Em uma de suas famosas composições, Ivan Lins
disse: “o amor faz coisas que até Deus duvida”. Procurando na letra
da música fundamentos para essa quase blasfêmia, confesso que me senti um pouco
decepcionado. Julguei que encontraria algo bombástico, algo que abalasse os
alicerces da divindade, mas as declarações não passaram do trivial, aquilo que
ouvimos a toda hora: o amor curando desenganados, fechando feridas, juntando os
pedaços de um coração que se quebra. Apesar da frustração, isso não tira os
méritos da música “Iluminados”, um dos grandes sucessos daquele compositor, em
parceria com Vitor Martins.
Como acredito que o amor é capaz de fazer coisas extraordinárias,
andei especulando as pessoas de meu relacionamento em busca de algo inusitado,
algo que eu pudesse jogar na cara dos incrédulos, dizendo: Vejam como o amor é
capaz de operar milagres na vida de uma pessoa! Encontrei o que vem descrito, a
seguir.
O entorno da cidade de Belo Horizonte é contornado por uma rodovia
que recebe a denominação de Anel Rodoviário. Poderia se chamar também Anel
Funerário, o que não faria tanta diferença, já que é, regularmente, palco de
acidentes fatais. Tanto é verdade que emissoras de TV já dispõem de câmeras
instaladas sobre um viaduto que dá acesso a um bairro, ponto crítico onde
caminhões e carretas costumam passar pela infelicidade de perderem os freios.
Perdem os freios e atropelam tudo o que encontram pela frente. Tornam-se,
então, matérias de reportagens sensacionalistas e mote para candidatos em
campanha eleitoral. Além da duplicação do Anel, também fazem parte da
lenga-lenga eleitoral a rodovia 381, chamada de “Rodovia da Morte” e a
construção de um rodoanel.
Como não sou candidato a nada, só querendo mesmo expressar a dor
de tantas famílias enlutadas e minha indignação, creio que já podemos passar ao
outro ponto da questão.
Próximo ao Anel, encontra-se um aglomerado chamado de “Vila
Paraíso”, onde centenas de sem-teto e afins construíram suas residências. Foi
lá na Vila Paraíso que Gracinésio julgou encontrar o amor de sua vida, ela que
atendia pelo de nome de Hildelícia. Foi uma paixão avassaladora que fazia o
coração disparar no peito, as mãos tremerem e o suor escorrer pelo rosto,
misturando-se com as lágrimas de emoção.
Gracinésio logo viu o Paraíso se transformar em purgatório, quando
o entusiasmo inicial de Hildelícia começou a esfriar. Do purgatório para o
inferno foi um pulo, quando, passando a mão pela cabeça, sentiu ali uma
protuberância, como se fosse um chifre nascendo.
- Engraçado – pensou ele, apalpando o couro cabeludo (na época,
pois, agora, sua cabeça parece ter vegetação de deserto) – eu nunca havia
notado essas duas saliências em minha cabeça antes!
Quando foi fazer as contas, tirando a prova dos noves, isto é,
quando se deu conta, depois de todo mundo estar cansado de saber, Gracinésio
sentiu que o mundo ruía aos seus pés, que nada mais fazia sentido, que ele
tinha que morrer.
Saiu em desabalada carreira em direção ao asfalto e ali se deitou,
com os braços abertos.
- Quero morrer – gritou ele, entre soluços convulsivos e
compulsivos.
Os amigos, estando pelas proximidades, saíram correndo e o
arrastaram para o acostamento, a tempo de salvá-lo de uma jamanta que passava,
tirando-lhe casquinha.
Cambaleante, passou frente à casa de Hildelícia e gritou:
- Hildelícia, paixão de minha vida, vou te amar até morrer!
Mas que nada! Dias depois, estava de namoro com Clotildes, vizinha
de frente da antiga amada – segundo ele, para provocar ciúmes. Na conclusão,
teve casamento, com direito a doces e salgadinhos, tradição que os ricos
trataram de abolir, mas que os pobres cuidam de manter.
De minha parte, só teria que fazer um reparo nesta tresloucada
história de amor. Com o tempo, Gracinésio cresceu muito e engordou, engordou
muito e cresceu. Se ele deitasse no asfalto da BR e viesse outra jamanta, eu
não saberia quem iria se dar mal. Tenho a leve desconfiança de que a carreta
iria capotar, com sérias consequências para seu motorista. Aí, teria razão de
vez Ivan Lins: o amor fazendo coisas que até Deus duvida, uma carreta sendo
atropelada por um homem apaixonado.
Etelvaldo Vieira de Melo
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