PENSAR É ESTAR DOENTE DOS OLHOS

Imagem: blogsdelagente.com


Uma rosa é uma rosa.                       
A mulher é a mulher.
Néscio é aquele que diz:
"Essa mulher é uma rosa"
ou
"Essa rosa é uma mulher".

Uma pérola é uma pérola.
A mulher é a mulher.
Tolo é aquele que diz:
"Essa mulher é uma pérola"
ou
"Essa pérola é uma mulher".

Muitos poetas já compararam
mulher e flor.
Bobos são eles
pois flor é flor
mulher é mulher.

Também houve os tontos
que viram a mulher na lua
e vice-versa.
Certamente que estavam
tocados pela influência
da mãe de Freud.

Há um poeta
chamado "o poetinha"
que compara a mulher ao mar,
às estrelas, à terra,
menos ao sol,
que sempre é ele, o poeta.

Louve-se e salve
quem soube ver as coisas como são
e não através de fúteis imagens.

Louve-se
quem viu a natureza
e não chamou-a Deus.

Afora isso,
apascenta o teu rebanho
e deixa em paz as mulheres
e as suas supostas tempestades.

FATOS & FOTOS

         Há séculos, os japoneses já nos ensinavam (e a gente os ridicularizava por isso) que o chique de um passeio é documentá-lo através de fotografias.
        
Para uma boa foto são necessários dois requisitos básicos: percepção e reflexo, atributos que eu – definitivamente - não disponho. Não querendo que um passeio ao Rio Grande do Sul se perdesse nos escombros de minha decadente memória, tratei de registrar alguns momentos, usando de palavras, em vez daquelas modernas máquinas digitais, cheias de pixels, zoons e outros bichos estranhos. Ficou assim:

PRIMEIRA IMAGEM: UM SENHOR GORDO, EM PÉ E GESTICULANDO, NO CORREDOR DE UMA AERONAVE

Não sei como certos malfeitores conseguem sair impunemente do país. Quando do embarque, ficamos aguardando por quase uma hora solução para o impasse sobre o número de passageiros registrados na contagem dos comissários de bordo e aquele que constava no Sistema. Havia um a mais, segundo a contagem visual. Fiquei extremamente nervoso ao ouvir a palavra “Sistema”, já que nossa relação não tem sido nada amistosa. Pensei: É agora que ele vai me pegar! Entretanto, fui ajudado por um senhor gordo e que demonstrava certo complexo. Ele se levantou da poltrona e disse:
           
- Vai ver que sou eu esse passageiro fantasma. Podem me colocar para fora do avião.
         Foi aí  que me dei conta  de como seria  difícil ajudar aquele  político impossibilitado de colocar um dedinho do pé fora do país, tudo por implicância de estrangeiros, que acham um absurdo uma pessoa, tida e havida como ladrão, não estar atrás das grades. Eles não sabem que ele está lá em Brasília, trabalhando arduamente para o bem geral da nação.

SEGUNDA IMAGEM: CONVERSANDO COM O CAIXA DE UMA
SORVETERIA
           
Já no Sul Maravilha, notei que as pessoas da região dificilmente usam a expressão “real” para designar dinheiro; para eles, o termo é “pilla” (uma “casquinha” custa 4 pillas). Trata-se de uma herança cultural de um político gaúcho, chamado Raul Pilla. Por causa da diferença de fuso horário entre o real e o pilla, estou vendo meu suado dinheiro ir pro ralo da pi(ll)a. Como as coisas aqui são caras! Entretanto, como todo turista tem sua dose regular de bobeira, antevejo um abalo em minhas finanças, que me levará a um longo período de recessão.

TERCEIRA IMAGEM: CAMINHANDO SOBRE UM ASFALTO
SOLTANDO FUMAÇA
           
Embora o contexto seja de verão, imaginava que a Serra Gaúcha tivesse um clima ameno. Que nada! Com a onda de aquecimento global, aqui anda pegando fogo. Foi isso que comentei com um parente, via telefone:
           
- Vim para o sul comer churrasco, não para virar um.

QUARTA IMAGEM: EM UM ÔNIBUS DE TURISMO, UM GUIA
FALANDO PARA PASSAGEIROS
           
Vivendo e aprendendo: nunca havia imaginado que a dança italiana chamada Tarantella foi criada como forma de tratamento para a picada da aranha tarântula. Foi isso que nos disse o guia. Caso esteja em desacordo com a história, favor fazer acerto de contas com ele, o guia.

QUINTA IMAGEM: DO ÔNIBUS DE TURISMO, A VISÃO
DE UMA PEQUENA CIDADE
           
No Sul Maravilha existe uma cidadezinha chamada Feliz. Com o analfabetismo erradicado, sua população ainda atinge os mais altos índices de vida do país. Uma possível explicação para tal sucesso talvez seja o festival de chope que a cidade promove todo mês. Ao ouvir a explanação do guia turístico, fiquei entusiasmadíssimo, pensando em me mudar para tal cidade, enquanto é tempo. Na minha idade, um tempinho a mais de vida já vale muito, eu que estou rapando o tacho com a colher. Tornando-me morador de Feliz, serei um felizense; se jogar na loteria e ganhar o prêmio máximo, serei um feliz felizense felizardo. Para fechar com chave de ouro tanta alegria, ou: colocando a cereja no bolo, em Feliz poderei morar em dois bairros: primeiro, em Roncador, sem problema para mim; depois, quando as cortinas estiverem se fechando, no bairro Bom Fim.

SEXTA IMAGEM: DENTRO DE UM VAGÃO DE TREM,
APRESENTAÇÃO DE UM GRUPO MUSICAL
           
O percurso entre as cidades de Carlos Barbosa e Bento Gonçalves pode ser feito num trem, uma Maria Fumaça. Muitas brincadeiras, shows e números musicais são apresentados durante o trajeto. Enquanto rola a brincadeira, duas moças tentam nos empurrar bugigangas e comestíveis, esvaziando ainda mais nossos bolsos. Em dado momento, um passageiro capixaba falou pra um cearense, que devorava um pacote de amendoim:
           
- Amendoim, não! Com tanto menino abandonado, você não vai querer fazer mais um.
           
Achei aquele comentário sensato. Tanto assim que me dispus procurar a empresa que administra o passeio, pedindo para suspender a venda do dito amendoim.

SÉTIMA IMAGEM: DENTRO DE UMA LOJA DE UMA
FÁBRICA DE CRISTAIS

No município de Gramado, existe uma fábrica de cristais. Lá, o princípio de que tamanho não é documento definitivamente está enterrado. Fiquei procurando peças miudinhas para levar de souvenir ou lembrança. Tinha que comprar uma coruja para um parente, já que ele é colecionador dessa espécie ovípara. Falei para o vendedor, um uruguaio de pouco tempo de Brasil:
           
- Sei que a coruja é símbolo de sabedoria, mas você pode me arranjar uma bem burrinha, que não acho ruim, ainda mais tendo um precinho em conta. Outra coisa: também não importa se tiver uma asa quebrada ou um defeitinho de fabricação. Vê se pode me ajudar.
           
De nada adiantou tanto choro e reclamação. Tive que comprar uma em estado normal, pequena e de preço salgado.

OITAVA IMAGEM: DENTRO DE UMA PASTELARIA TEMÁTICA
           
O pasteleiro aqui do sul não é bem o que imaginava. Os pastéis são temáticos, fazem referência a filmes, não a atores. De qualquer modo, não tem comparação aos de Campos de Jordão, em São Paulo, que homenageiam, imagina, os políticos! Não tendo como saborear uma de minhas muitas atrizes favoritas, contentei-me com o pastel doce “Cinema Paradiso” (na verdade, um de meus filmes favoritos), com recheio de doce de leite, nozes, castanhas e catupiry.

NONA IMAGEM: NO TERMINAL RODVIÁRIO DE CANELA,
UMA MULHER (EM PÉ), UM CÃO (APOIADO NAS PATAS)
E O AUTOR (SENTADO NUM BANCO, AO FUNDO)
           
Definitivamente, os cães estão com cotação em alta. No Terminal Rodoviário de Canela, estava eu sentado num banco, aguardando o ônibus que me levaria ao aeroporto. Ao meu lado, estava um cão, daqueles bem comuns. Uma senhora se aproximou, falando assim com o cachorro: “Oi! Oi, amor!” – e nem me cumprimentou ou se dignou a olhar para a minha cara. Eu me senti um autêntico vira-lata.
FIM.

Etelvaldo Vieira de Melo

CANÇÃO DO EXÍLIO



Belo Horizonte,                                         
estamos de volta.
De novo com os amigos,
com essa gente boa
próxima do espírito.
Sentimos falta
de seu clima agradável,
da vida que é esta:
subir Bahia 
e descer Floresta.
Quantas lembranças
em solo alheio
da Savassi
e do Sion.
Quanta falta
das suas igrejas
da Praça Sete
onde o povo formiga.
Imagem: fragmentodetempo.wordpress.com
Enquanto no exílio,
não comemos do queijo
não vimos as canastras
nem a Serra da Mantiqueira.
Lá onde estivemos,
não existe a Liberdade
em que caminhamos
soltos, de tênis
todas as manhãs.
Vontade louca
nas tardes vazias
de comer feijão com arroz
e emendar um doce de leite.
Adeus, falta de telefone,
Facebook, Internet.
Aquele sofrimento
a gente só esquece
no Mercado Central
ou na Praça do Papa.

Só lastimamos
a queda abrupta
do viaduto.
Disso não soubemos
por causa da Copa.
Essa notícia,
cidade-jardim
põe triste a poesia
que mora em mim.

UMA HISTÓRIA E SUAS TRÊS VERSÕES

Para a Graça, com alegria pelo seu retorno do exílio em longas terras.

E
stava um corvo pousado sobre antigo poste de telégrafo, em meio a terreno de pouca vegetação. Ele segurava pelo bico um bom pedaço do famoso queijo Gruyère, queijo que ele havia surrupiado de uma delicatessen na cidade de Montreux, quando de seu famoso festival.
       
Uma raposa, passando pelas redondezas, viu o queijo, viu um bico e viu o corvo. Por causa de sua natureza, aproximou-se sorrateiramente, embora quisesse ser notada. Iniciou, nestes termos, um diálogo com o corvo:
       
- Boa tarde, meu senhor.
       
- Huuummm... – respondeu o corvo.
       
- Não sei se é de seu conhecimento, mas estamos promovendo uma confraternização entre os animais. Estou encarregada de organizar o evento.
       
- Huuummm... – falou, de novo, o corvo.
       
- Como o senhor tem uma maviosa voz, um belo canto, gostaria de contar com sua participação no evento – explicou a raposa, falando – por sua vez – com voz aveludada. – Antes, pediria que fizesse uma demonstração de seu número para mim.

PRIMEIRA VERSÃO
       
Ao ouvir aquilo, tomado de entusiasmo, o corvo abriu o bico e, antes de soltar a primeira nota musical, viu a raposa abocanhar o queijo e desaparecer entre o mato, mais à frente.

SEGUNDA VERSÃO
       
Ao ouvir aquilo, tomado de entusiasmo, o corvo prendeu o queijo entre as garras de suas patas, enquanto dizia:
       
- É verdade que teremos uma confraternização entre os animais? Deve ser por isso que uma matilha de lobos...
       
- Lobos não formam matilha, mas alcateia – corrigiu, educadamente, a raposa.
       
- Então, deve ser por isso que uma alcateia de lobos corre em nossa direção!
       
Ao ouvir aquilo, a raposa deixou de lado seu propósito de roubar o queijo e correu, desesperada, em direção à mata.

TERCEIRA VERSÃO
       
Ao ouvir aquilo, tomado de entusiasmo, o corvo prendeu o queijo entre as garras de suas patas e se pôs a cantar. Entretanto, sua voz era tão estridente, esganiçada, que a raposa, tomada de susto, caiu desmaiada.

Uma matilha (de cães selvagens) passando pelo local, tratou de devorar a raposa.

POST-SCRIPTUM

Tendo a Graça feito o favor de, distraidamente, ter se sentado sobre seus óculos, viu que não havia outra alternativa senão ir até uma ótica, para adquirir outros.
        
Chegando à ótica, foi recepcionada por uma vendedora, que viu uma bolsa, umas mãos segurando a bolsa e uma senhora – essa, com as mãos e a bolsa.
        
- Estou necessitando adquirir uma armação com óculos – falou Graça.
        
- Pois não – falou a vendedora, olhando dissimulada para a bolsa. - Como é seu nome?
        
- Eu me chamo Graça – falou a Graça.
        
- Pois, então, vou lhe indicar uma armação que irá elevar sua graça ao quadrado. Você será duplamente cheia de graça – falou a vendedora, sorrindo, enquanto pegava uma armação e colocava no rosto de Graça. – Não ficou linda?
        
- Mas estou vendo que ela tem o preço muito elevado! – falou Graça, apertando a bolsa de encontro ao peito.
        
- Nenhuma plástica, nenhum botox e nenhum Pitangui serão capazes de deixar seu rosto tão belo, tão cheio de graça, dona Graça, quanto esses óculos. Eles são perfeitos para seu rosto.
        
- Está bem, você me convenceu.
        
Graça abriu a bolsa, entregando uma enorme quantidade de dinheiro para a rapodora. Depois, ela voltou acabrunhada para casa, com o sentimento de ter sido levada na conversa. Ela sabia que, a partir desse dia, carregava uma dor no coração: seu rosto iria se cobrir de tristeza toda vez que colocasse aqueles óculos e aquela “armação”!
Etelvaldo Vieira de Melo



  

[O BRASIL É CAMPEÃO]

Imagem: sergipe-hexa.blogspot.com




O Brasil é campeão
da pobreza mundial
dos impostos sobre os produtos
da diferença entre as classes
da economia em baixa
do enriquecimento ilícito.

O Brasil é campeão
da desigualdade social
da fome
dos baixos salários
da baixa educação
dos problemas da saúde
dos desvios de verba.

O Brasil é campeão
dos processos protelados
da Amazônia devastada
das tribos desalojadas
dos governos desgovernados.

O Brasil é campeão
das cadeias superlotadas
dos corruptos liberados
das cuecas cheias de notas
da certeza mentirosa
de que tudo vai muito bem.

O HANNIBAL LUISITO SUÁREZ (2º DE UMA SÉRIE DE 2)

A Copa da FIFA já chega ao fim e deixa um grande legado para a cidade: com o Mineiraço 2014 (Brasil 1 X 7 Alemanha), Belo Horizonte entra para os Anais da História do Futebol.
Enquanto a cidade faz história e os torcedores correm desnorteados, estou fazendo minha despedida desse torneio, postando uma crônica escrita em 24 de junho.

Tudo na vida permite diferentes leituras. Talvez seja baseado nesse princípio que um advogado se vê no direito de defender um réu, considerado culpado aos olhos da maioria.
       
Sábio é aquele que revê seus conceitos e reconhece os erros de juízo que cometeu; mais sábio é aquele que sabe aceitar um pedido de desculpas e sabe perdoar.
       
A religião cristã nos mostra as grandezas do arrependimento e do perdão, através dos relatos do filho pródigo e do bom ladrão.
       
Nos jogos da Copa da FIFA, quando vi o jogador Luis Suárez, a primeira avaliação que fiz foi a de considerá-lo um mau caráter, por causa de suas declarações racistas; depois, no jogo entre Uruguai e Inglaterra, achei que se tratava de um artista, um Freddie Mercury da bola. Da última vez, no jogo com a Itália, lá estava o Luisito, agora não fazendo gol, mas dando uma mordida no ombro de um adversário, o jogador Chiellini.
       
Como já é a terceira vez que ele toma tal atitude, a de morder seus adversários, já ia eu correndo para pregar-lhe uma nova condenação. Foi quando pensei: Por que não buscar uma leitura diferente para o que ele fez? Encontrei duas opções: uma, de natureza genética; a outra, de caráter mais existencial e filosófico.
       
Aceitando a teoria evolucionista, não tenho como esclarecida a composição de nossos genomas. Olhando a morfologia de Luis Suárez, fica a impressão de que carrega uma herança genética das famílias dos castores e dos esquilos. Os membros dessas famílias necessitam estar sempre roendo alguma coisa, pois, se não fizerem assim, seus dentes crescerão tanto que poderão lhes ocasionar a morte.
       
Dada esta explicação científica, não tem como condenar o jogador, como estão alardeando alguns apressados. Luis Suárez é inocente e sua mordida fica por conta dos antepassados.
       
Acredito que ele sempre procura estar roendo algo, mas, naquelas circunstâncias de um jogo de copa, ele ficou receoso de levar um petisco para dentro de campo. A necessidade de roer, somada à pressão do jogo, deu no que deu.
       
A outra explicação, existencial e filosófica, chega a ser mais completa que a alegação genética.
       
Diante da vida, existem aqueles que sempre se sentem enfarados, como se tivessem comido cinco quilos de feijoada. Você olha para eles e percebe como estão empanzinados. Tais pessoas se sentem acomodadas, satisfeitas e nada de novo lhes interessa.
       
Ao contrário, pessoas como Luis Suárez, sempre se mostram famintas, nunca estão acomodadas. Assim é Luis numa partida de futebol: ele corre, dribla, gesticula, vibra com um gol. Quando está difícil, quando ele não consegue fazer suas jogadas, seja por estar em jornada infeliz, seja pela marcação ferrenha dos adversários, ele faz o inusitado: morde o que vê pela frente, mas não por maldade, simplesmente porque quer ganhar a partida, porque tem fome de vitória.
       
Ah, se as pessoas fossem assim diante da vida! O mundo deixaria de ser opaco e sombrio para se tornar algo luminoso e radiante.

Etelvaldo Vieira de Melo 

IF

É Campeão
Imagem: soccernewshte.wordpress.com
Se o Brasil for campeão                                                      
acaba-se a dívida externa.
Se o Brasil for campeão
já se sabe quem é a presidenta.
Se o Brasil for campeão
não há maia conflito no Iraque.
Se o Brasil for campeão
o deputado é reeleito.
Se o Brasil for campeão
adeus à corrupção.
Se o Brasil for campeão
não há mais mendigos nas ruas,
descobrem-se novas luas
e vai-se a desigualdade.
Viva o grande campeão!

FREDDIE SUÁREZ (1º DE UMA SÉRIE DE 2)





Confesso que fiquei armado de preconceito, quando passou pela minha vista, tempos atrás, o comentário de que o jogador Luis Suárez havia feito uma declaração racista. Nem procurei entrar no mérito da questão e fui logo lhe pregando um rótulo, nesses termos: “Esse cara não presta!”.
       
Além do rótulo, permiti (a mim mesmo, sem levar ao conhecimento de terceiros) fazer esse tipo de questionamento: “Como é possível a um latino-americano não olhar para seu rabo histórico e perceber que corre em suas veias heranças genéticas de um caldo de culturas e de etnias?”.
       
Eu que, de tão branquelo, necessito ter um dermatologista como top de minhas necessidades médicas, nunca, mas nunca mesmo, passou pela minha cabeça uma sombra de preconceito racial. O máximo que tenho é uma certa decepção com a cultura indígena brasileira, quando em visita a exposições de seu artesanato (e artesanato é algo que é top nas minhas preferências culturais).
       
Voltando ao Luis Suárez: fiquei conhecendo o distinto no jogo entre Uruguai e Inglaterra. Sabia que ele é artilheiro e ídolo no futebol inglês, que ele é baixinho (para os padrões do futebol moderno) e meio troncudinho, isto é, que está mais para Hulk do que para Neymar.
       
Juntando todos esses pré-requisitos, eu deveria chegar a uma conclusão, mas acabei chegando a uma bem diferente: ele se tornou a materialização de Freddie Mercury da bola.
       
Freddie Mercury, contra quem pesou muito o preconceito homofóbico, era um artista extra-ordinário, isto é, era um que fugia aos padrões da mesmice que as indústrias fonográfica e de entretenimento nos fazem engolir. Assistir, pelo vídeo da TV, às suas apresentações era algo que enchia os olhos. Tenho minhas restrições quanto à produção musical do grupo Queen, mas não faço nenhuma ressalva a Freddie Mercury, um verdadeiro showman.
       
O que eu vi, no dia 19 de junho de 2014, no gramado da Arena São Paulo, foi a materialização de Freddie Mercury, através da figura de Luis Suárez.
       
O jogador me fez lembrar o artista, não só pela arcada dentária, pelo biotipo, como pela alegria, pelos gestos e pela corrida após um gol. Assim como aquele tinha um domínio absoluto de cena, vi esse baixinho uruguaio se posicionar atrás de um gigante inglês e desferir uma cabeçada fatal, artística, contra as redes adversárias (confesso que, naquele momento, julguei estar ouvindo, junto com os gritos da torcida, acordes de Love of My Life e How can I Go on). Foi tudo muita alegria, esqueci momentaneamente o preconceito. Só ficou faltando o bigode no rosto daquele jogador para que eu viesse a questionar mais profundamente minhas convicções religiosas.
       
Pode ser que o Uruguai tropece frente ao próximo adversário (estou escrevendo este texto no dia 22/06/2014), que fique pelo caminho (um filósofo do futebol, Neném Prancha, a que se atribuem frases como “o importante é o principal, o resto é secundário” e ”se macumba resolvesse, o campeonato baiano terminava sempre empatado”, também dizia que “o futebol é uma caixinha de surpresas”).
       
Não importa. Junto com a lição de civilidade da torcida japonesa, estou resgatando a lembrança de um artista da voz, através da atuação de um outro artista, que usa os pés (e a cabeça) para mostrar que o futebol, apesar de comércio voraz, é também uma arte.
Etelvaldo Vieira de Melo