A GAIVOTA, A ARTE DE TAI CHI CHUAN E O ELEFANTE

Dedicada a Cleber e Graça, que aniversariam em 18 e 26 de março e que são amigos e parceiros.

Durante duas semanas, estive internado num hospital para tratar de problemas cardíacos. Nesse período, recebi visitas de alguns vizinhos, parentes e amigos.
Cleber (autor do blog wwwcleber2010.blogspot.com) lá esteve com sua namorada, Adélia. Trata-se de uma pessoa com agudo senso de humor, você pode comprovar isso através das páginas de seu blog. Logo, quis se informar sobre o histórico do que havia acontecido. Minha esposa, Sandra, começou a contar, em detalhes: as dores, o mal-estar, a ida aos hospitais... Não aguentando tanto suspense, Cleber perguntou, interrompendo aquela narrativa novelesca:
- Afinal, nosso amigo teve ou não teve um infarto?
(Entre parênteses, registro um diálogo que não existiu, mas que ficou subentendido:
- Tive, sim! Até parece que você faz parte daqueles que praticam o que chamo de “solidariedade mórbida”, tal seu grau de ansiedade.
- Vamos, apresenta os detalhes dos exames.
- Bom, o cateterismo constatou uma ponte miocárdica na artéria descendente anterior, com grave constrição no 1/3 médio.
- Não entendi nada, mas continua.
- Vê se entende: uma artéria, ao invés de passar sobre o músculo do coração, inventou de passar por baixo, como se fosse um metrô. O batimento cardíaco comprime essa artéria, o que pode provocar dor. Em sentido figurado, com essas chuvas, uma ponte sobre o meu coração está com a estrutura abalada e necessita de reparos de engenharia, ou seja, de medicamentos.
- Deu pra entender. Mas é só isso?
- Não, tem mais para seu sadismo: o segundo ramo diagonal exibe obstrução grave no 1/3 proximal, ou seja, apresenta aterosclerose com obstrução luminal grave (99%), o que requer angioplastia com implante de stent.
- Ah, agora estou plenamente satisfeito e vejo que não foi perda de tempo essa visita, eu que temia ser tudo um falso alarme.)
Depois de ouvir as explicações de minha esposa, ele se levantou e começou a vasculhar as coisas que estavam no quarto. Pegou um livro de J.K. Rowling, autora dos sete livros que compõem a série Harry Potter, e perguntou:
- Quem está lendo este livro?
- Sou eu - falou Sandra.
- Mas você tinha de vir com este livro para cá?
O título do livro era “Morte Súbita”.
- Você não faz ideia do pior, Cleber – eu falei. – Imagina que Sandra me trouxe uma revista Seleções outro dia. A manchete de capa era: “45 segredos que os cirurgiões não diriam a você”. Quando comecei a comentar a reportagem, ele tratou logo de me tomar a revista...
Pouco tempo antes de se retirar com Adélia, me deixou a recomendação de que praticasse Tai Chi Chuan e deu exemplos de exercícios. Para ele, que é baixinho e magrinho, até foi bem. Como tenho uma certa obesidade na região abdominal e, definitivamente, não disponho de coordenação motora, acho que será dificílimo para mim. Depois, essa história de vencer o movimento através da quietude, a dureza através da suavidade e o rápido através do lento... sei não, eu que tenho PFC (Prolapso de Fim de Curso, que os maldosos chamam de Lerdeza Mental), que já ando devagar, quase parando, com esse tal de Tai Chi Chuan, vou travar definitivamente.
...
Como estava dizendo no início, durante duas semanas, fiquei internado num hospital, porque havia chegado o momento de trocar meu antigo coração de passarinho por um novo coração de elefante.
Não havia nenhum descaso para com o coração pequenino; pelo contrário, o que existia mesmo era reconhecimento para com aquele que tinha me ensinado o dom maior da vida, a Liberdade, aprendizagem que se tornou possível também com a ajuda de um livro de Richard Bach (e que se tornou filme de indescritíveis belezas plástica, direção de Hall Bartlett, e melódica, através da trilha sonora de Neil Diamond), Fernão Capelo Gaivota:
“Estamos sempre partindo. Estamos sempre dizendo adeus.”
“Vê mais longe a gaivota que voa mais alto.”
“A única Lei verdadeira é a que nos liberta.”
“Você tem que praticar e ver o bem em cada um e ajudá-lo a ver também. É isso que significa amar.”
“Coisas ruins não são o pior que pode nos acontecer. O que de pior nos pode acontecer é o nada.”
“Você começará a se aproximar do paraíso no momento em que alcançar a velocidade perfeita. E isso não é voar a mil e quinhentos quilômetros por hora, nem a um milhão e quinhentos mil, nem voar à velocidade da luz. Porque nenhum número é um limite, e a perfeição não tem limites.”
Estando deitado, pensava em tudo isso. Então, eu me lembrei da vez em que quis mostrar para a filha adolescente esse filme do Fernão Capelo. Na sala de casa, ajeitei alguns sofás no chão, liguei o vídeo. A menina se sentia incomodada, não se ajeitava, mas depois ela ficou quieta. Eu quase prendia a respiração, engolia a vontade de chorar, ficava quieto, paralisado. Até o momento, quase no final, em que não resisti e fui ver como estava se sentindo. Ela estava dormindo um sono pesado e não havia meios de fazê-la acordar. Pensei comigo: “Ah, como é difícil repassar valores!”
...
Estando só, costumava abrir uma pasta preta que trazia comigo e lia suas páginas. As técnicas de enfermagem demonstravam preocupação, pensando que estivesse escrevendo uma espécie de relatório. Na verdade, estava registrando as emoções daqueles momentos, as lembranças dos amigos, as conversas - entrecortadas de lágrimas – com a esposa e a filha. Então, eu vi que a necessidade de um coração novo, de elefante, era decorrência de tudo aquilo que estava acontecendo. Necessitava de uma formatação, queria que meus sentimentos fossem melhor alinhados, deveria deletar tudo aquilo que não mais era conveniente, arranjar espaço para as lembranças amigas. Com coração de elefante, eu precisava despojar do supérfluo para poder voar melhor.
Etelvaldo Vieira de Melo






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