ESQUISITICES



S
e a gente for observar bem, não existe ser humano que deixe de ter suas esquisitices. Holofontina Fufucas chamou atenção de seu marido, Melidônio Ferrara, para a mania que ele tinha de, estando conversando com alguém, ir se aproximando, enquanto o interlocutor tinha que se afastar, até ser prensado de encontro a uma parede. Se estivessem próximos de um precipício, era perigoso o outro ser arremessado de encontro aos rochedos.
           
Quando foi chamado à atenção, Melidônio cuidou de se policiar, a fim de evitar maiores vexames; ao mesmo tempo, começou a observar as esquisitices de outras pessoas.
           
Reparou, por exemplo, que seu amigo Anus Gamberini, quem sabe por influência do próprio nome, tinha a mania de se coçar na região glútea. Como dizem as pessoas lá de sua terra, “tretô-relô” e lá estava o Fuinha – apelido com o qual era conhecido – com os dedos se coçando.
           
Já seu colega Boris Kossaks tinha a mania de se coçar na frente. Seu nome foi uma homenagem que sua mãe quis prestar àquele escritor russo, Boris Pasternak, autor do sucesso Doutor Jivago e que se tornou uma superprodução cinematográfica, dirigida por David Lean, estrelada por Omar Sharif e Julie Christie. Quando estudou, não havia bullying, mas Boris sofreu com as perseguições e provocações dos colegas, que o chamavam de Boris Coçassaco. E não é que, de tanto ouvir isso, ele acabou adquirindo essa mania?
           
Melidônio ria interiormente quando se encontrava com Fuinha e Boris e eles, distraídos pela conversa, davam vazão às suas esquisitices. Elas tiveram fim, ou ficaram suspensas, quando Fuinha – que não usava o vaso sanitário de forma convencional – caiu de um deles e acabou se cortando exatamente na região glútea, levando ali vários pontos. Já o Boris, parece que teve uma reprimenda em casa. Muito raramente ele se coça, assim mesmo quando julga estar sozinho ou não sendo observado.
           
Foi na leitura desses casos que Melidônio se lembrou de um colega de adolescência e que também tinha comportamento pra lá de esquisito, o Avercílio. Esse tinha a mania de comer sabonete. Se você queria fazê-lo feliz, bastava lhe oferecer um. Não que fosse um esfaimado; ele gostava de sabonete, sim, mas os comia com moderação, um pedacinho por dia. Melidônio não sabe como está sua condição hoje, com a proliferação de várias marcas e espécies. Fica incomodado ao saber que existem os esfoliantes, que podem causar um estrago no esôfago, e os antibacterianos, que podem acabar com a fauna intestinal. Melidônio se pergunta: será que o Avercílio resistiu aos tempos modernos?
           
Quando comentou esses casos com o amigo Fridolino Xexéo, esse quis acrescentar mais um exemplo de esquisitice. Melidônio não quis dar crédito às palavras do amigo, já que o considera um pouco exagerado e chegado a uma mentirinha. De qualquer modo, o caso é que Fridolino mora num prédio e tem como vizinhos de apartamento um casal, cuja mulher atende pelo nome de Carmen Lúcia Bizetina Macarenas. Ela é brasileira, mas os pais são espanhóis. Eles tanto encheram a cabeça da moça com Andalucía, Sevilha, Granada, tourada e flamenco, que a pobrecita ficou traumatizada para o resto da vida.
           
Fridolino teve oportunidade de conhecer o pai de Carmen pessoalmente, quando esteve em seu apartamento e ele ali estava de visita. Tratava-se de um senhor distinto, trajando um terno de linho bege, com gravata listrada nas cores vermelha e amarela; seu cabelo era todo grisalho e ele estava sentado numa poltrona, chorando copiosamente. O aparelho de som tocava Ojos de España.

          

- Foi, então, que me dei conta de um cacoete de Carmem, professora de rede pública de ensino. Assim que cheguei à porta, ela foi dizendo: “Que bom que você veio, psiu, Fridolino, psiu.” - E apontando para o senhor sentado na poltrona: “Este é meu pai, psiu, que está passando, psiu, alguns dias aqui em casa, psiu.” O senhor se levantou e, estendendo a mão, falou, numa mistura de línguas: “Mucho prazer. Perdone mis lágrimas. És la soledade qui apierta mi corazón.” Apesar de estar na faixa dos trinta anos, Carmen tem voz metálica, estridente, como se fosse uma taquara rachada. Deve ser por gritar com alunos e dizer psiu.
           
O amor pela Espanha estava tão enraizado no coração de Carmen que Fridolino diz ter ouvido à noite, vez por outra, os acordes de España Cañi.



Em certas ocasiões, esta melodia era substituída por outra, El Gato Montes.



Fridolino ouvia, então, barulho de cama rangendo, acompanhado de gemidos e suspiros, entrecortados por psius. Ultimamente, o apartamento tem ficado silencioso, o que leva o amigo à suposição de que as touradas foram suspensas, talvez pela morte do touro, talvez por um acidente fatal com o toureiro.
           
Melidônio acha a história do amigo carregada de exagero, mas que se salva pelas referências musicais. Você também pensa assim?
Etelvaldo Vieira de Melo  
  


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