Chove. Quando um trovão vem me despertar
do trabalho é que fico sabendo. Fecho cuidadosamente o livro de contabilidade e
olho pela veneziana. A chuva parece forte. Percebo isso ao observar pingos
baterem de encontro à vidraça. Começo a pensar...
Geralmente, era com um sentimento de
alegria que recebíamos as chuvas. Claro que existiam as chuvas perigosas, de
relâmpagos e trovões, pedras e ventos.
- Olha, mãe, ‘stá chovendo pedra!
- Não diga isso, meu filho. São rosas...
- Mãe, caiu um raio lá no Areão!
- Não fala essa palavra feia, meu filho!
E a gente se reunia no quarto, depois de
distribuir bacias para aparar as goteiras, tapar com panos as frestas das
janelas e portas, cobrir os espelhos (para que não atraíssem os raios).
Acendíamos uma vela por intercessão de São Gerônimo e Santa Bárbara,
dispúnhamos um rosário em formato de “ême” sobre a mesa e rezávamos o terço por
intercessão das benditas almas do purgatório. E meu fervor era tanto que não me
lembro ter acontecido outro igual!
- Toninho, bota a peneira atrás da porta
para aparar o vento!
Quando a chuva caía forte, com
relâmpagos e trovões, o lugar em que eu me sentia mais confortável era debaixo
da cama.
Quando a chuva era mais amena, como era
gostoso ouvir o barulho do vento agitando as bananeiras e passar assobiando por
sobre o telhado de casa!
Às vezes, a chuva era tão violenta que a
enxurrada invadia a casa. Mas, mesmo assim, a gente se divertir com os
resmungos da irmã solteirona, que tomava para si os encargos da arrumação.
Na maioria das vezes, entretanto, as
chuvas eram leves e permitiam brincadeiras, tais como fazer barquinhos para
jogar na enxurrada. E aconteciam apostas! Os meus quase sempre encalhavam no
primeiro recife.
As chuvas também permitiam ressuscitar
brincadeiras de ocasião: o “finco” era a principal. Mas também apareciam os
“papagaios” (“pipas”), as “pernas de pau” e as “bolinhas de gude”. Todas
enterradas hoje à custa dos videogames e smartphones.
- Não vale carregar, Biriba!
E tudo era festa. E a gente não sentia
vergonha de andar pela cidade com um guarda-chuva todo remendado – verdadeira
peça de museu, de tão antigo.
Depois, com o tempo, começaram as
aparecer os complexos de gente grande. Acho que o primeiro deles foi a vergonha
do guarda-chuva. Junto com ele, havia a ojeriza com as chuvas que frustravam a volta pela
praça e os primeiros encontros.
Todas essas transformações foram se
cristalizando e dando formação ao homem que hoje sou, E, se existe um pouco de
saudade, ela se deve à solidão e ao vazio que a vida de adulto muitas vezes não
consegue disfarçar.
No entanto, que eu guarde essas
reminiscências comigo. A única vez que tentei fazer voltar lembranças, a
pretexto de uma chuva a cair, obtive, ante a exclamação “Olha, está chovendo!”,
a seca resposta “Bom, e daí?”.
Etelvaldo Vieira de
Melo
3 comentários:
Excelente!
Gosto de textos assim: leves e graciosos.
Etevaldo Dias (via WhatsApp)
Como não relembrar da infância? Hoje, meus primos só sabem jogar no celular, nem de casa ficam querendo sair. Muito triste.
Kênia (via WhatsApp)
Seu texto também me remeteu a boas lembranças da chuva na infância. Desde as brincadeiras nas enxurradas da rua, como os retornos da escola ou do clube, onde se molhar se transformava em uma grande diversão. Porém teve também os momentos de medo onde se esconder debaixo da mesa ou da cama era um acalento.
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