Entre os atos
conscientes e os inconscientes, estão aqueles que são nem uma coisa ou outra. É
por isso que nem Freud consegue encontrar uma explicação para tudo na vida (e
ainda bem, penso eu).
Quanto
à interpretação de tais atos, tudo depende dos interlocutores. Existem aqueles
que têm o desconfiômetro quebrado; existem aqueles para quem, à simples menção
de um pingo, não só enxergam uma letra: são capazes de enxergar uma frase
inteira.
Pode
até ser que a colocação de uma figura de “namoradeira”, no balcão da recepção
da pousada onde estive hospedado em Arraial d’Ajuda, tenha sido um ato meramente
decorativo.
Acontece
que, do outro lado, estão dispostas mesas e cadeiras onde é servido o café da
manhã. A namoradeira está colocada de modo a ficar “olhando” para as pessoas
ali sentadas, fazendo o desjejum.
O
que me chamou atenção na estátua foi o seu olhar opaco. Ela fica ali olhando
para as pessoas, com a mão no queixo. Sua expressão corporal, em especial seu
olhar, parece dizer: “Puxa, como você come! Que coisa!”.
Posso
até considerar que não era intenção explícita ou tática dos donos da pousada refrear
o apetite dos hóspedes, mas me senti como aquele para quem um pingo é uma
enciclopédia.
Por
isso, todo dia, no café da manhã, eu me sentava de costas para a “namoradeira”.
Quando me levantava, depois de ter comido e bebido tudo que pudera suportar, e
deparava com aquele olhar de reprimenda, dizia em pensamento: “- Sinto muito,
mas agora Inês já é morta!” – Ou, traduzindo para um português mais consistente
e inteligível: “- Sinto muito, mas agora a vaca já foi pro brejo com chifre e
tudo!”. E saía, sorridente e feliz, para meus passeios de turista acidentado.
Etelvaldo Vieira de Melo
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