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completou 60 anos de idade, Belderagas Piruegas se deu conta de que deixava a
fase de Cachorro e entrava na de Condor. Ao mesmo tempo, começou a experimentar
o reverso do ditado “o que dá pra rir também dá pra chorar”, com a nova idade
proporcionando pequenas compensações a lhe amenizar a depressão de ver seu
corpo tomado por dores como se fosse invadido por ataques de naves alienígenas,
como as do filme A Invasão do Mundo:
Batalha de Los Angeles. As pequenas alegrias vinham, por exemplo, do
desconto de 50% em ingressos de futebol e cinema, do direito de entrar em filas
preferenciais em supermercados e lojas de departamento (o que nem sempre era
vantajoso, devido à concorrência de outros “pé-na-cova”),
além da gratuidade no uso de sanitários na Estação Rodoviária da cidade onde
morava.
Quando
se aproximava dos 65 anos e vislumbrava a extensão de seus privilégios com a
gratuidade no transporte coletivo, seu coração já não suportou tantas emoções e
Belderagas teve um infarto.
O
médico quis saber o que havia acontecido naquela manhã de domingo de carnaval e
Belderagas disse que não havia acontecido nada, que ele estava apenas coando
café. O doutor achou estranho que um fato tão banal pudesse ter ocasionado um
ataque.
Passado o susto e estando em fase de recuperação, nosso herói sentiu que essa sua nova situação poderia lhe proporcionar alguns dividendos. Sabendo que o brasileiro ainda carrega um restinho de sentimento de solidariedade, ele viu que poderia mencionar seu problema médico para as pessoas e obter um pouco de atenção para com sua carência afetiva. Isso ele fez com um pedreiro que foi prestar serviço em sua residência. Ele disse assim: Você sabe que tive um infarto? Pois o médico falou que não posso ter contrariedade e nem levar susto. Portanto, você deve pensar duas vezes antes de me passar o orçamento. A conclusão é que a mão-de-obra ficou bem mais em conta do que normalmente ficaria.
Belderagas,
que levava uma vida sedentária, exercitando quando muito os dedos das mãos em
jogos de videogame (um presente de sua esposa para amenizar o trauma de não ter
tido quase brinquedo nenhum em sua infância), foi coagido a praticar atividade
física. Protelou, enquanto foi possível, a obrigação, até que pressões
familiares fizeram com que comprasse roupas esportivas, tênis e um relógio com
frequencímetro (já que seus batimentos cardíacos tinham que ficar dentro de
determinado limite).
Assim,
equipado com roupas esportivas, tênis novo, boné, relógio com frequencímetro,
MP3 auricular, Belderagas desceu até o local da caminhada, uma avenida reta,
com 400 metros de extensão e pista exclusiva para pedestre e cachorro, caso
alguém se fizesse acompanhar de um felino. Quando ali chegou pela primeira vez,
viu algumas pessoas movimentando os braços para cima e para os lados, pegando
ora o pé esquerdo, ora o direito, empurrando postes com a aparente intenção de
derrubá-los. Ficou sabendo que tudo aquilo se tratava de alongamento, um
aquecimento para a caminhada. Pensou: será que os estudiosos de ginástica
aprenderam isso com os gatos e cachorros quando se esticam após uma soneca? De
qualquer modo, descartou a ideia do alongamento, com medo de parecer ridículo
para outros olhares.
Assim,
marcou o cronômetro, ligou o MP3 com sucessos de sua adolescência e juventude,
dando início à caminhada, com a intenção de realizar cada volta completa em 10
minutos, o que daria uma média de 10 por 800, não chegando aos 7 por 800
recomendados pelo amigo vizinho e maratonista, mas que estaria de bom tamanho.
Por
falar nesse vizinho maratonista, assim que ficou sabendo que Belderagas iria
fazer caminhada naquela avenida perto de casa, quis mangar com o amigo,
dizendo:
-
Quer dizer que você vai fazer caminhada lá no Bagulhódromo?
-
Não – respondeu Belderagas. – Para ser Bagulhódromo, está faltando a sua
presença.
Durante
a caminhada, as músicas do MP3 faziam fundo para seus pensamentos, em geral,
vazios. Vez por outra um Scorpions, um Beatles, um Credence, um Animals ou um
Simon & Garfunkel se destacava para chamar sua fugaz atenção.
Como
o médico havia lhe pedido um relatório de suas caminhadas, ele relacionou cinco
ítens para apresentação:
1. Tem
ficado muito nervoso quando é ultrapassado por um senhor alto e mais velho.
Esse senhor caminha de maneira aparentemente descuidada, mas Belderagas
notou-lhe um ar de deboche numa de suas ultrapassagens.
2. Não
consegue ultrapassar ninguém, a não ser um outro velho, caindo aos pedaços e de
olhar distraído.
3. Durante a caminhada, sempre
nota a presença de um senhor alto e compacto. A particularidade é que esse
senhor está sempre com os mesmos tênis, short, boné e camiseta, sendo que esta
ostenta a logomarca de uma fábrica de produtos hidráulicos. Belderagas pensa na
possibilidade de ir até uma fábrica de silkscreen e fazer estampas para suas
camisetas. Pensa em usar seu corpo para fazer merchandising de alguns produtos.
Inicialmente, estuda a possibilidade de divulgar o Blog de uma dupla de amigos.
Ficaria mais ou menos assim:
Pensando na viabilidade de seu projeto, acaba
se lembrando de um ex-presidente da república, de amarga lembrança, mas que
tinha um marketing todo especial. Logo de manhã, ia fazer corrida, ostentando
em sua camiseta a mensagem do dia (Piruegas se lembra de uma das últimas, quando
era iminente o seu impeachment: “O Tempo é o Senhor da Razão” - um provérbio
tornado conhecido pelo pensador francês Marcel Proust). Era divertido ver
tantos fotógrafos e repórteres correndo, esbaforidos, atrás daquela farsa,
inclusive um que apresenta, atualmente, programas onde destila venenos, como se
fosse dono da verdade e tivesse um passado imaculadamente limpo.
4. Por
volta de 15 minutos de caminhada, sente que um casal passa por ele, em sentido
contrário. A mulher usa um perfume tão gostoso, que Belderagas tem a sensação
de estar caminhando nas nuvens (uma
alusão àquela comédia romântica estrelada por Keanu Reeves). Depois de 30
minutos, entretanto, aquele perfume inicial é substituído por outro, bem menos
agradável.
5. O
mais preocupante: Como não olha para os lados, Belderagas raramente visualiza o
rosto das outras pessoas. Acontece de, algumas vezes, ser ultrapassado por
mulheres vestidas com calças collants, aquelas calças que se amoldam ao
corpo... Pode até que sejam das famílias das Radisgundas, Raimundas ou
Aldegundas. O que lhe causa preocupação é o fato de sentir, nesses momentos,
uma aceleração dos seus batimentos cardíacos, uma vontade de acelerar o ritmo e
não perder aquelas mulheres de vista, embora sentindo-a (a vista) um tanto
quanto embaralhada.
Dias
desses, Belderagas irá fazer uma consulta médica. Levará, então, esse relatório
para avaliação. Irá perguntar: E aí,
doutor, posso continuar com minha caminhada nessas condições de temperatura e
pressão?
Etelvaldo
Vieira de Melo
2 comentários:
Belderagas, não sou médico, muito menos cardiologista, mas acredito que essa caminhada só lhe faz bem para o corpo e principalmente para a mente. Continue. Não perca o pique... Eu, seu leitor de carteirinha, não sou Nicolau, mas uma velhinha puxou minhas bochechas, dizendo: "Hoje, Etelvaldo e Graça mataram a pau...", não deixe de ler suas postagens... Azar para quem não o faz... Vicente
Bem atual, não é mesmo?!!!
Prof. Marcos Soares
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