade é
quebrado quando o Egoísmo, essa força do Mal, se manifesta, começa a falar alto,
a gritar, gerando o desequilíbrio e o caos.
Em 2020, a Humanidade foi
tomada pela pandemia do Corona Vírus. Diante das milhares de mortes, havia a
esperança de que as pessoas se dessem conta do apelo desesperado da Natureza,
para que se pusesse freio à ganância desmedida, que sufocava e matava o
meio-ambiente.
Foi em vão. O que vimos depois
foi o recrudescimento do Egoísmo, espelhado em queimadas, desmatamentos,
agrotóxicos e novas guerras.
As redes sociais, que deveriam
ser fator de agregação, de aproximação das pessoas, tornaram-se meios de
propagação do ódio e da mentira. Pessoas, que nunca poderíamos imaginar, estão
aí fazendo dos celulares amplificadores de seus próprios preconceitos,
metralhadoras de seu racismo, de sua homofobia, misoginia e sadismo. De
repente, estamos nos vendo cercados de pessoas subletradas (e que se orgulham
disso) - parentes, conhecidos e até quem considerávamos amigos -, tratando as
mulheres como seres inferiores, dizendo ser bobagem cuidar da natureza, debochando
das milhares de pessoas que morrem vítimas da Covid, não respeitando as
diferenças, defendendo as armas e perseguindo a guerra e a morte, menosprezando
a democracia e querendo a tortura, a falta de liberdade. E ainda têm o
descaramento de dizer que falam isso em nome dos bons costumes, da Tradição, da
Moral, da pátria, da Religião e de Deus!
Quando Orfeu tocava a lira,
animais selvagens se aproximavam e se abrandavam; até mesmo as rochas perdiam
algo de sua dureza. Mas, e hoje, conseguimos ouvir alguma melodia que fala de
Amor? Não. Porque o Egoísmo está falando cada vez mais alto, está gritando em
nossos ouvidos, sufocando tudo que há de bom.
Não podemos culpar de todo as
redes sociais por esse estado de calamidade que vivemos. Elas estão aí como
instrumentos para dar vez e voz aos truculentos, aos estúpidos e ignorantes,
aos aproveitadores e cretinos, aos crédulos e ingênuos, todos muito bem
monitorados e doutrinados por inteligências espertas, instaladas em gabinetes.
Com isso, tais redes acabam se tornando espelho da ignorância humana.
A lira ainda toca suas
melodias, é preciso ouvir. Mas elas estão sendo abafadas e sufocadas pelos
gritos da intolerância, do ódio, da violência, do individualismo, da mentira. Precisamos
fazer calar essas vozes; não podemos permitir que o Amor morra entre nós.
Etelvaldo Vieira de
Melo
5 comentários:
Concordo em gênero, número e grau. E ainda usam a igreja como escada.
Texto perfeito. Difícil é mudar isto, onde a educação é coisa insignificante. Parabéns Téo!
Verdade, é preciso mudança.
Etelvado, essa crônica tem uma dimensão clássica pelo tema e pela forma de articulação. É um texto maravilhoso. Li duas vezes e vi o cenário petrificado do mundo atual. Maravilhoso. Mais ainda: é um retrato falado do Brasil atual.
Já enviei para outras pessoas.
Mauro Passos
Obrigada pelo profundo texto! Realmente as pessoas estão cada dia mais "petrificadas " e insensíveis! Além disso, se esquecem muito facilmente as consequências de um desgoverno que comete cada dia mais absurdos, afetando principalmente aos mais pobres! Eu, nessa pandemia, perdi amigos e colegas de trabalho na saúde, além de uma irmã, com Covid. Jamais esquecerei esse descaso e desumanidade por parte do Bolsonaro! Não ouvimos nenhuma palavra de conforto por parte dele. Agora, tem a cara de pau de pedir nossos votos! Abraços!
Maria José
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