QUESTÃO DE MÉTODO

 

Descartes, em uma frase mágica – “Cogito, ergo sum” – encontrou uma explicação primeira para suas dúvidas e um suporte para sua doutrina filosófica. Sempre achei estranho esse princípio cartesiano, mas nunca me preocupei seriamente com suas implicações: instituir a dúvida como método e, mesmo assim, tornar possível uma explicação primeira. Quero dizer: é sempre possível ir além com a dúvida. O próprio princípio “Penso, logo, existo” serve como exemplo. Penso porque existo, ou existo porque penso? Se existo porque penso, posso existir sem pensar? Se penso porque existo, não posso pensar não existindo? Explico: não existe a possibilidade de um “gênio maligno” que pense por mim? E, assim, sucessivamente, sempre em dúvida. Mas isso não vem a propósito, nem é meu propósito duvidar de Descartes. Ele tem suas razões, mesmo quando afirma que o pensamento de Deus é o único que existe indubitavelmente como realidade fora do eu pensante.

O meu propósito aqui é me servir da dúvida por uma questão de dúvida. Quero dizer que ela, a dúvida, não deve ser a disposição de quem quer compreender a realidade, buscando o conhecimento. Ter a dúvida como método é interpor uma barreira entre o “eu” e o que está aí, é olhar com grau de aumento para aquilo que deve ser apreendido com os olhos nus, é se servir de artifícios quando a arte é simples e sem mistérios: olhar e escutar tão somente.

Muito mais do que pela idade, uma criança se define pelo seu grau de ignorância, junto com seu poder de admiração e sua vontade de saber. À medida que o tempo passa, ela vai se tornando descrente, duvidando de tudo e de todos, julgando que sabe das coisas.

Se a dúvida é própria da condição humana, é preciso ficar atento para o perigo do hábito, se bem que existe a possibilidade de reparo para quem não consegue deixar de duvidar: duvidar um pouco mais, duvidando das próprias dúvidas e, enquanto isso, deixando que os objetos de conhecimento falem. Chegando a esse ponto, a realidade fica reparada e o duvidoso até mesmo satisfeito, uma vez que não deixa de duvidar.

Tenho comigo este princípio: é preciso ser simples, olhar para as pessoas e para a vida com olhos de simplicidade. Porque só a simplicidade é capaz de mostrar a exata dimensão de nossa ignorância. E é o reconhecimento da própria ignorância que poderá levar o indivíduo para o caminho da sabedoria, isto é, sentir a vida com sabor e com prazer. Pelo contrário, o olhar de dúvida, com sua crítica estéril, irá afastá-lo cada vez mais dos outros e da própria vida; os outros se tornando expressões vazias, enquanto a vida deixa de lado suas surpresas e seus encantos.

Com a proliferação das Redes Sociais, somos bombardeados diuturnamente por informações contraditórias. Nossa tendência é passar a duvidar de tudo, menos daquilo que é de nosso interesse. Com isso, permanecemos do mesmo tamanho, quando não piores, ao alimentarmos os monstros sanguinários que carregamos dentro de nós.

Amável Leiturino, caso fosse deixar uma recomendação para você, eu diria: leia este texto com os olhos da crítica, nunca com os olhos da dúvida. Com a crítica, você até poderá aproveitar alguma coisa; com a dúvida, você não irá levar nada, além da perda de tempo.

Etelvaldo Vieira de Melo

1 comentários:

Anônimo disse...

Etel
Gostei do texto, mas continuo com dúvidas. Explico-me: dúvidas que se abrem para a criticidade. Inté.
Mauro Passos

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