DESERTO

Vão arrancar as árvores
da Avenida Bernardo Monteiro.                                       
Dizem que as flores estão doentes
por isso vão arrancá-las.
Primeiro, mandaram embora
Imagem: forumpatrimonio.com.br
a feira que vendia rosas,
orquídeas, samambaias.
Agora, vão arrancar
as árvores centenárias
vão plantar aridez
na Avenida.
Se estavam doentes,
por que não as trataram?
Por que fazer um arranjo
de ônibus, num dos
Imagem: hojeemdia.com.br


únicos arvoredos de BH?
A cada árvore que arrancam
o mundo fica mais seco
e os corações mais frios.
Que arranquem as árvores feridas,
mas plantem outras no lugar,
porque a cidade-jardim,
a cada árvore exterminada,
vai se tornando selva de pedra.
E o povo, também arrancado
de suas raízes,
caminha junto para as covas,
com o suor e a seiva tirados
pelos que vão ganhar
com a infeliz negociação.



EM TODA AÇÃO HÁ UMA OCULTA RAZÃO

Tudo começa quando Ingenaldo procura Cinisvaldo para falar de seu entusiasmo diante da política de desoneração fiscal do governo, com a redução de IPI dos automóveis. Eles estão sentados à mesa de um bar, tomando um suco aparentemente natural. Ali perto, numa das mais tradicionais avenidas da cidade, motosserras derrubam galhos de centenárias árvores.
- Está bem – falou Cinisvaldo, com voz cansada. – Não quero manchar sua inocência com palavras pessimistas. Entretanto, é bom que você se lembre das recomendações de Marina Silva, aquela ambientalista e que foi candidata à presidenta (...) do Brasil, de que devemos desconfiar de políticos e empresários, quando superfaturam seus pedidos e, depois, dando de bonzinhos, chegam ao valor pretendido realmente.
- Você está querendo dizer, Cinisvaldo, que devemos nos cercar de desconfiança diante de qualquer ato de benevolência, pois sempre esconde um fundo de maldade?
- É assim que tudo acontece, Ingenaldo, procura limpar sempre seus óculos azuis e seus olhos. Vez por outra, o governo faz um agrado para com as montadoras de automóveis, reduzindo o valor do IPI. Analisando, ainda que superficialmente, não é grande coisa esse agrado do governo: é como fechar uma torneira, sabendo que outras permanecem abertas e com maior vazão d’água. No frigir dos ovos, a mesma quantidade será despendida para se fazer a omelete.
- Francamente, eu não entendi. Você quer dizer que não é uma boa ação do governo?
- Não entendeu? Vou me servir de exemplos, para que você tenha maior compreensão. Em termos absolutos, o Ministério da Fazenda, quando do anúncio da medida de redução do IPI, previu uma “renúncia fiscal” de R$1,2 bilhão. Dados, depois apresentados, falam que a desoneração dos automóveis totalizou 2,8 bilhões em 2012.
- Seguindo seu brilhante raciocínio, essa é a torneira que está sendo fechada. E as que permanecem abertas?
- Projeções de 2012, indicam um total de 3,27 milhões de veículos fabricados no Brasil. Esse número representa um aumento substancial em relação aos anos anteriores, o que irá “engordar” outras receitas do governo. Assim é que a estimativa de arrecadação de IPVA em Minas Gerais em 2013 é de R$3,02 bilhões, um aumento de R$250 milhões em relação a 2012. Para entender o tamanho do bolo chamado IPVA, comparado à fatia de renúncia do governo federal, somente o Estado de São Paulo arrecadou de IPVA em 2012 cerca de R$11,37 bilhões; o Brasil atingiu o patamar de R$26,91 bilhões.
- Os números realmente impressionam. Mas você dispõe de dados sobre as multas?
- Ótima pergunta, Ingenaldo. Quando pesquisei sobre o tema, encontrei facilmente os valores cobrados sobre infrações, além dos pontos perdidos. Mas, quando quis saber sobre o quanto os governos estaduais e municipais arrecadam com as multas, tudo ficou envolto em mistério. O único Estado da Federação que divulga dados a respeito é o de Santa Catarina. Em Minas Gerais, tomei conhecimento de um Projeto de Lei 700/11, que determina que o Detran divulgue, trimestralmente, sua arrecadação com infrações; o projeto teve parecer aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa em 13/03/12. E é só isso que consegui através dos dados oficiais.  Estimativas dão conta de que a arrecadação com multas de trânsito, só na cidade de São Paulo, será de quase R$1 bilhão em 2013. Em Belo Horizonte, a previsão de arrecadação em multas de trânsito no ano de 2012 era de cerca de R$20 milhões, dinheiro repassado aos cofres das polícias civil e militar do Estado. Na cidade de São Paulo, dados de agosto de 2012 apontavam que um motorista era multado a cada 6 segundos.
No Brasil, o automóvel se tornou uma mina de ouro para uns poucos. Além de seu valor astronômico, estando nu, já que seus acessórios são cobrados à parte, ainda gera perdas e dividendos por meio de IPVA, taxa de emplacamento, taxa de licenciamento, seguros, multas de trânsito (muitas vezes á custa de pegadinhas), rotativos e flanelinhas, estacionamento, pedágio, sem contar os mecânicos com suas “rebimbocas da parafuseta”. Por tudo isso, não seria mais que obrigação das prefeituras, dos Estados e de órgãos federais enviarem, por ocasião das festas de final de ano, cartões aos proprietários de veículos com dizeres mais ou menos assim: “Muito obrigado. Esperamos continuar contando com você no próximo ano.”
- Para mostrar que não sou tão ingênuo assim – falou Ingenaldo, com um sorriso amargo: - O resumo da ópera é que saem ganhando governo e empresários, enquanto a população é penalizada com um trânsito cada vez mais caótico, engavetamentos constantes, poluição sonora e ambiental, custos adicionais com taxas de estacionamento e de despachantes, junto aos burocráticos, ineficientes e corrompidos Detrans. Li em algum lugar que, em grande parte da Europa, o transporte por trem e metrô prima pela qualidade e eficiência. Na Itália, que coisa, o transporte de trem é administrado por empresa estatal, e funciona! Paris dispõe de uma estação de metrô a cada 500 metros!
- Parabéns, Ingenaldo – falou Cinisvaldo com um tom de admiração. – Não é por nada que somos grandes amigos! Mas eu gostaria de concluir essa nossa conversa. Parece que não é de interesse das autoridades e de ninguém que está do outro lado do rio uma efetiva solução para o problema de trânsito. Ainda, de forma sádica, as revendas exercem uma pressão psicológica sobre possíveis compradores, usando de uma frase ameaçadora: “Aproveitem! Últimos dias de IPI reduzido!” É isso que a publicidade fica gritando em nossos ouvidos. No Brasil, parece que governos e políticos são reféns das montadoras que, quando perdem um centavo de seus exorbitantes lucros, ameaçam com demissões, elas que foram beneficiadas com isenções quando aqui se instalaram, sendo que uma delas teve até lucro sem estar operando, simplesmente aplicando no mercado financeiro parte dos investimentos do governo. É estranho ver como o trânsito nas cidades caminha a passos largos para uma situação caótica e de difícil conserto. Desse jeito, não demora o dia em que as pessoas terão que ficar em suas casas, porque as ruas, desnudas de árvores e cobertas de asfalto, estarão abarrotadas de automóveis... vazios!

Nota Complementar:
Um ex-amigo disse, certa vez, que ninguém se aproxima da gente sem segundas intenções.  Tem ele razão em assim pensar? O presente texto parece dizer que sim: o que escrevi foi, em grande parte – mas não na totalidade -, motivado pela perspectiva de que já estou tendo o direito da gratuidade no transporte coletivo.
Usando de uma expressão portuguesa – “puxando a brasa à minha sardinha” -, deixo claro o teor de minha oculta intenção: vamos salvar o transporte coletivo. Se houvesse um transporte coletivo eficiente de trens, metrôs e ônibus, não haveria necessidade de tantos automóveis tentando circular pelas ruas da cidade. E o governo não teria que gastar tanto com desapropriações, derrubada de árvores, alargamento de ruas e avenidas, construções de pontes, viadutos, túneis, passarelas. Tudo iria fluir melhor, o tempo seria melhor aproveitado, as pessoas iriam se aproximar mais umas das outras, viveriam menos estressadas, haveria mais calor humano e menos poluição! Podem ter certeza, anotem isso aí, as pessoas iriam ser mais felizes. Menos automóveis, mais transportes coletivos! Quem sabe, poderemos ainda contar com os ônibus elétricos e os bondes desfilando por avenidas arborizadas e floridas. Seria chique demais, já imaginou?
Etelvaldo Vieira de Melo
            

CENA
É teatro o horror
o pranto
a certeza
a alegria:
cabe tudo no proscênio
Imagem: cultura.culturamix.com
de apenas um dia.

A eterna melancolia
é teatral.
Quem hoje ensaiou o Hamlet
amanhã é bufo
e vai mal.

Fica no olho
um cenário
ideal,
mas a farsa do argumento
também é teatral.

                                                                             
                                                                                          

Imagem: viaduct at L'Estagre
Georges Braque
POEMA NEOBARROCO

O normal mente
O excepcional mente

O nacional mente
O interior mente

O inconsciente mente
O mental mente
                                    
                                  Vem a morte
                                   Veemente
                                     E vira tudo
                                     Somente.


FÁBULA NEBULOSA: O BÊBADO E O BALCONISTA
                                  Em homenagem a Millôr Fernandes, que “abandonou o mundo”   ( em 27/03/2012.

Plínio era alcoólatra e morador de uma pequena cidade chamada Rua Comprida. Esse nome se deve ao fato da cidade ser constituída por uma única rua, formada por algumas centenas de casas.
Você sabe como é um bêbado: quando encontra você pela frente, logo vem com aquela conversa esquisita, aquela fala arrastada, fica pegando no seu braço e cuspindo no seu rosto, com aquele hálito de matar até defunto.
Felizmente, toda regra tem suas exceções e Plínio era uma delas: tratava-se de um cachaceiro manso, voltado para si mesmo e que pouco incomodava as pessoas. Todos os dias, fazia seu giro pelos botecos, iniciando e fechando sua rodada no chamado Bar  do Lulu. Em todos os lugares, o ritual era simples e de poucas palavras: retirava do bolso do paletó seu copo (na verdade, uma cuia formada pela metade de pequena cabaça), onde o dono do boteco despejava uma dose de cachaça. O valor era debitado e depois pago pelos parentes, uma vez que Plínio era de família estribada – expressão nordestina, embora o caso acontecesse no interior das Minas Gerais.
Parece que ele não era uma pessoa religiosa, pois nunca foi visto despejando uma gota sequer de bebida para os santos. De qualquer modo, lá ia tocando sua vida sem maiores sobressaltos, a não ser por pequenos tropeços e uma ou outra queda pelas poeirentas ruas da cidade.
Aconteceu, porém, o dia em que Plínio desapareceu de Rua Comprida, ficando ausente por quase dois meses. Quando voltou, estava corado, bem disposto e até tendo engordado alguns quilinhos. Todo mundo quis saber o motivo de tamanha ausência. Foi justamente isso que lhe perguntou Lulu, quando Plínio retornou ao seu bar.
- O que aconteceu foi que comecei a me sentir muito mal – explicou nosso personagem. – Imagina você que, estando sentado naquela cadeira ali – e apontou para uma cadeira de plástico, junto a uma mesa – de repente, vi passando na minha frente um tatu. Pensei comigo: Cara, você está ruim mesmo, está tendo o que especialistas chamam de “delirium tremens”. É bom você ir para a capital e se tratar. Foi o que fiz e esse é o motivo de minha ausência da cidade.
- Por que você não me disse na hora? – foi logo interrompendo Lulu, dando boas risadas. – Acontece que eu tenho mesmo um tatu aqui em casa. - Dirigindo-se à sua mulher, acrescentou: - Vai Marieta, traga o tatu para que o nosso amigo possa ver.
Saiu Marieta, que voltou daí a pouco, trazendo em seu colo um tatu.
- Trata-se de um tatu de estimação, bem manso, como está vendo – explicou Lulu. – Ele até tem nome: Tatubel, uma homenagem ao metrô da capital mineira, promessa de campanha política. Se for tapeação, quero dar de presente para determinado político, já que meu tatu fura e não enrola.
Plínio se aproximou do tatu e, de dedo em riste, falou bravo:
- Seu fdp cascorento. Por sua causa, achei que estava ficando doido. Vai, Lulu, desce todas as garrafas de pinga da prateleira, que vou descontar o atraso e tirar a barriga da miséria.
E assim ele fez.
Moral: Ao tomar uma decisão mais radical, veja se não tem um tatu pelas proximidades.
Etelvaldo Vieira de Melo
            


BELATRIZ ENTRA EM CENA

Para Ana Cristina Cesar


Enquanto isso, vai produzindo textos. Bliss. Com boina e maquillage. Dizem até que vai bem no rímel e adereços. Uma pinta feita de palavras. Muito gata, assume seu lugar.

Penas é que não faltam. Corrige a pronúncia, vai deletando. O chip da memória. Caneta guiada pelas sombras azuis. Ponto e vírgula. Não deduz o Imposto de Renda, nem a cota do Minas Tênis.

Esta escrita é própria do louco, dos louros da vitória.

Prossegue o caminho, muito discursiva, fazendo poses e cartões postais. Uma bolsa Louis Vuitton? Blush e rouge sobre o nasal.

Que lágrima, agora? Simplesmente contundente. Não trafega, nem encontra mão. Proibido estacionar.

Bilhetes de bordo a Paris. Quem a incita a descrever? Segue os sinais de Ana C., muito porreta depois do incêndio.

Dá meia volta, tratando-se com Frontal.

Vênus desnuda, caprichos de arranha-céus. Segue em frente no volante em nome de adeus.

Recomeça pelo findar. Que não são cicatrizes, mas cinzas. Extrato de camélias, cosméticos do exterior.

Agora, perfumada, pode reler Baudelaire.
Imagem: moipermoi.files.wordpress.com
IIi
I


MISTÉRIO SEMPRE PINTA POR AQUI

Desde que passei pela aventura (e um pouco de desventura) de uma viagem internacional, estou me sentindo um cidadão do mundo. Se, antes, dava uma canseira procurar saber onde ficava aquele tiquinho de país mencionado em um noticiário, hoje, não só presto atenção na notícia, como procuro localizar o dito cujo através de mapas e sites de pesquisa.
Parodiando Karl Marx dizendo que “nada do que é humano lhe é estranho”, falo: nada do que é do mundo me é estranho.
E, assim, vou transformando o Universo naquela Aldeia Global, preconizada por McLuhan na década de 60 do século XX. Talvez seja por isso que minha mente esteja sendo invadida por pensamentos até bem pouco tempo ignorados. Talvez por isso, essas ideias de fantasia e superstição, talvez porque, em alguma parte do mundo, determinado assunto seja recorrente. Através de pesquisas, fico sabendo que, na data de meu aniversário, sendo eu tão macho, o folclore japonês comemora Hinamatsuri, o Dia das Meninas... Essas mesmas pesquisas mostram como, entre a população ribeirinha às margens do rio Amazonas, um rapaz conseguia transferir para o boto cor-de-rosa a responsabilidade de ter engravidado uma jovem...
Fico até imaginando aquele rapaz sendo encarado com olhares suspeitos e insinuações de que havia feito “mal” a uma determinada moça:
- Que é isso, gente? Vocês não estão vendo que a culpa é do boto?  
Mesmo que tudo não passe de uma brincadeira, a celebração de uma herança cultural, que já teve sua cota de verdade, mas que agora não passa de lenda, mesmo assim sou atraído pelo tema, quando ele faz menção ao sobrenatural, ao mistério.
Contrariando as características de meu signo zodiacal, pouco tenho de místico ou religioso. Pode até ser que um dia eu venha a jogar nesse time, mas, por enquanto, procuro ser racional o máximo possível.
Assim, não descarto a ideia do mistério. Mas, para mim, mistérios são as surpresas da vida, descobertas são os encontros com os mistérios, aprendizagem é a arte de trazê-los à luz da razão. É isso: Aprendizagem é a arte de desocultar mistérios.
Etelvaldo Vieira de Melo



                                                           
Cidade-Jardim                             
Vou lhe contar uma história
que começa no feliz:
certa paisagem de Minas
(depois de expulsar os pobres
em 1701)
recebe povoamento
de João Leite da Silva Ortiz.

A Fazenda do Cercado
(primeiro nome de lei)
transformou-se em pouco tempo
no arraial do Curral Del Rey.

Em 1890
pelas várzeas, pelos montes
a princesa das Gerais
chamou-se Belo Horizonte.

O presidente da província,
Bias Fortes,
inaugurou a cidade. 

E a sorte 

Trouxe à luz uma menina
com nome tão engraçado
de Minas Horizontina.

Nas ruas de Belo Horizonte
se proibia vadiar
andar descalço
ou levar
embrulhos de qualquer tamanho.
Quem se julgasse mendigo
tinha número de inscrição
somente assim conseguia
esmolar sem amolação.

Havia o Manuel das Moças
Jaburu e Muquirana:
tipos muito populares
de verdade.
Hoje são estatuetas
Foto: APCBH/Coleção José Góesno Museu da Cidade.

         (Estoura a primeira greve
         em 1812 – uma loucura!
         O motivo do movimento
         eram atrasos – de quem?
         - da senhora Prefeitura!)

Anos 50, 60,
e a cidade vai crescendo                                      
sem parar.
Mas pela falta de praças
o povo só tem esquinas
onde se encontrar.

Belo Horizonte gigante
manifesta-se nas ruas
pela voz dos estudantes.
É aqui que se concentram
as lutas pelos direitos
constantes.

         - Nós vamos andar de bonde?
         O menino interrogava
         ao vovô.
         Mas, por causa do tumulto
         e dos engarrafamentos,
         o que era bonde acabou.

A vida é essa:
Subir Bahia, descer Floresta –
dizia Rômulo Paes.
E as gerações desde sempre
em frente do Café Pérola
entre amigos casuais.

Cine Theatro Commercio                                              
Cine Theatro Soucasseux:
onde está o que é passado?
Nosso primeiro prefeito
Doutor Adalberto Dias
Ferraz da Luz
é lembrança que o futuro
não traduz.

Mas o que é luz permanece:
o Barão do Rio Branco
primeiro Grupo Escolar
no presente continua
a ensinar.

E a rua da Bahia
onde as águas já rolaram
mais que em Três Marias
está lá e faz comércio
todo dia.

S.O.S. Ecologia!
As indústrias de mineração
depredam Belo Horizonte:
cortam árvores, cursos d’água
sem conta.
Nossa história continua                                     
para outros que virão.
Gostaríamos de contá-la,                                   
mas para isso é preciso
livrar o Curral Del Rey
da atual depredação.

Esta entrou no pé do pinto                                   
saiu no pé do pato
quem conhece mais da história                               Imagens: www.skyscrapercity.com
conta quatro.  

A GAIVOTA, A ARTE DE TAI CHI CHUAN E O ELEFANTE

Dedicada a Cleber e Graça, que aniversariam em 18 e 26 de março e que são amigos e parceiros.

Durante duas semanas, estive internado num hospital para tratar de problemas cardíacos. Nesse período, recebi visitas de alguns vizinhos, parentes e amigos.
Cleber (autor do blog wwwcleber2010.blogspot.com) lá esteve com sua namorada, Adélia. Trata-se de uma pessoa com agudo senso de humor, você pode comprovar isso através das páginas de seu blog. Logo, quis se informar sobre o histórico do que havia acontecido. Minha esposa, Sandra, começou a contar, em detalhes: as dores, o mal-estar, a ida aos hospitais... Não aguentando tanto suspense, Cleber perguntou, interrompendo aquela narrativa novelesca:
- Afinal, nosso amigo teve ou não teve um infarto?
(Entre parênteses, registro um diálogo que não existiu, mas que ficou subentendido:
- Tive, sim! Até parece que você faz parte daqueles que praticam o que chamo de “solidariedade mórbida”, tal seu grau de ansiedade.
- Vamos, apresenta os detalhes dos exames.
- Bom, o cateterismo constatou uma ponte miocárdica na artéria descendente anterior, com grave constrição no 1/3 médio.
- Não entendi nada, mas continua.
- Vê se entende: uma artéria, ao invés de passar sobre o músculo do coração, inventou de passar por baixo, como se fosse um metrô. O batimento cardíaco comprime essa artéria, o que pode provocar dor. Em sentido figurado, com essas chuvas, uma ponte sobre o meu coração está com a estrutura abalada e necessita de reparos de engenharia, ou seja, de medicamentos.
- Deu pra entender. Mas é só isso?
- Não, tem mais para seu sadismo: o segundo ramo diagonal exibe obstrução grave no 1/3 proximal, ou seja, apresenta aterosclerose com obstrução luminal grave (99%), o que requer angioplastia com implante de stent.
- Ah, agora estou plenamente satisfeito e vejo que não foi perda de tempo essa visita, eu que temia ser tudo um falso alarme.)
Depois de ouvir as explicações de minha esposa, ele se levantou e começou a vasculhar as coisas que estavam no quarto. Pegou um livro de J.K. Rowling, autora dos sete livros que compõem a série Harry Potter, e perguntou:
- Quem está lendo este livro?
- Sou eu - falou Sandra.
- Mas você tinha de vir com este livro para cá?
O título do livro era “Morte Súbita”.
- Você não faz ideia do pior, Cleber – eu falei. – Imagina que Sandra me trouxe uma revista Seleções outro dia. A manchete de capa era: “45 segredos que os cirurgiões não diriam a você”. Quando comecei a comentar a reportagem, ele tratou logo de me tomar a revista...
Pouco tempo antes de se retirar com Adélia, me deixou a recomendação de que praticasse Tai Chi Chuan e deu exemplos de exercícios. Para ele, que é baixinho e magrinho, até foi bem. Como tenho uma certa obesidade na região abdominal e, definitivamente, não disponho de coordenação motora, acho que será dificílimo para mim. Depois, essa história de vencer o movimento através da quietude, a dureza através da suavidade e o rápido através do lento... sei não, eu que tenho PFC (Prolapso de Fim de Curso, que os maldosos chamam de Lerdeza Mental), que já ando devagar, quase parando, com esse tal de Tai Chi Chuan, vou travar definitivamente.
...
Como estava dizendo no início, durante duas semanas, fiquei internado num hospital, porque havia chegado o momento de trocar meu antigo coração de passarinho por um novo coração de elefante.
Não havia nenhum descaso para com o coração pequenino; pelo contrário, o que existia mesmo era reconhecimento para com aquele que tinha me ensinado o dom maior da vida, a Liberdade, aprendizagem que se tornou possível também com a ajuda de um livro de Richard Bach (e que se tornou filme de indescritíveis belezas plástica, direção de Hall Bartlett, e melódica, através da trilha sonora de Neil Diamond), Fernão Capelo Gaivota:
“Estamos sempre partindo. Estamos sempre dizendo adeus.”
“Vê mais longe a gaivota que voa mais alto.”
“A única Lei verdadeira é a que nos liberta.”
“Você tem que praticar e ver o bem em cada um e ajudá-lo a ver também. É isso que significa amar.”
“Coisas ruins não são o pior que pode nos acontecer. O que de pior nos pode acontecer é o nada.”
“Você começará a se aproximar do paraíso no momento em que alcançar a velocidade perfeita. E isso não é voar a mil e quinhentos quilômetros por hora, nem a um milhão e quinhentos mil, nem voar à velocidade da luz. Porque nenhum número é um limite, e a perfeição não tem limites.”
Estando deitado, pensava em tudo isso. Então, eu me lembrei da vez em que quis mostrar para a filha adolescente esse filme do Fernão Capelo. Na sala de casa, ajeitei alguns sofás no chão, liguei o vídeo. A menina se sentia incomodada, não se ajeitava, mas depois ela ficou quieta. Eu quase prendia a respiração, engolia a vontade de chorar, ficava quieto, paralisado. Até o momento, quase no final, em que não resisti e fui ver como estava se sentindo. Ela estava dormindo um sono pesado e não havia meios de fazê-la acordar. Pensei comigo: “Ah, como é difícil repassar valores!”
...
Estando só, costumava abrir uma pasta preta que trazia comigo e lia suas páginas. As técnicas de enfermagem demonstravam preocupação, pensando que estivesse escrevendo uma espécie de relatório. Na verdade, estava registrando as emoções daqueles momentos, as lembranças dos amigos, as conversas - entrecortadas de lágrimas – com a esposa e a filha. Então, eu vi que a necessidade de um coração novo, de elefante, era decorrência de tudo aquilo que estava acontecendo. Necessitava de uma formatação, queria que meus sentimentos fossem melhor alinhados, deveria deletar tudo aquilo que não mais era conveniente, arranjar espaço para as lembranças amigas. Com coração de elefante, eu precisava despojar do supérfluo para poder voar melhor.
Etelvaldo Vieira de Melo







CUIDADOS!
Cuidado com o Cão.                                                
Cuidado com o corpo.
Cuidado com a língua.
Tenha educação no transito
Imagem: guiadicas.net
Cuidado com a cerca.
Cuidado com os carros.
Cuidado com os vermes.
Cuidado com a rua.
Cuidado com a noite.
Cuidado com a morte.
Cuidado! Cuidado!

NÃO
Não pise na grama.
Não coma demais.
Não saia da linha.
Não saia do sério.
Não fique parado.
Não durma no ponto.
Não esqueça do imposto.
Não falhe.
Não caia.
Não pense que
Não.

O QUE DÁ PRA CHORAR TAMBÉM DÁ PRA RIR

No dia em que Serisvaldo completou 60 anos de idade, sentiu um impacto profundo (assim como aquele apresentado em filme homônimo ou o vivenciado por habitantes da Sibéria, cinco anos depois, quando da queda de um meteoro). Logo pela manhã, ao acordar, foi aquele abafamento, aquela dor no coração, uma asfixia que quase o levava a explodir. Pensou: “Sessenta anos... Que número terrível!” Depois, tomando o café com pão, ele se acalmou um pouco.
Naquele dia, ele deveria ir até a sede de um clube de futebol, comprar ingressos para uma partida da Libertadores. Seu concunhado, Fábio, viria à cidade e, juntos, iriam ao campo, Serisvaldo na condição de carona.
Quando chegou ao clube, uma fila quilométrica se estendia frente aos guichês. Entrou na fila e deixou nas mãos do destino a sorte ou o azar de conseguir ou não os ingressos.
Serisvaldo ficou conversando com outros torcedores, pois sabia que se tratava de uma boa técnica para passar o tempo, refrear o ímpeto de dar um tiro na própria cabeça ou metralhar tudo que pintasse pela frente.
E, assim, o tempo foi passando: 10, 15, 20 minutos... A conversa foi ficando animada, pois, em se tratando de futebol, cada brasileiro tem uma opinião razoável. Como o time estava na Libertadores e a possibilidade de título era bem plausível, não havia crítica contundente a nenhum jogador, técnico ou membro da diretoria. Apenas pequenos reparos, coisas sem maior importância. Claro que, em outras circunstâncias, estariam falando “cobras e lagartos”, julgando os jogadores como sendo mercenários, sem amor à camisa e que, com seus exorbitantes salários, deveriam – no mínimo – “comer o gramado” durante os jogos; que os dirigentes são uns ladrões a tirarem proveito próprio das arrecadações, usando o futebol como trampolim para cargos políticos; o torcedor sendo o verdadeiro bocó na história toda, único a amar seu time com todo o coração, e por aí afora...
Acredito que nem meia hora havia transcorrido, quando um fiscal do clube chegou junto ao Serisvaldo e perguntou:
- Você tem mais de 60 anos de idade?
- Tenho – respondeu, pensando que o fiscal adivinhava ser seu aniversário naquele dia e pretendia puxar um “parabéns pra você...”, sendo acompanhado por todos os presentes.
- Então – falou ele, delicadamente. – Você não precisa ficar aí na fila. Pode me acompanhar até o guichê.
- Acontece que também preciso comprar ingresso para minha esposa – mentiu Serisvaldo, descaradamente. – É possível?
- Não tem problema. É só falar para o bilheteiro.
E lá foi Serisvaldo, feliz, comprar os ingressos, ainda mais surpreso por pagar apenas a metade do valor. Pensava consigo: “O compositor dizia que o que faz rir, também pode fazer chorar, sendo tudo uma questão de peso e medida. Mas eu vejo, neste acontecimento que, a partir desta data, algumas compensações estão sendo criadas para minha longa existência”.
Foi a partir de então que ele passou a usar o codinome “Risvaldo”.
Ah, e antes que me esqueça: o seu time do coração foi eliminado da Libertadores naquele jogo. Coisas da vida!
PS: Por esses dias, Risvaldo estará completando 65 anos de vida e terá passe-livre nos transportes coletivos. Ele está pensando seriamente em seguir o exemplo do senhor Inocêncio, vulgo Coitadinho, que, podendo usar desse direito, comentava: “Estou pensando em ir amanhã até o Bernardo Monteiro, bairro de outra cidade que faz parte da Região Metropolitana, pois fiquei sabendo que um supermercado de lá está vendendo fubá a um preço muito bom”. É como dizia Jaci, outro que já passou desta: “De graça, a gente aceita até injeção na testa”.
Etelvaldo Vieira de Melo