CONVERSA COM MILLÔR FERNANDES

 

Aparentemente seria coisa simples fazer aquela entrevista com Millôr Fernandes – um ‘mamão com açúcar’, segundo a expressão popular. O autor estava disponível através das páginas de “Millôr Definitivo – a Bíblia do Caos”, livro editado pela L&PM.   

Eu queria recorrer ao Guru do Meyer, anotando aqueles seus principais ditos que melhor se ajustam à expectativa de uma passagem de ano. Meu trabalho seria fazer uma montagem com perguntas pertinentes. 

Bom, foi fácil e foi difícil o trabalho. O fácil se tornou difícil por causa da riqueza do material disponível, e acabei me perdendo entre tantas citações impagáveis (acho que Millôr iria detestar ler isto), muitas vezes caindo fora daquele propósito inicialmente traçado. Depois, as perguntas deveriam estar à altura de suas falas, uma vez que Millôr dispõe de humor por vezes ácido, e eu corria o risco de cair no ridículo.

Vamos em frente, pois a recomendação do mestre é de não usar doze palavras se posso me servir de onze; até agora, contabilizei treze. Então, à entrevista.

P = Primeiro, à moda dos testemunhos em julgamentos, promete dizer a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade?

R = Quem pede pra contar toda a verdade já está me exigindo uma mentira.

P = Para os desavisados, quem é você?

R = Millôr Fernandes, jornalista amador, que só recebe por fora e não agride a camada de ozônio.

P = Vamos começar falando de corrupção. Além de servir de bandeira para eleger muita gente safada, ela vai dar jeito este ano?

R = Muita gente que fala o tempo todo contra corrupção está apenas cuspindo no prato em que não conseguiu comer.

P = Epa! Juro que a carapuça não me serve...

R = Também penso: Já que não podemos repartir melhor a riqueza, pelo menos devemos democratizar a corrupção.

P = Você não considera a honestidade uma boa virtude?

R = Basta olhar em volta pra ver que a honestidade não é coisa natural. Toda pessoa honesta tem um ar extremamente ressentido.

P = Vamos falar um pouco da política e dos políticos.

R = Esses políticos todos andam tão ocupados com salvar o país que nem têm tempo de ser honesto.

P = Mas a nossa classe política é formada por profissionais.

R = Político profissional jamais tem medo do escuro. Tem medo é da claridade.

P = Como anda o Congresso Nacional?

R = No Congresso Nacional uma mão suja a outra.

P = Falando em corrupção, é bom associá-la de vez ao seu princípio e ao seu fim, o dinheiro. Você duvida daqueles que mantêm o mesmo ponto de vista por mais de uma semana. Mas também disse que o dinheiro é tudo na vida. Quer dizer, então, que as pessoas devem correr atrás do dito cujo?

R = O dinheiro compra o cão, o canil e o abanar o rabo. O dinheiro fala e também manda calar a boca. O dinheiro é a mais perversa das invenções humanas. O dinheiro é tudo. Ele é a fonte de todo o bem. Faz dentes mais claros, olho mais azul, amplia a dignidade individual, aumenta a popularidade, produz amor e paz espiritual e, quando tudo falha, paga o psicanalista.

P = Falando em dinheiro, não tem como deixar de falar dos banqueiros.

R = Os banqueiros não perdem por esperar. Ganham. Já o governo faz muito bem em proteger os banqueiros. Quando um banqueiro ganha mais 100 milhões, automaticamente, pelas estatísticas, todo o nordestino aumenta o seu per capita.

P = Agora sobre o Brasil, uma coisa boa é reconhecer que Deus é brasileiro, não é mesmo? 

R = Está bem. Deus é brasileiro. Mas para defender o Brasil de tanta corrupção só colocando Deus no gol.

P = Mas o Brasil é um país grandioso, imenso.

R = Eu sei. O Brasil tem oito milhões de quilômetros quadrados. Mas tirem isso, e o que sobra? 

P = Está claro que o país necessita de reformas, mas isso vai doer de alguma forma. Existe uma alegoria que possa amenizar isso?

R = Para pregar um prego sem machucar o dedo basta segurar o martelo com as duas mãos.

P = A partir do governo Bolsonaro, o país foi tomado por canalhas. Isso não assusta?

R = Fique calmo: canalhas melhoram com o passar do tempo (ficam mais canalhas).

P = No dia 8 de janeiro, tivemos os prédios dos Três Poderes em Brasília sendo invadidos e depredados por um bando de terroristas. Além dos fascistas, dos aproveitadores e cretinos, tínhamos ali também muitas pessoas burras. O que tem a dizer sobre a burrice?

R = Conheço certos sujeitos que se caírem de quatro não só não levantam, como também não têm a menor vontade.

P = Millôr, eu pago pra ver nosso país tomar jeito.

R = Ver para crer é um conceito totalmente hermético para os cegos.

P = Muita coisa precisa ser mudada no país.

R = É, há muita coisa a ser mudada, mas não se pode mudar tudo. Daqui a milhares de anos a coisa mais confortável pra gente se sentar ainda vai ser a bunda.

P = Quer dizer que você é um otimista?

R = Parece que o negócio do Brasil agora é desconfiar de Deus e tirar o pé da tábua.

P = Mas, depois de tudo, você vê uma saída para o país, uma luz no fim do túnel?

R = No meio da falta de hierarquia, corrupção e anarquia, descobriu-se dramaticamente que não há luz no fim do túnel. Na verdade, nem criaram o túnel.

P = Para que não fique com a pecha de mal-humorado, vamos falar de amenidades, encaixando uma coisa ou outra nos prognósticos para o ano que se inicia. Vamos lá? Primeira questão: o que tem a dizer sobre a juventude de hoje?

R = Não é em tudo que estou de acordo com a juventude. Agora, essa permissividade, essa revolução sexual, não sei não, mas é uma coisa que me interessa muito.

P = Coisa engraçada é ver como moças cheias de graça se engraçam por pessoas não tão engraçadas, para não dizer feias. Isso vai continuar?

R = Burro carregado de ouro é cavalo de raça.

P = Agora, uma pergunta de meu interesse: a gente aprende algo com a vida?

R = Uma coisa a vida ensina – a vida nada ensina.

P = Algum segredo para o rejuvenescimento, além de plástica e botox?

R = Só existe uma maneira segura para remoçar: é andar sempre com pessoas vinte anos mais velhas do que você.

P = Puxando a brasa pra minha sardinha: o que pensa dos mineiros?

R = Um mineiro nunca é o que parece, sobretudo quando parece o que é.

P = Melhor confissão de ateísmo.

R = Se Deus me der força e saúde, hei de provar que ele não existe.

P = E a fé?

R = Com fé você vence. Sem fé, você passa para trás os que venceram. 

P = Qual o argumento para provar que a mulher é necessária na vida do homem?

R = Todo homem precisa de uma mulher porque tem sempre uma coisa ou outra da qual realmente não se pode culpar o governo.

P = No fundo e a bem da verdade, o que vem a ser amor à verdade?

R = Chama-se de amor à verdade a nossa permanente tendência a descobrir defeitos nos outros.

P = As pessoas cada vez mais se apegam a seus animais de estimação. Você admira algum animal?

R = O camelo: é um animal que, depois de ficar dias sem comer nem beber, consegue passar pelo fundo de uma agulha, e entrar facilmente no reino do céu (embora eu gostaria de entender porque o camelo iria fazer isso – passar pelo buraco de uma agulha).

P = A felicidade nos torna felizes?

R = A felicidade faz a pessoa generosa. A generosidade acaba fazendo a pessoa infeliz.

P = O Facebook faz sucesso. Tem algo a dizer?

R = Atenção, meninada, fazer relações públicas não é tornar públicas as relações.

P = Por que você defende o divórcio?

R = O divórcio é muito importante porque permite a pessoa se casar uma primeira vez por interesse e, com o dinheiro desse primeiro casamento, casar de novo por amor. Já quem se casa por amor a primeira vez e perdeu tudo que tinha, adquiriu, nesse primeiro casamento, suficiente experiência pra ter mais juízo no segundo.

P = E o casamento?

R = O pior casamento é o que dá certo.

P = Teme a morte?

R = Bom é continuar a ser sem o não ser à espera. 

P = Algo mais?

R = Não vai ser assim, fácil, fácil, me botarem num cemitério. Vão ter que passar por cima do meu cadáver.

P = Algo que lamenta.

R = Tanta plástica no rosto, no seio, na bunda e ninguém aí pra inventar uma plástica no caráter.

P = Algo que você não tolera.

R = Um cara chato, aquele que conta tudo tintim por tintim e depois entra em detalhes.

P = O que fazer quando, ao longo do ano, baixar o desânimo, o tédio, a descrença?

R = Não desespere – no momento em que a vida lhe parecer realmente insuportável, desligue o celular e converse um pouco. 

P = Como aparentar ter boa reputação?

R = Para você ter reputação de extremamente honesto, basta, quando alguém na rua gritar “Pega ladrão!”, fingir que nem é com você. 

P = O que é viver?

R = Depois de não existir nunca e antes de desaparecer para sempre, a gente vive um pouco. 

P = Um sinal dos tempos modernos.

R = Vivendo hoje, a gente não pode deixar de ter saudade daqueles tempos em que a humanidade era mais pura e inocente, como em Sodoma e Gomorra. 

P = Carnívoro ou vegetariano?

R = Ao fim e ao cabo o homem que come carne é tão vegetariano quanto o homem que come vegetais. A carne é apenas a transubstanciação do capim que o animal come. 

P = Uma máxima que, no mínimo, cairia como luva para a laboriosa classe política.

R = Nunca deixe de não fazer amanhã o que pode deixar de fazer hoje.

P = Uma revisão histórica.

R = O maior erro de Noé foi não ter matado as duas baratas que entraram na Arca.

P = (Eu penso que é ter permitido a entrada de um casal de pernilongos). Uma prescrição médica.

R = Quando você está com a garganta muito inflamada, o melhor mesmo ainda é um bom gargarejo com água, sal e limão. Pode não melhorar a inflamação, mas serve para verificar se o pescoço não tem nenhum furo.

P = Uma prescrição psicológica.

R = Nos momentos de grande perigo é fundamental manter a presença de espírito, já que não é possível conseguir a ausência de corpo. 

P = Chegando aos finalmentes, uma boa receita para o Ano Novo.

R = Sempre que te derem um pontapé, oferece a outra nádega.

P = Na passagem de ano, assim como ao longo do ano, qual o conselho: beber com moderação ou tomar todas?

R = Beber é ruim. Mas é muito bom. Deve-se beber moderadamente, isto é, um pouco todos os dias. Isso não sendo possível, beber muito, sempre que der. Mas o abuso, como a moderação, tem que ser aprendido. O amador que abusa tende a ficar desabusado. 

P = Uma dica para o caso de uma pessoa se sentir mal.

R = Quando, ao apertar a barriga na altura do fígado, você sentir dor, deixe imediatamente de apertar.

P = E o Ano Novo?

R = Ano Novo, pois é. Coisa bem velha. Mas 2023 está aí mesmo... e o presidente Lula vai atender a todas nossas queixas. Queixem-se. Afinal, estamos numa democracia. Se fosse uma ditadura, você iria dizer: ‘Não posso me queixar’.  Boas entradas. 

P = Com Esperança?

R = Sim. Mas a Esperança tem que ter a audácia do desespero.

Etelvaldo Vieira de Melo


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