Em
plena segunda-feira, oito horas da manhã, a campainha toca e, ocasionalmente,
escuto. Vou saber quem é:
-
É o Jésus – fala alguém pelo interfone.
Dividido
entre os sentimentos de ir e não ir atender, ainda tomado pelo sono, sem saber
direito de quem se trata efetivamente, respondo:
-
Aguarde só um momentinho.
Troco
de roupa, coloco os óculos. Deixo de lado o aparelho auditivo, que tomaria
muito tempo para ser ajustado.
Quando
abro o portão, vejo que se trata de um velho amigo, que não via há muito tempo.
-
Passando em frente, resolvi toca a campainha, pensando que talvez nem morasse
aqui mais.
-
Puxa, Jésus, é um prazer ver você, depois de tanto tempo.
Conversa
vem, conversa vai, fico sabendo que ele construiu uma casa em cidade perto e
resolveu ficar por lá. Sua casa, próxima da minha, ficou com o filho, com quem
não combina direito. Quando abrem a boca um para o outro, sai é briga. Das
novidades que me contou, uma diz respeito à sua saúde, que não anda nada bem. A
pressão só fica na casa dos 20, sua perna esquerda anda inchada, com problema
de circulação. Mesmo assim continua trabalhando. Jésus é pedreiro.
Eu
o conheci justamente por isso, pelas vezes que precisei fazer algum serviço em
casa. Jésus já trabalhou aqui várias vezes. Menos do que eu gostaria, já que
sua mão-de-obra não era barata e, muitas das vezes que precisei de um pedreiro,
a situação financeira não andava boa das pernas.
Foi
assim que brotou uma amizade entre nós. Somado a isso, havia também o fato dele
ser um passarinheiro e, naquela época, cismei em ter passarinhos em casa. Desse
modo, ele me forneceu várias espécies: belga, trinca-ferro, azulão,
pintassilgo, pássaro-preto, chapinha e até mesmo uma espécie rara, chamada
sofreu.
Ao
fim do dia e nos finais de semana, tinha até que enfrentar fila para entrar na
sua residência, tal o número de pessoas querendo fazer “catira”, quer dizer,
negócios. Jésus atendia a todos, fazendo questão de oferecer a cada cliente um
cafezinho. Uma garrafa térmica estava sempre à mão, bem próxima da gaiola de um
papagaio linguarudo.
Entre
os frequentadores, havia um rapaz de nome Ivair. Ele falava com voz arrastada,
com jeito de retardado. Mas aquilo era só aparência, pois o moço era de uma
esperteza sem igual para fazer negócios. Até no Jésus ele passava manta. Eu
mesmo cheguei a levar alguns tombos deles, ao comprar, entre outros, um
trinca-ferro, tido como macho, mas que era fêmea, e um chapinha danado de bravo
e que não cantava tiririca.
Ivair
sempre se apresentava do mesmo jeito, vestindo uma camisa do Atlético toda
desbotada, e isso pra mais de ano de convivência.
Na
conversa com Jésus, no portão de casa, lembramos do Ivair.
-
Você não sabe, Jésus – falei -; por esses dias, vi o Ivair. Ele está quase do
mesmo jeito, só que com cabelos brancos e, o mais extraordinário, com uma
camisa nova do Atlético!
Entre
as novidades que Jésus me contou, teve aquela que me deixou pesaroso: a morte
de outro vizinho amigo, o Abel. Esse era uma figura antológica no bairro, que
ficava, invariavelmente, de terça a sábado, sentado numa cadeira em frente à
sua residência, na avenida principal do bairro, ali do outro lado da antiga
padaria do Altamiro (as segundas eram reservadas para idas ao centro da cidade;
nos domingos, ele dava um tempo aos ouvidos). Muitas e muitas pessoas, eu
inclusive, iam até ele querendo saber das novidades e também precisando jogar
conversa fora.
Ao
saber da notícia de seu passamento, logo imaginei ele no céu, sentado numa
cadeira, com as pernas cruzadas, conversando com São Pedro e um tanto de gente.
Assunto é que não vai faltar. Só espero que não falem mal a meu respeito, eles
que, lá de cima, enxergam tudo que acontece aqui embaixo e sabem muito bem que,
no fundo, no fundo, não sou flor que se cheira.
Quando
nos despedimos, Jésus fez questão de, mais uma vez, apertar minha mão, gesto
que, para ele, significa consideração e respeito, eu sei.
Foi
o que lhe disse, quando já estava se afastando:
-
Cuide direitinho de sua saúde, Jésus. Nós, seus amigos, não queremos ver você
doente.
Etelvaldo Vieira de Melo
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