Aparentemente
seria coisa simples fazer aquela entrevista com Millôr Fernandes – um mamão com
açúcar, segundo o dito popular. O autor estava disponível através das páginas
de “Millôr Definitivo – a Bíblia do Caos”, livro editado pela L&PM.
Eu queria
recorrer ao Guru do Meyer, anotando aqueles seus principais ditos que melhor se
ajustam à expectativa de uma passagem de ano. Meu trabalho seria fazer uma
montagem com perguntas pertinentes.
Minha admiração
por Millôr vem de longa data, tendo já postado uma crônica em sua homenagem (Fábula Nebulosa: O Bêbado e o Balconista, 23/03/2013, alusão ao seu livro Fábulas Fabulosas e à música O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco
e Aldir Blanc).
Bom, foi fácil e
foi difícil o trabalho. O fácil se tornou difícil por causa da riqueza do
material disponível, e acabei me perdendo entre tantas citações impagáveis
(acho que Millôr iria detestar ler isto), muitas vezes caindo fora daquele
propósito inicialmente traçado. Depois, as perguntas deveriam estar à altura de
suas falas, uma vez que Millôr dispõe de humor por vezes ácido, e eu corria o
risco de cair no ridículo.
Independente de
tudo, de sua inteligência, versatilidade, língua ferina, são poucos aqueles que
se aproximam de sua integridade, honestidade e honradez. Quando vejo o tipo de
humor que circula por aí, nos programas de TV, nos jornais e revistas, a
saudade de Millôr fica mais sentida. Ele é um dos poucos humoristas que fala
coisas sérias de maneira divertida; o que vemos na atualidade é apelação pura,
baixaria a troco de nada.
Vamos em frente,
pois a recomendação do mestre é de não usar doze palavras se posso me servir de
onze; até agora, contabilizei treze. Então, à entrevista.
P = Primeiro, à moda
dos testemunhos em julgamentos, promete dizer a verdade, somente a verdade e
nada mais que a verdade?
R = Quem pede pra
contar toda a verdade já está me exigindo uma mentira.
P = Para os
desavisados, quem é você?
R = Millôr Fernandes,
jornalista amador, que só recebe por fora e não agride a camada de ozônio.
P =Com tanto
escândalo sob investigação, parece é que não vai faltar trabalho pros advogados
este ano.
R = A advocacia é a
maneira legal de burlar a Justiça. A notoriedade do advogado de defesa aumenta
na medida em que faz voltar à circulação, com atestado de homens de bem, os
piores assassinos, ladrões e contraventores.
P = E a corrupção?
Vai dar jeito este ano?
R = Muita gente que
fala o tempo todo contra corrupção está apenas cuspindo no prato em que não
conseguiu comer.
P = Epa! Juro que a
carapuça não me serve...
R = Também penso: Já
que não podemos repartir melhor a riqueza, pelo menos devemos democratizar a
corrupção.
P = Com tanta
operação da Polícia Federal contra esquemas de corrupção, qual o seu conselho
para um possível corruptível?
R = Se você não tem
cobertura prum bom golpe, o melhor é ser honesto.
P = Como classificar
a corrupção em nosso país?
R = A corrupção no
Brasil não é mais um problema social ou ético. É matemático. O único país do
mundo com 110% de corrupção.
P = A presidenta
defende a ideia de se realizar um plebiscito para uma reforma política. Tem
alguma sugestão de plebiscito?
R = Você é contra ou
a favor da legalização da corrupção?
P = Acho que a
corrupção vem muito (c/débito e haver) dessa relação incestuosa entre políticos
e empresas, notadamente as empreiteiras. Estou certo?
R = Com esses
contratos entre o governo e as empreiteiras o Brasil inovou mais uma vez. Não
temos assaltantes de estradas; temos estradas de assaltantes.
P = Fechando este
quadro, boas notícias para o Ano Novo?
R = Boas notícias,
afinal. Nos últimos seis meses não houve nenhum aumento de corrupção na área
estatal. Continuamos nos mesmos 100%.
P = Vamos falar um
pouco da política e dos políticos.
R = Esses políticos
todos andam tão ocupados com salvar o país que nem têm tempo de ser honesto.
P = Mas a nossa
classe política é formada por profissionais.
R = Político
profissional jamais tem medo do escuro. Tem medo é da claridade.
P = Como anda o
Congresso Nacional?
R = No Congresso
Nacional uma mão suja a outra.
P = O quadro é tão
dramático assim?
R = A corrupção anda
tão generalizada que já tem político ofendido ao ser chamado de incorruptível.
P = Quer aproveitar o
espaço e dar uma indireta para alguém que está no Poder?
R = O máximo de
habilidade político-econômica é a desses caras que se locupletam no capitalismo
entrando pela esquerda.
P = Com tanto
escândalo no mundo político, com tanta corrupção, qual a alternativa que nos
resta?
R = Agora, que todas
as ideologias falharam, só nos resta a cirurgia plástica.
P = Com o novo
mandato, teremos uma reforma ministerial. Qual a sua avaliação?
R = Não chega a ser
uma reforma ministerial; apenas mudança de cúmplices.
P = Como está o ar de
Brasília?
R = A corrupção em
Brasília, já diagnosticada como cleptomania, atingiu agora seu ponto mais alto;
desapareceu até a umidade relativa do ar.
P = Já que você insiste
nesta tecla da corrupção, vamos associá-la de vez ao seu princípio e ao seu
fim, o dinheiro. Tem hora que você diz uma coisa, tem hora que diz outra. Está
bem, já que você duvida daqueles que mantêm o mesmo ponto de vista por mais de
uma semana. Mas você disse que o dinheiro é tudo na vida. Quer dizer, então,
que as pessoas devem correr atrás do dito cujo?
R = O dinheiro compra
o cão, o canil e o abanar o rabo. O dinheiro fala e também manda calar a boca.
O dinheiro é a mais perversa das invenções humanas. O dinheiro é tudo. Ele é a
fonte de todo o bem. Faz dentes mais claros, olho mais azul, amplia a dignidade
individual, aumenta a popularidade, produz amor e paz espiritual e, quando tudo
falha, paga o psicanalista.
P = Falando em
dinheiro, não tem como deixar de falar dos banqueiros.
R = Os banqueiros não
perdem por esperar. Ganham. Já o governo faz muito bem em proteger os
banqueiros. Quando um banqueiro ganha mais 100 milhões, automaticamente, pelas
estatísticas, todo o nordestino aumenta o seu per capita.
P = Agora sobre o
Brasil, uma coisa boa é reconhecer que Deus é brasileiro, não é mesmo?
R = Está bem. Deus é
brasileiro. Mas para defender o Brasil de tanta corrupção só colocando Deus no
gol.
P = Mas o Brasil é um
país grandioso, imenso.
R = Eu sei. O Brasil
tem oito milhões de quilômetros quadrados. Mas tirem isso, e o que sobra?
P = Está claro que o
país necessita de reformas, mas isso vai doer de alguma forma. Existe uma
alegoria que possa amenizar isso?
R = Para pregar um
prego sem machucar o dedo basta segurar o martelo com as duas mãos.
P = Um diagnóstico
definitivo sobre o país.
R = O Brasil está
cada vez mais cheio de pobremas.
P = Às vezes eu fico
desanimado com tanta canalhice em nosso país. Canalha tem conserto?
R = Canalhas melhoram
com o passar do tempo (ficam mais canalhas).
P = Millôr, eu pago
pra ver nosso país tomar jeito.
R = Ver para crer é
um conceito totalmente hermético para os cegos.
P = Muita coisa
precisa ser mudada no país.
R = É, há muita coisa
a ser mudada, mas não se pode mudar tudo. Daqui a milhares de anos a coisa mais
confortável pra gente se sentar ainda vai ser a bunda.
P = Quer dizer que
você é um otimista?
R = Parece que o
negócio do Brasil agora é desconfiar de Deus e tirar o pé da tábua.
P = Mas, depois de
tudo, você vê uma saída para o país, uma luz no fim do túnel?
R = No meio da falta
de hierarquia, corrupção e anarquia, descobriu-se dramaticamente que não há luz
no fim do túnel. Na verdade, nem criaram o túnel.
P = Para que não
fique com a pecha de mal-humorado, vamos falar de amenidades, encaixando uma
coisa ou outra nos prognósticos para o ano que se inicia. Vamos lá? Primeira
questão: o que tem a dizer sobre a juventude de hoje?
R = Não é em tudo que
estou de acordo com a juventude. Agora, essa permissividade, essa revolução
sexual, não sei não, mas é uma coisa que me interessa muito.
P = Coisa engraçada é
ver como moças cheias de graça se engraçam por pessoas não tão engraçadas, para
não dizer feias. Isso vai continuar?
R = Burro carregado
de ouro é cavalo de raça.
P = Agora, uma
pergunta de meu interesse: a gente aprende algo com a vida?
R = Uma coisa a vida
ensina – a vida nada ensina.
P = Algum segredo
para o rejuvenescimento, além de plástica e botox?
R = Só existe uma
maneira segura para remoçar: é andar sempre com pessoas vinte anos mais velhas
do que você.
P = Puxando a brasa
pra minha sardinha, ou puxando a sardinha pra minha brasa (pra falar a verdade,
até hoje não sei como dizer): o que pensa dos mineiros?
R = Um mineiro nunca
é o que parece, sobretudo quando parece o que é.
P = Melhor confissão
de ateísmo.
R = Se Deus me der
força e saúde, hei de provar que ele não existe.
P = E a fé?
R = Com fé você
vence. Sem fé, você passa para trás os que venceram.
P = Qual o argumento
para provar que a mulher é necessária na vida do homem?
R = Todo homem
precisa de uma mulher porque tem sempre uma coisa ou outra da qual realmente
não se pode culpar o governo.
P = No fundo e a bem
da verdade, o que vem a ser amor à verdade?
R = Chama-se de amor
à verdade a nossa permanente tendência a descobrir defeitos nos outros.
P = As pessoas cada
vez mais se apegam a seus animais de estimação. Você admira algum animal?
R = O camelo: é um
animal que, depois de ficar dias sem comer nem beber, consegue passar pelo
fundo de uma agulha, e entrar facilmente no reino do céu (embora eu gostaria de
entender porque o camelo iria fazer isso – passar pelo buraco de uma agulha).
P = A felicidade nos
torna felizes?
R = A felicidade faz
a pessoa generosa. A generosidade acaba fazendo a pessoa infeliz.
P = O Facebook faz
sucesso. Tem algo a dizer?
R = Atenção,
meninada, fazer relações públicas não é tornar públicas as relações.
P = Por que você
defende o divórcio?
R = O divórcio é muito
importante porque permite a pessoa se casar uma primeira vez por interesse e,
com o dinheiro desse primeiro casamento, casar de novo por amor. Já quem se
casa por amor a primeira vez e perdeu tudo que tinha, adquiriu, nesse primeiro
casamento, suficiente experiência pra ter mais juízo no segundo.
P = E o casamento?
R = O pior casamento
é o que dá certo.
P = Teme a morte?
R = Bom é continuar a
ser sem o não ser à espera.
P = Algo mais?
R = Não vai ser
assim, fácil, fácil, me botarem num cemitério. Vão ter que passar por cima do
meu cadáver.
P = Algo que lamenta.
R = Tanta plástica no
rosto, no seio, na bunda e ninguém aí pra inventar uma plástica no caráter.
P = Você não acha que
as pessoas deveriam se dedicar mais à leitura?
R = É inegável que a
leitura melhora fundamentalmente o ser humano. Desde que, claro, ele seja
alfabetizado. Já a televisão piora até o analfabeto.
P = O que fazer
quando, ao longo do ano, baixar o desânimo, o tédio, a descrença?
R = Não desespere –
no momento em que a vida lhe parecer realmente insuportável, desligue a
televisão e converse um pouco.
P = Como aparentar
ter boa reputação?
R = Para você ter
reputação de extremamente honesto, basta, quando alguém na rua gritar “Pega
ladrão!”, fingir que nem é com você.
P = Ainda temos
racismo e preconceito?
R = Nas estranjas,
dizem!, todo homem é inocente até prova em contrário. Mas no Brasil pobre e
preto é culpado até prova em contrário, e em muitos casos vai em cana como
prova em contrário.
P = O que é viver?
R = Depois de não
existir nunca e antes de desaparecer para sempre, a gente vive um pouco.
P = Um sinal dos
tempos modernos.
R = Vivendo hoje, a
gente não pode deixar de ter saudade daqueles tempos em que a humanidade era
mais pura e inocente, como em Sodoma e Gomorra.
P = Carnívoro ou
vegetariano?
R = Ao fim e ao cabo
o homem que come carne é tão vegetariano quanto o homem que come vegetais. A
carne é apenas a transubstanciação do capim que o animal come.
P = Uma máxima que,
no mínimo, cairia como luva para a laboriosa classe política.
R = Nunca deixe de
não fazer amanhã o que pode deixar de fazer hoje.
P = Uma imagem forte
para o Ano Novo.
R = O pobre marido
saiu da maternidade triste a abatido. Nascera-lhe uma dúvida.
P = Uma revisão
histórica.
R = O maior erro de Noé
foi não ter matado as duas baratas que entraram na Arca.
P = Uma prescrição
médica.
R = Quando você está
com a garganta muito inflamada, o melhor mesmo ainda é um bom gargarejo com
água, sal e limão. Pode não melhorar a inflamação, mas serve para verificar se
o pescoço não tem nenhum furo.
P = Uma prescrição
psicológica.
R = Nos momentos de
grande perigo é fundamental manter a presença de espírito, já que não é
possível conseguir a ausência de corpo.
P = Chegando aos
finalmente, uma boa receita para o Ano Novo.
R = Sempre que te
derem um pontapé, oferece a outra nádega.
P = Na passagem de
ano, qual o conselho: beber com moderação ou tomar todas?
R = Beber é ruim. Mas
é muito bom. Deve-se beber moderadamente, isto é, um pouco todos os dias. Isso não
sendo possível, beber muito, sempre que der. Mas o abuso, como a moderação, tem
que ser aprendido. O amador que abusa tende a ficar desabusado.
P = Uma dica para o
caso de uma pessoa se sentir mal.
R = Quando, ao
apertar a barriga na altura do fígado, você sentir dor, deixe imediatamente de
apertar.
P = E o Ano Novo?
R = Ano Novo, pois é.
Coisa bem velha... Mas 2015 está aí mesmo... e a presidenta Dilma vai atender a
todas nossas queixas. Queixem-se. Boas entradas.
Bonificação (para você tirar de
vez “o escorpião do bolso” e comprar esse livro “Millôr Definitivo – a Bíblia
do Caos”, que custa baratinho – eu mesmo dei conta de comprar um):
·
Alfabetização
= No meu tempo vovô via a uva. Hoje Ivo come a Eva.
·
Chato
= é o cara que conta tudo tintim por tintim e depois entra em detalhes.
·
Honestidade
= Basta olhar em volta pra ver que a honestidade não é coisa natural. Toda
pessoa honesta tem um ar extremamente ressentido.
Etelvaldo Vieira
de Melo