Uma das ideias que mais prezo é a de que tudo
na vida deve ser contextualizado. Acontecimentos, palavras e maneiras de pensar
só poderão ser bem compreendidos sob a ótica do contexto em que foram criados.
A narrativa abaixo pode provocar indignação
em algumas pessoas. No entanto, é preciso considerar o contexto em que tudo
aconteceu. Foi uma cerimônia de casamento. Desde o começo vi que aquilo não ia
dar certo.
A cerimônia deveria acontecer às dezenove e trinta;
no entanto, ela se atrasou por cerca de uma hora e quarenta minutos. Enquanto
isso, o templo ia se enchendo de gente, e o calor começou a se tornar insuportável,
e alguém teve a ideia de ligar alguns ventiladores, e eles atingiam em cheio os
cabelos de mulheres e moças (que haviam se produzido com todo esmero para a
cerimônia), e aquilo era um fato que deixava todas elas aborrecidas, e todas as
pessoas ali presentes, com duas ou três exceções, começaram a se sentir
aborrecidas, vendo o tempo passar e nada do entrevero começar.
O tempo já beirava as vinte e duas horas
quando o pastor começou a berrar suas locuções, que começaram a se espalhar
irritantes pelo templo, atingindo as adjacências por um raio de 2,5 quilômetros.
Ele nem precisaria usar de microfone, já que seu tom de voz era tão alto que,
se ali estivesse um fiscal da prefeitura, haveria de lhe aplicar uma sonora
multa, por excesso de decibéis.
E lá estava o dito pastor falando seus
impropérios, cuidando de destrinchar o livro do Gênesis, em sua narrativa sobre
a criação do homem e da mulher. A interpretação dada pelo cujo era tal como
estava escrito, ipsis litteris, sem tirar nem pôr.
Ora, convenhamos, aquela narrativa fala dos
tempos antigos, quando havia um acordo tático, com a mulher dizendo assim para
o homem:
- Vou cuidar da comida e dos afazeres do lar;
enquanto isso, você cuida do provimento da casa, usando de sua força bruta.
O homem, então, pensou: “Eu serei o varão, o
senhor, a cabeça da família”.
Enquanto isso, pensou a mulher: “Sei o que
você está pensando e eu vou deixar você pensar assim. Por enquanto, como
adiantamento, vou segurá-lo pela barriga” – numa alusão ao fato de ser ela a
dona da cozinha e ao ditado de que a mulher segura o homem pelo estômago
(agora, as coisas estão mudando). A mulher também sabia que era dona de outras
chaves que abriam outras portas, portões e cancelas. Por isso, ela haveria de
ter seu homem sempre à mão.
O pastor, contudo, parece nunca ter percebido
isso. Sua fala era dirigida quase que exclusivamente ao noivo, tratado de
varão, senhor, cabeça.
Nesta altura, minha esposa, Percilina, me
cutucou, sussurrando ao meu ouvido:
- Não sou nenhuma mula sem cabeça, não!
A fala do reverendo depreciava tanto a
mulher, que eu não via a hora em que todas haveriam de se levantar e,
indignadas, deixariam o templo.
Isso não ocorreu porque a noiva teve o
cuidado de preparar a liturgia segundo suas conveniências, com encenações que
contrariavam as palavras do celebrante. Por exemplo: enquanto ele vociferava
varão pra cá e varão pra lá, um casal de crianças ia pelo centro do templo em
direção aos noivos, levando as alianças. O menino puxava uma carroça... onde a
menina estava acomodada.
Ao final de tudo, ao contrário de meu temor,
todos saíram felizes do templo: o pastor e os homens com o sentimento de serem
senhores; as mulheres rindo interiormente, confortadas com o recado dos gestos
daquela celebração; o público em geral, aliviado da verborragia e dos
ventiladores.
Tudo conforme ao que ouvi Percilina falando,
certo dia, para nossa filha, Deusarina:
- Os homens necessitam do sentimento de
autoridade. A gente só finge que aceita. Assim, eles pensam que mandam,
enquanto fingimos que obedecemos. É nesse jogo de faz de conta que iremos
exercer nossa dominação, usando de nossas poderosas armas.
É por isso que, depois de muitos anos de
estrada, acatei as sábias palavras do ditado ‘manda quem pode, obedece quem tem
medo de prejuízo”.
Etelvaldo Vieira de Melo
2 comentários:
Gostei muito do texto. E o final? Ah! Obedecer é romper tratados, nesse contexto! Ainda mais que o contexto ilustra o texto. Gostei muito, Etel.
Mauro Passos
"Pequenas Igrejas,
Grandes Negócios."
As crenças organizadas, incluindo a seita bolsonazista, se converteram em organizações criminosas e milícias de toda ordem. Não há mais nenhum PONTO COM A VERDADE ou religiosidade 🤢
Postar um comentário