TOILETTE APRÈS LA MORT (46)



Quando se perturba a maré estelar,

tranquila estrela tamanho do sol

percorre sua órbita

a milhões de anos-luz

da Terra.

Em dado momento, passa perto

demais do buraco negro cem

vezes maior que o congênere astro

do dia iluminado. Resistir, quem há-de?

Nenhuma partícula gravitacional,

nenhuma luz aproximar-se da cava

se atreve. O orifício cresce sem saber

por quê?

Perdida, a bela espirala e cai

dentro dele,

emitindo irradiação.

Graça Rios


A GRANDEZA DAS PEQUENAS COISAS


É certo uma pessoa julgar que sua vida só tem sentido em razão de excepcionais acontecimentos, coisas extraordinárias ou quando consegue realizar um grande sonho?

Penso que não deve ser assim. Para ilustrar esse meu desacordo, recorro a uma história ocorrida com Mahatma Gandhi.

Já suficientemente famoso, Gandhi foi procurado um dia por dois jovens.

- Gandhiji – disseram eles com esse tratamento de afeição e respeito. – Queremos ser seus discípulos. Por favor, inicie-nos na vida espiritual.

Com muita bondade, Gandhi aceitou-os no seu ashram de Sevagram, encarregando-os de varrer o pátio coberto de folhas secas. Depois, um dos candidatos foi encarregado de descascar batatas para o almoço, enquanto o outro foi rachar lenha para acender o fogo. Depois do meio-dia, foram os dois enviados a uma aldeia vizinha para limpeza nas instalações sanitárias.

E assim por diversos dias.

Os dois discípulos esperavam ansiosos que Gandhi os convidasse, finalmente, para a cerimônia de iniciação espiritual; esperavam, talvez, que se fechasse com eles numa salinha misteriosamente iluminada, com o ambiente impregnado de perfume de incenso e, ao som de músicas sacras e fórmulas mágicas, lhes conferisse poderes extraordinários. Mas nada disso estava acontecendo. Ao contrário, sentiam-se bem cansados e desiludidos de tanto varrer pátio, descascar batatas, rachar lenha, limpar instalações sanitárias!

Finalmente, perderam a paciência e perguntaram ao Mahatma:

- Gandhi, quando começa o rito sagrado de nossa iniciação espiritual?

- Já começou – respondeu Gandhi. – Só falta uma pequena coisa.

- Que é que falta? – perguntou um dos iniciandos, cheio de esperança de ver chegado o momento solene.

- Falta vocês aprenderem a fazer grandemente as pequenas coisas – respondeu o Mahatma calmamente.

Decepcionados, os dois abandonaram no mesmo dia o ashram e, provavelmente, foram contar aos amigos que Gandhi nada entendia de iniciação espiritual, tanto assim que os mandou varrer, descascar batatas, rachar lenha, limpar privadas...

Existe pessoa que pensa assim: “Minha vida começará a ter sentido quando eu chegar aos 18 anos”. Ou, então: “Serei feliz quando me casar”. Outro: “Quando eu me formar”. E outro: “Quando eu comprar o meu carro”. E outro outro: “Quando ganhar o meu primeiro milhão”.

Não existe nada de errado ter um grande projeto de vida. É até importante, já que dá um rumo, uma orientação para os atos e comportamentos. Errado é achar que a vida se justifica e passa a ter sentido só com esses grandes acontecimentos. Muitas pessoas não vivem grandes acontecimentos, suas vidas são feitas de rotinas, nada de extraordinário lhes acontece! Então, suas vidas se justificam a partir de quê? Elas precisam se convencer do sentido de “limpar privadas, limpar instalações sanitárias”. Porque é isso que elas irão fazer durante toda a vida!

Mas a ideia de rotina incomoda muita gente. Quando dois conhecidos se encontram, uma das primeiras perguntas é: “E então, quais as novidades?”. O interrogado se sente em apuros para arranjar uma novidade qualquer. Se responde: “Está tudo velho, nada mudou”, é com um sentimento de culpa que ele diz isso, como se sua vida fosse uma porcaria.

Se você procura ser feliz com os pequenos acontecimentos e as pequenas conquistas de sua vida, certamente vai incomodar “amigos” e conhecidos. Eles irão dizer que você não pensa ‘grande’. Tenho comigo que, mesmo algo maravilhoso e sonhado lhe aconteça, se não sabe viver os momentos simples, não saberá viver esse extraordinário. Simplesmente, ele não vai caber dentro de si, você vai ficar sufocado. Igual aquela pessoa que rezava e dizia: “Deus, quero conhecer o Senhor, quero que o Senhor se mostre para mim. Mas, por favor, mostre-se aos poucos, venha devagarzinho. Porque, se o Senhor se revelar de uma vez, vai ser um choque tão grande... que até posso morrer de susto!”.

P.S. Eleutério, que ultimamente tem se especializado em ‘piloto de fogão’, manda este recado para os Leiturinos:

- Quando tiverem de descascar batatas, não se desesperem.

Etelvaldo Vieira de Melo


KLAXON



Perder-se no exílio da memória de navegantes cativos, vencidos, afogados... Com olhar blasé em constante mobilidade, guardar potência de viagem. Objetivo: Chegar ao porto impossível da linguagem. Pathos na escritura, sugigar-se entre zonas inquietíssimas do corpo. Figurar desejo, oco, vazio, palavra copiosa: aí, um malogro de linhas cruza o itinerário discursivo. É preciso ancorar nave em decúbito dorsal. Saber que letras fazem-se plásticas na ponta escura do cais. A impermanência, afasia do fantasma, solta páginas do livro 100 causas ou finalidade. No ponto cego do mapa, rajar forjar hipotético refluxo temático. Passaporte heteroglóssico, fingir simulacro de se ser. Fantoche, tentar tentáculo por escapar tweetando nu.

Graça Rios

QUESTÃO DE MÉTODO

 

Descartes, em uma frase mágica – “Cogito, ergo sum” – encontrou uma explicação primeira para suas dúvidas e um suporte para sua doutrina filosófica. Sempre achei estranho esse princípio cartesiano, mas nunca me preocupei seriamente com suas implicações: instituir a dúvida como método e, mesmo assim, tornar possível uma explicação primeira. Quero dizer: é sempre possível ir além com a dúvida. O próprio princípio “Penso, logo, existo” serve como exemplo. Penso porque existo, ou existo porque penso? Se existo porque penso, posso existir sem pensar? Se penso porque existo, não posso pensar não existindo? Explico: não existe a possibilidade de um “gênio maligno” que pense por mim? E, assim, sucessivamente, sempre em dúvida. Mas isso não vem a propósito, nem é meu propósito duvidar de Descartes. Ele tem suas razões, mesmo quando afirma que o pensamento de Deus é o único que existe indubitavelmente como realidade fora do eu pensante.

O meu propósito aqui é me servir da dúvida por uma questão de dúvida. Quero dizer que ela, a dúvida, não deve ser a disposição de quem quer compreender a realidade, buscando o conhecimento. Ter a dúvida como método é interpor uma barreira entre o “eu” e o que está aí, é olhar com grau de aumento para aquilo que deve ser apreendido com os olhos nus, é se servir de artifícios quando a arte é simples e sem mistérios: olhar e escutar tão somente.

Muito mais do que pela idade, uma criança se define pelo seu grau de ignorância, junto com seu poder de admiração e sua vontade de saber. À medida que o tempo passa, ela vai se tornando descrente, duvidando de tudo e de todos, julgando que sabe das coisas.

Se a dúvida é própria da condição humana, é preciso ficar atento para o perigo do hábito, se bem que existe a possibilidade de reparo para quem não consegue deixar de duvidar: duvidar um pouco mais, duvidando das próprias dúvidas e, enquanto isso, deixando que os objetos de conhecimento falem. Chegando a esse ponto, a realidade fica reparada e o duvidoso até mesmo satisfeito, uma vez que não deixa de duvidar.

Tenho comigo este princípio: é preciso ser simples, olhar para as pessoas e para a vida com olhos de simplicidade. Porque só a simplicidade é capaz de mostrar a exata dimensão de nossa ignorância. E é o reconhecimento da própria ignorância que poderá levar o indivíduo para o caminho da sabedoria, isto é, sentir a vida com sabor e com prazer. Pelo contrário, o olhar de dúvida, com sua crítica estéril, irá afastá-lo cada vez mais dos outros e da própria vida; os outros se tornando expressões vazias, enquanto a vida deixa de lado suas surpresas e seus encantos.

Com a proliferação das Redes Sociais, somos bombardeados diuturnamente por informações contraditórias. Nossa tendência é passar a duvidar de tudo, menos daquilo que é de nosso interesse. Com isso, permanecemos do mesmo tamanho, quando não piores, ao alimentarmos os monstros sanguinários que carregamos dentro de nós.

Amável Leiturino, caso fosse deixar uma recomendação para você, eu diria: leia este texto com os olhos da crítica, nunca com os olhos da dúvida. Com a crítica, você até poderá aproveitar alguma coisa; com a dúvida, você não irá levar nada, além da perda de tempo.

Etelvaldo Vieira de Melo

ALEGRES TRÓPICOS (44)

Imagem: Pinterest


Um pequeno nada

Muda tudo.

Bem vestida mal

Poso muy coquette

Ao som do blues.

Hálito à ping-pong,

Ganho truco à custa

De rapaz cria do ogro.

Rei rainha de ouro

Copas a preço de joia

Biju moeda cordão Rá

Lata roupa trapo sapo

Vendo venda certa

etc all

Graça Rios


SOBRE AS DECISÕES

 


Já houve tempo em que cultivei aquela pretensão de encontrar uma reposta para o sentido da vida, isto é, ser capaz de dar conta daquelas três perguntas terríveis: quem sou eu? de onde vim? para onde vou?

Cedo, desisti de tal empreitada. No entanto, ainda guardo alguns rascunhos daquela fase da vida. O texto de hoje é um daqueles e reflete sobre a necessidade e os riscos de tomar decisões, dar resposta pessoal aos desafios que enfrentamos no dia a dia. Ele fica aqui para sua apreciação, amável leiturino, e espero, sinceramente, que você não venha a procrastinar sua leitura...

Toda decisão de vida é difícil e se constitui, por assim dizer, verdadeiro salto para o desconhecido. Bem que gostaríamos de ver claro, de ter um mínimo de certeza, mas a racionalidade não nos garante nada, sendo incapaz de explicar nossos sentimentos mais íntimos e de dirigir nossos atos.

Conosco, quase sempre fica o medo de dar um passo à frente e, por isso mesmo, de acertar. E medo de acertar significa medo de ‘viver’. As oportunidades são únicas, não se repetem. Protelar as decisões é fugir dos caminhos da vida, é fazer hiato nas buscas de autoconhecimento, é distrair com paisagens efêmeras, quando um mundo de revelações está para se manifestar. Aquele que foge de suas decisões, foge da vida.

Muitos querem crer que a vida seja complexa. A vida, na sua essência, é simples. Mas nós fazemos gosto em complicar as coisas, pensando com isso estarmos agindo acertadamente. Não é verdade que tendemos a valorizar o mais complexo, menosprezando o que é simples e banal?

Quando não tenho coragem suficiente para viver a minha vida, passo a viver uma vida de acordo com a determinação dos outros. Isso acontece também quando não me aceito do jeito que sou, quando minha carência afetiva faz com que me anule diante do outro. E aquilo, aparentemente, passa a ser cômodo: viver em razão dos outros e negando o próprio ‘eu’. Mas nunca o mais cômodo significa o melhor, já que a vida, por si mesma, é um encargo difícil.

Muitas vezes, vivemos em função e de acordo com o outro e com o mundo, de tal modo eles e as circunstâncias alheias é que irão condicionar o nosso agir. As nossas alegrias buscarão nos outros a sua razão de ser. Mas a alegria verdadeira não é aquela que encontra nas outras pessoas sua justificativa ou explicação, mas no prazer íntimo de termos caminhado um pouco mais, na procura de nós mesmos.

Nós não somos números, não somos máquinas, não somos programados em série. Apesar dos riscos da manipulação de uma sociedade de consumo, através de seus modernos e cada vez mais sofisticados meios de domesticação, cada um é capaz de tomar conta de si mesmo, responder por seus atos, ter sua vida nas mãos, decidir livremente seus caminhos. E é esse poder de decisão (cada vez mais ameaçado) que faz a grandeza da condição humana.

Etelvaldo Vieira de Melo


SOFISMA (43)

 

Gente tem luas,

e fases, tem.

Luas têm fases,

mas gente, ninguém.

 

Luas viram vezes quatro.

Mil proezas viram frases.

 

Gente faz frase. Pós-alua.

Nova, crescente, cheia,

 

descrente

minguante, puro gen

Graça Rios

ONDE ESTÁ A HONESTIDADE?

 


Sem dúvida, a honestidade é uma virtude que anda fazendo muita falta nos dias de hoje. Nos tempos de antigamente, as pessoas também reclamavam de sua falta, tanto é que o próprio Jesus chamava a atenção para os lobos que se escondem sob a pele de cordeiros e criticava os fariseus, apelidados de sepulcros caiados.

Se meu propósito de vida é ser feliz, preciso aprender a agir com honestidade, com sinceridade para com os outros e, principalmente, para comigo mesmo, não querer as coisas só com palavras, só da boca para fora.

Certo dia, um discípulo foi ter com o mestre e lhe disse:

- Mestre, quero encontrar a Deus!

O mestre olhou o jovem discípulo e limitou-se a sorrir.

O discípulo vinha diariamente procurar o mestre e repetia-lhe sempre as mesmas palavras. Dizia que estava em busca de Deus e que queria ser religioso. O mestre, porém, nada respondia.

Num dia em que o calor era muito intenso, o mestre pediu ao discípulo que o acompanhasse até o rio, próximo dali, para, juntos, atravessá-lo a nado.

Lá chegados, o discípulo lançou-se à água. O mestre o acompanhou. Quando estavam em meio à corrente, o mestre, agarrando seu discípulo pelos cabelos, segurou-o embaixo da água alguns instantes. O discípulo estava a ponto de morrer sufocado. O mestre, então, largou-o e perguntou-lhe:

- De que é que mais desejo você tinha quando estava submerso?

- De ar – respondeu o discípulo, respirando fundo.

O mestre continuou:

- Será que neste instante você tem tanto desejo de Deus quanto tinha de ar há pouco? E, se o desejar tanto assim, irá encontrá-lo no mesmo instante. Se, porém, você não tem tal desejo e tal sede de encontrar a Deus, é melhor que lute com toda a sua mente, com todo o seu coração, com seus lábios, porque não o encontrará. Sem essa sede de Deus, melhor faria continuando ateu. Porque um ateu pode, muitas vezes, ser sincero, ao passo que você não é.

Tempos atrás, quantas e quantas vezes eu me surpreendi fazendo promessas de mudanças que nunca cumpri. Tudo porque agia como aquele estudante que, no início do ano letivo, dizia para si mesmo: “- Este ano será diferente. Serei um ótimo aluno e terei o melhor rendimento escolar possível!”. E ele compra um caderno especial para as anotações de aula, chega a colar uma ilustração bonita na primeira página, junto com uma mensagem bacana. O tempo passa, ele começa a cuidar mal do caderno, a rabiscar e a arrancar as páginas. Quando chega o final do ano, o caderno está todo arrebentado e o dono está muito mais, pois foi desonesto, mentiroso, falou uma coisa que não sentia verdadeiramente.

Ampliando o tema, com a Internet e suas Redes Sociais, falar de honestidade quase virou sinônimo de bobeira, com a mentira se tornando a grande vedete do mundo moderno. Se todos fossem honestos, não haveria mentira. Você já imaginou como seria viver num mundo sem mentiras? Já pensou, por exemplo, se os políticos só dissessem a verdade? Não estaríamos vivendo num paraíso?

O título desta crônica foi emprestado de uma música de Noel Rosa em parceria com Francisco Alves, lançada em 1933. Nela, Noel faz uma premonição, quase apontando o dedo para determinado político, aquele que, além de deixar um rombo de bilhões na Caixa Econômica tentando comprar sua reeleição, foi pego querendo passar debaixo dos panos (da alfândega) um lotezinho de joias: “O seu dinheiro nasce de repente / E embora não se saiba se é verdade / Você acha nas ruas diariamente / Anéis, dinheiro e até felicidade / E o povo já pergunta com maldade / Onde está a honestidade? / Onde está a honestidade?”.

Etelvaldo Vieira de Melo


O FANTASMA DA OPERÁRIA OBRA (42)

 


Nós, amantes, somos meio surdas:
Damos as coxas em lugar do olvido.
Somos devassas, sim,
onde o arco enverga aorta,
transparentes por detrás da cortina
onírica ou som de alhures vós
& vozes

Graça Rios