VAI, QUE A FILA ANDA!

Em plena segunda-feira, mais de seis horas da tarde, ou 18 horas (6:00 p.m., para os leitores internacionais e os que estão nas “nuvens”), passava Ilvimar por uma avenida do bairro e viu multidão a quase se perder de vista, frente a uma Casa Lotérica. Deduziu que tanta pessoa não estava ali para fazer uma fezinha, jogar dinheiro fora. As casas lotéricas se tornaram, ao longo do tempo, instituições multifuncionais. Além do tradicional jogo de loteria, pode o cliente ali utilizar de serviços bancários, como pagamento de faturas e saques.
         
Ilvimar considerou um absurdo o governo, ao mesmo tempo, proibir jogos de azar para particulares, enquanto arranja os seus, tantos que seria enfadonho enumerá-los aqui. O azar continua para aqueles que ficam tentando a sorte. Ela sorri mais para aqueles que encontram, assim, uma forma fácil de extorquir o dinheiro suado de pobres coitados. Muitos deles deixam faltar o pão em casa, seduzidos pelo canto de sereias, empenhadas em afundar-lhes os barcos.
         
Além dessa consideração sociológica, Ilvimar observou também um aspecto psicológico naquela situação. As pessoas que ali estavam não demonstravam cansaço ou revolta. Elas exerciam um dos reflexos condicionados do povo brasileiro, o de frequentar uma fila. O hábito de estar numa fila é tão enraizado na mente das pessoas que existem aquelas que entram numa e, se você lhes pergunta o que estão fazendo ali, irão responder:

    - Nem sabemos. Vimos a fila e achamos por bem entrar nela.

Antigamente, filas se formavam nas agências bancárias, frente aos caixas. Como banco não é instituição de caridade, havia um sentimento crescente de revolta nas pessoas ao se sentirem extorquidas, ao mesmo tempo em que se sujeitavam a aguardar em fila. Os banqueiros tiveram a brilhante ideia de tratar aquelas pessoas como se fossem filhotes de cobra: fizeram com que as filas tivessem formato de meandros, formados por suportes e correntes, dando a ilusão de que o atendimento seria em instantes. Aquilo acalmou um pouco o nervo das pessoas. Logo depois, vieram os caixas eletrônicos. Frente a eles, as filas também se formam, mas o sentimento que despertam é de quase religiosidade. Ali, as pessoas se sentem dialogando com a tecnologia em um de seus mais evoluídos estágios. Por isso, o nível de reclamação é baixo, mesmo quando muitos caixas ficam inoperantes, por estarem em “manutenção”, e apenas dois ou três são disponibilizados para um grande número de clientes.

Ilvimar considera que esse hábito de induzir as pessoas a frequentarem filas não passa de um artifício do Todo Poderoso, o Sistema, para domesticar, eliminar qualquer sentimento de rebeldia, “abaixar o facho” de quem quiser falar mais alto.
         
Assistimos, hoje, a um estágio evolucionado da fila: ela não se faz mais coagindo as pessoas a ficarem em pé; em muitos casos, há uma distribuição de senha e o pretendente aguarda sentado em poltrona ou cadeira. Entretanto, tal situação não deixa de ser uma fila.
         
Refletindo sobre o tema, viu Ilvimar que ele envolvia questões complexas. Considerou, por exemplo, que provocar fila é estratégia de marketing: filas para comprar ingresso de um show; filas pra aquisição do último lançamento de determinada marca de Smartphone; fila para comprar numa queima de estoque de uma rede varejista.
         
Fechando suas lucubrações, Ilvimar considera que o povo, qual cachorro no experimento de Pavlov, já se condicionou a uma fila, sente prazer em estar numa, mesmo que seja para reclamar, dizer desaforos. A única que provoca indignação genuína é aquela formada nas seções eleitorais, Mesmo assim, quando sai da cabine, pode se ver um meio sorriso orgulhoso no rosto daquele eleitor, enquanto cuida de guardar o ticket comprovante de votação na carteira.
         
Quase chegando em casa, Ilvimar encontrou o amigo Fridolino Xexéo, aquele que já brindou os leitores do blog com três belas músicas espanholas. Comentando o tema, soltou Fridolino estes versos:

Dizia o político à multidão:
O ex-ministro Beltrão
Infelizmente errou a mão.
O problema do país não é a burocracia
Mas o número de fila em demasia.
Para sanar a questão,
Enviarei uma moção
Em forma de abaixo-assinado
Ao Congresso para ser votado.
Por favor, assinem este atestado.

Estando em frente à Prefeitura
Criou-se enorme confusão
Todos querendo, a um só tempo, dar sua assinatura.
O político, vendo aquilo, ergueu a mão,
Dizendo: Para que possam assinar todos da Vila
É bom se organizarem em fila!

Nessa segunda-feira em questão, Ilvimar vai se encontrar com sua namorada, Darcília Abraços. Como Ilvimar anda mais enrolado que bobina de motor, numa indecisão danada, sem saber se vai ou se fica, a Darcília, ao invés de um abraço, deu-lhe uma intimação:
        
    - Vê se decide, projeto de homem, que a fila anda!

Etelvaldo Vieira de Melo

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