LEMBRANDO FINADOS


Passando em frente a uma capela-velório de determinado cemitério, vislumbrei este cenário: no centro da sala estava um caixão; ao seu lado, um castiçal daqueles grandes, com a vela acesa; sentada num banco lateral, havia uma mulher, com o rosto cabisbaixo.

Tudo era simples naquele ambiente: o caixão era de ripas armadas, revestidas de tecido roxo, a mulher estava vestida de maneira pobre, não havia aquelas tradicionais coroas de flores.

Em um primeiro momento, tal cenário me fez voltar no tempo para minha pequena cidade natal, quando morria alguém. Se o falecido era rico, além dos tradicionais avisos espalhados pelo serviço de alto-falante da igreja matriz (“A família de fulano de tal comunica aos parentes e amigos o seu falecimento, ocorrido..., e convida para seu sepultamento a ser realizado...”), tinha ele também direito à missa de corpo presente. Se o defunto era pra lá de rico, tinha o acompanhamento do vigário até o cemitério.

A população da cidade quase inteira se mobilizava para aquele evento; todos procuravam se vestir com esmero, retirando dos armários vestes-especiais-cheirando-à-naftalina. As ruas que davam acesso ao cemitério ficavam interditadas para veículos, enquanto que o dia se transformava naturalmente em feriado municipal.

Quando o defunto era uma pessoa pobre, o cenário era bem outro. Ninguém tomaria conhecimento, não fosse o aviso pelo alto-falante da igreja, a cidade não quebrava sua rotina. Muitas vezes, além dos quatro carregadores, o féretro tinha a companhia de duas, três pessoas mais. O caixão era transportado à margem da estrada, os acompanhantes iam de cabeça baixa, quase que em gesto de pedido de desculpas por estarem incomodando as pessoas, feito o morto da “Construção”, de Chico Buarque, que viveu na contramão atrapalhando o público e morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

Fico pensando: o ser humano não toma jeito; até na hora da morte, ele julga que uns valem mais do que os outros. Minha esperança é que fique valendo aquilo que Gilberto Gil cantava na sua música “Procissão”: Jesus prometeu vida melhor para o pobre que vive nesse mundo sem amor, mas só depois de entregar o corpo ao chão, só depois de morrer nesse sertão.

 

Dia 2 de novembro, reverenciamos aqueles que amamos e nos deixaram. Esta data vem nos mostrar que estamos sempre partindo, sempre dizendo adeus, independente das conotações de riqueza ou pobreza. Celebrar os Finados é renovar a esperança de uma das mais singulares emoções da vida: o reencontro das pessoas queridas que nos deixaram. Tal data nos ensina também, como haveria de dizer Charles Chaplin, a dar adeus às pessoas que amamos, sem tirá-las do nosso coração.


Enterro de pobre

que encobre tão bem

a dor que causou

 

Adeus de alguém

que parte sem sentir

tudo aquilo que deixou

 

Sentimento escondido

em coração marcado

procurando esquecer

 

Esquecer o adeus

a dor e o vazio

... para sobreviver

Etelvaldo Vieira de Melo



SENTOU NA BOLA, SAMBALELÊ?


 

Porco coelho raposa

leão urso

cavalo

jacaré onça

gato tigre

   cobra

tico-tico

ar

fogo

terra

água, mico,

nóis arranca rabo

e

racha os bico,

timim surubico.

Graça Rios


PRENOME, NOME, SOBRENOME


No belo poema “Minha História”, Chico Buarque fala de um amor bandido onde a mulher, após ser abandonada pelo amante, fica ‘parada, pregada na pedra do porto, com o olhar cada dia mais longe’. Quando, enfim, nasce o bebê, não se sabe se por ironia ou por amor, resolve chamá-lo com o nome do Nosso Senhor. E a história do personagem passa a ser esse nome que carrega consigo.

O nome é algo tão pessoal, íntimo, que só deveríamos dizê-lo para as pessoas próximas, como fazem os orientais. Em muitos países, acredita-se que saber o nome de uma pessoa é ter um domínio sobre ela. 

Creio que não existe sangue oriental correndo em minhas artérias e veias, mas concordo com essa reverência ao nome. Ele expressa nossa individualidade, ele nos identifica como seres únicos e originais. Como a sociedade moderna evoluiu para os grandes centros urbanos, intensas transformações e o rompimento com valores tradicionais geram o que especialistas chamam de anomia, que é a desintegração das normas sociais. Esse estado anômico, de contradição entre as normas sociais e de ausência de valores, com certeza, é uma das matrizes das chamadas “redes sociais”, com tudo de bom e de ruim que elas podem acarretar. Outra consequência da concentração em grandes centros urbanos é o anonimato, que é a perda do nome, da assinatura própria, com a identidade ficando escondida. Hoje, o nome perdeu a sua razão de ser e as pessoas passaram a ser identificadas por números: os do CPF, do RG, do Cartão de Crédito, da Conta Bancária, do número do apartamento. Daí, a solidão corroendo a vida das pessoas e só indo embora quando elas são ‘re-conhecidas’ e identificadas pelo nome. (A bem da verdade, é muito mais simples e conveniente para o “Sistema” e seu entorno lidar com números, em vez de pessoas: um número é manipulável e descartável.)

Sempre procuro designar com os nomes as pessoas de minhas relações, mesmo aquelas estritamente profissionais. Quando sou atendido por alguém, minha primeira preocupação é saber “qual é mesmo o seu nome?”. Agindo assim, espero estar confrontando o sistema, tornando as comunicações mais humanas.  

Por detrás de cada nome há sempre uma história. Na minha família, depois de muitos nomes triviais, meus pais, assim que nasci, confabularam:

- Vamos colocar um nome diferente em nosso filho. Quem sabe, assim, sai algo que presta.

Escolheram Etevaldo, um nome bastante raro. O escrivão da cidade, movido por algumas doses etílicas, resolveu radicalizar e torná-lo único: acrescentou um “l”, tornando-me Etelvaldo. Tenho comigo, desde que me entendo por gente, que devemos nos conformar ao destino (maktub!), já que tudo poderia ser pior do que é. Imagina se o teor alcoólico fosse maior e o escrivão enxergasse um tanto de “l” - Eltelvaldol! Creio que não teria sobrevivido até a idade hábil para efetuar uma mudança, eu que, até minha adolescência, havia contabilizado mais de 50 apelidos!

Se você observar com atenção, vai notar que as páginas deste blog estão permeadas de vários nomes, muitos deles exóticos. Eu mesmo me nomeio com os heterônimos de Eleutério, Ingenaldo, Cinisvaldo, Fridolino Xexeo, Tertuliano, Loprefâncio.

No fundo, eu gostaria de passar a ideia de que é preciso recuperar a humanidade do ser humano. Como diria Charles Chaplin, nós não somos máquinas, não somos números! O primeiro passo seria o de abolir as senhas secretas, os códigos e os números, com as pessoas sendo identificadas e tratadas por seus nomes. Como o mesmo Chaplin diz: “Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.”  A guerra que está aí mostra isso, com a morte de pessoas sendo reduzidas a números, dados para estatísticas. 

Etelvaldo Vieira de Melo


A LOGÍSTICA & UM AMIGO

 




Uma coisa que aprendi com Eduardo Pazuello, mesmo ele não querendo ensinar, foi a importância de se aplicar a Logística sempre que necessário. Quando vi aquele general conseguir levar o número de mortes pela covid para mais de setecentas mil, como queria seu chefe capitão, e ainda assim se eleger para deputado federal, pensei com meus botões: - Essa Logística é foda!

A partir de então, dona Logística passou a fazer parte de meu dia a dia. Hoje foi a vez de empregá-la na compra trimestral de medicamentos aos quais sou submetido.

Primeiro, fiz uma prévia na Internet entre as drogarias mais em conta. Quando fui fechar com uma, vi que nem todos os medicamentos eram disponibilizados. Achei por bem ir até a cidade, para confrontar os preços de duas delas, tendo por base o levantamento que havia feito.

Na primeira drogaria, depois de ter me submetido a uma pequena fila, vi que a Logística recomendava comprar todos os medicamentos ali mesmo. Foi o que fiz, ainda cometendo a extravagância de levar junto um complexo vitamínico que não estava na lista (reflexo condicionado de crônica passada, quando dissertei sobre o Russo e sua vitamina M (você leu, amigo Leiturino?).

Quando saí da drogaria, percebi que as pessoas na rua me olhavam com comiseração. Pensei comigo: - Por que esse olhar de compaixão das pessoas? Ao me dar conta, vi que os medicamentos eram transportados numa sacola transparente. Quando as pessoas viam aquela quantidade de remédio, deviam pensar: - Coitado, esse aí está mais pra lá do que pra cá! Não sei bem, mas cheguei a suspeitar de ter visto uma lágrima furtiva deslisando pelo rosto de uma jovem senhora.

Não sei bem por quê, aquela situação me fez lembrar uma outra vez em que estive internado por duas semanas num hospital, devido a um leve problema cardíaco.

Nesse período, recebi visitas de alguns vizinhos, parentes e amigos.

Cleber lá esteve com sua namorada, Adélia. Tratava-se de uma pessoa com agudo senso de humor (infelizmente, ele já partiu dessa). Logo, quis se informar sobre o histórico do que havia acontecido. Minha esposa, Percilina, começou a contar, em detalhes: as dores, o mal-estar, a ida aos hospitais... Não aguentando tanto suspense, Cleber perguntou, interrompendo aquela narrativa novelesca:

- Afinal, nosso amigo teve ou não teve um infarto?

(Entre parênteses, registro um diálogo que não existiu, mas que ficou subentendido:

- Tive, sim! Até parece que você faz parte daqueles que praticam o que chamo de “solidariedade mórbida”, tal seu grau de ansiedade.

- Vamos, apresente os detalhes dos exames.

- Bom, o cateterismo constatou uma ponte miocárdica na artéria descendente anterior, com grave constrição no 1/3 médio.

- Não entendi nada, mas continue.

- Vê se entende: uma artéria, ao invés de passar sobre o músculo do coração, inventou de passar por baixo, como se fosse um metrô. O batimento cardíaco comprime essa artéria, o que pode provocar dor. Em sentido figurado, com essas chuvas, uma ponte sobre o meu coração está com a estrutura abalada e necessita de reparos de engenharia, ou seja, de medicamentos.

- Deu pra entender. Mas é só isso?

- Não, tem mais para seu sadismo: o segundo ramo diagonal exibe obstrução grave no 1/3 proximal, ou seja, apresenta aterosclerose com obstrução luminal grave (99%), o que requer angioplastia com implante de stent.

- Ah, agora estou plenamente satisfeito e vejo que não foi perda de tempo esta visita, eu que temia ser tudo um falso alarme.)

Depois de ouvir as explicações de minha esposa, ele se levantou e começou a vasculhar as coisas que estavam no quarto. Pegou um livro de J.K. Rowling, autora dos sete livros que compõem a série Harry Potter, e perguntou:

- Quem está lendo este livro?

- Sou eu - falou Percilina.

- Mas você tinha de vir com este livro para cá?

O título do livro era “MORTE SÚBITA”.

- Você não faz ideia do pior, Cleber – eu falei. – Imagine que Percilina me trouxe uma revista Seleções outro dia. A manchete de capa era: “45 segredos que os cirurgiões não diriam a você”. Quando comecei a comentar a reportagem, ela tratou logo de me tomar a revista...

Pouco tempo antes de se retirar com Adélia, me deixou a recomendação de que praticasse Tai Chi Chuan e deu exemplos de exercícios. Para ele, baixinho e magrinho, até foi bem. Como tenho uma certa obesidade na região abdominal e, definitivamente, não disponho de coordenação motora, já naquela época achei que seria dificílimo para mim...

A lembrança do Cleber veio assim a propósito dos medicamentos. Na verdade, me senti bem reconfortado quando pensei naquele amigo. 

Quanto a Logística, depois de ter experimentado tantos olhares de simpatia (por causa da sacola de medicamentos), peguei o ônibus e estou retornando para casa. Lá, Percilina e Deusarina me aguardam. Falei para Deusarina que devo chegar em 20 minutos, para lhe preparar um café gourmet.  O trânsito está agarrado. Só espero que ele não venha jogar por terra todo meu esquema logístico.

Etelvaldo Vieira de Melo


CACA & COCA

 

ET Elvoaldo Vaibém,

indo vindo em

vem cá, meu bem,

tão tico-tico

quão surd’bico,

maneja pão de queijo

com xarope de carquejas,

e galinhando, cacareja.

Paz e Amor. Oh, Dor!

Tem um pesadelo,

escrevendo o besta selo

“Memórias  do Grão Suor d’Anã Giga-Lombriga,

Ultrafã do Maior Cãotôr, Thor”.

Graça Rios

 

UMA CONVERSA AMIGÁVEL

 
Imagem: Pinterest

Em plena segunda-feira, oito horas da manhã, a campainha toca e, ocasionalmente, escuto. Vou saber quem é:

- É o Jésus – fala alguém pelo interfone.

Dividido entre os sentimentos de ir e não ir atender, ainda tomado pelo sono, sem saber direito de quem se trata efetivamente, respondo:

- Aguarde só um momentinho.

Troco de roupa, coloco os óculos. Deixo de lado o aparelho auditivo, que tomaria muito tempo para ser ajustado.

Quando abro o portão, vejo que se trata de um velho amigo, que não via há muito tempo.

- Passando em frente, resolvi toca a campainha, pensando que talvez nem morasse aqui mais.

- Puxa, Jésus, é um prazer ver você, depois de tanto tempo.

Conversa vem, conversa vai, fico sabendo que ele construiu uma casa em cidade perto e resolveu ficar por lá. Sua casa, próxima da minha, ficou com o filho, com quem não combina direito. Quando abrem a boca um para o outro, sai é briga. Das novidades que me contou, uma diz respeito à sua saúde, que não anda nada bem. A pressão só fica na casa dos 20, sua perna esquerda anda inchada, com problema de circulação. Mesmo assim continua trabalhando. Jésus é pedreiro.

Eu o conheci justamente por isso, pelas vezes que precisei fazer algum serviço em casa. Jésus já trabalhou aqui várias vezes. Menos do que eu gostaria, já que sua mão-de-obra não era barata e, muitas das vezes que precisei de um pedreiro, a situação financeira não andava boa das pernas.

Foi assim que brotou uma amizade entre nós. Somado a isso, havia também o fato dele ser um passarinheiro e, naquela época, cismei em ter passarinhos em casa. Desse modo, ele me forneceu várias espécies: belga, trinca-ferro, azulão, pintassilgo, pássaro-preto, chapinha e até mesmo uma espécie rara, chamada sofreu.

Ao fim do dia e nos finais de semana, tinha até que enfrentar fila para entrar na sua residência, tal o número de pessoas querendo fazer “catira”, quer dizer, negócios. Jésus atendia a todos, fazendo questão de oferecer a cada cliente um cafezinho. Uma garrafa térmica estava sempre à mão, bem próxima da gaiola de um papagaio linguarudo.

Entre os frequentadores, havia um rapaz de nome Ivair. Ele falava com voz arrastada, com jeito de retardado. Mas aquilo era só aparência, pois o moço era de uma esperteza sem igual para fazer negócios. Até no Jésus ele passava manta. Eu mesmo cheguei a levar alguns tombos deles, ao comprar, entre outros, um trinca-ferro, tido como macho, mas que era fêmea, e um chapinha danado de bravo e que não cantava tiririca.

Ivair sempre se apresentava do mesmo jeito, vestindo uma camisa do Atlético toda desbotada, e isso pra mais de ano de convivência.

Na conversa com Jésus, no portão de casa, lembramos do Ivair.

- Você não sabe, Jésus – falei -; por esses dias, vi o Ivair. Ele está quase do mesmo jeito, só que com cabelos brancos e, o mais extraordinário, com uma camisa nova do Atlético!

Entre as novidades que Jésus me contou, teve aquela que me deixou pesaroso: a morte de outro vizinho amigo, o Abel. Esse era uma figura antológica no bairro, que ficava, invariavelmente, de terça a sábado, sentado numa cadeira em frente à sua residência, na avenida principal do bairro, ali do outro lado da antiga padaria do Altamiro (as segundas eram reservadas para idas ao centro da cidade; nos domingos, ele dava um tempo aos ouvidos). Muitas e muitas pessoas, eu inclusive, iam até ele querendo saber das novidades e também precisando jogar conversa fora.

Ao saber da notícia de seu passamento, logo imaginei ele no céu, sentado numa cadeira, com as pernas cruzadas, conversando com São Pedro e um tanto de gente. Assunto é que não vai faltar. Só espero que não falem mal a meu respeito, eles que, lá de cima, enxergam tudo que acontece aqui embaixo e sabem muito bem que, no fundo, no fundo, não sou flor que se cheira.

Quando nos despedimos, Jésus fez questão de, mais uma vez, apertar minha mão, gesto que, para ele, significa consideração e respeito, eu sei.

Foi o que lhe disse, quando já estava se afastando:

- Cuide direitinho de sua saúde, Jésus. Nós, seus amigos, não queremos ver você doente.

Etelvaldo Vieira de Melo



ANÁGUA DE CEREJA (62)


 

Assim, eu te revelo

pequena janelinha

de rósea carne

ou mesmo provoco

 

um escândalo de paixão

quixotesca,

onde o grafo se jogue

no último

lance de dados.

 

Cometo, contigo,

a mais alta infidelidade

na ordem textual.

 

Vê o movimento

do corpus poético:

A littera dura

segue rasurada.

Más caras!