PARA QUEM UM PINGO É MAIS DO QUE UMA LETRA

 
Imagem: Pinterest

Entre os atos conscientes e os inconscientes, estão aqueles que são nem uma coisa ou outra. É por isso que nem Freud consegue encontrar uma explicação para tudo na vida (e ainda bem, penso eu).

Quanto à interpretação de tais atos, tudo depende dos interlocutores. Existem aqueles que têm o desconfiômetro quebrado; existem aqueles para quem, à simples menção de um pingo, não só enxergam uma letra: são capazes de enxergar uma frase inteira.

Pode até ser que a colocação de uma figura de “namoradeira”, no balcão da recepção da pousada onde estive hospedado em Arraial d’Ajuda, tenha sido um ato meramente decorativo.

Acontece que, do outro lado, estão dispostas mesas e cadeiras onde é servido o café da manhã. A namoradeira está colocada de modo a ficar “olhando” para as pessoas ali sentadas, fazendo o desjejum.

O que me chamou atenção na estátua foi o seu olhar opaco. Ela fica ali olhando para as pessoas, com a mão no queixo. Sua expressão corporal, em especial seu olhar, parece dizer: “Puxa, como você come! Que coisa!”.

Posso até considerar que não era intenção explícita ou tática dos donos da pousada refrear o apetite dos hóspedes, mas me senti como aquele para quem um pingo é uma enciclopédia.

Por isso, todo dia, no café da manhã, eu me sentava de costas para a “namoradeira”. Quando me levantava, depois de ter comido e bebido tudo que pudera suportar, e deparava com aquele olhar de reprimenda, dizia em pensamento: “- Sinto muito, mas agora Inês já é morta!” – Ou, traduzindo para um português mais consistente e inteligível: “- Sinto muito, mas agora a vaca já foi pro brejo com chifre e tudo!”. E saía, sorridente e feliz, para meus passeios de turista acidentado.

Etelvaldo Vieira de Melo


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