O PRETEXTO, O TEXTO E O CONTEXTO

         Uma das ideias recorrentes nestes textos que ando produzindo é a de que tudo na vida deve ser contextualizado. Acontecimentos, palavras e maneiras de pensar só poderão ser bem compreendidos sob a ótica do contexto em que foram criados.
         Quando escrevi sobre o aumento indiscriminado da produção de automóveis e do mal que eles acarretam, estava refletindo as condições de determinado momento da história de certo país. Pode ser que, em pouco tempo, sua leitura se torne difícil, tendo o ser humano inventado outros meios de locomoção, como seria o caso dos teletransportes. Os filmes de ficção científica exploram o tema, com instigantes alternativas para povoar o imaginário coletivo.
         O mesmo cinema comete o deslize, ao retratar fatos passados, de apresentar personagens como se vivessem no mundo contemporâneo. Quando assisto a um desses filmes, sinto-me tomado de complexo, como se eu fosse uma regressão histórica. Chego a pensar:
         - Puxa vida, de tanto falar que toda regra tem exceção, sinto-me a exceção da teoria da evolução das espécies, defendida por Darwin! Esses homens de antigamente se mostram mais evoluídos do que eu!
         Apesar de entender que todo texto reflete um contexto, gostaria muito que estes aqui fossem atemporais, que pudessem ser lidos em todos os tempos, já que meu público leitor, em sua maioria, está nas “nuvens”, sendo que muitos ainda nem viram a luz do mundo.
         Assentados os tijolos desta construção lógica e feito o reboco, resta dar o acabamento final, ou seja, aplicar uma camada de pintura sobre tudo o que foi dito. Gostaria que a tinta fosse de primeira, mas como custa caro, vamos abrir mão das sedas, veludos e prêmios, para arrematar com um produto de segunda linha mesmo.
         Tudo tem a ver com uma cerimônia de casamento a que assisti. Desde o começo vi que aquilo não ia dar certo.
         A cerimônia deveria acontecer às dezenove e trinta; no entanto, ela se atrasou por cerca de uma hora e quarenta minutos. Enquanto isso, o templo ia se enchendo de gente e o calor começou a se tornar insuportável e alguém teve a ideia de ligar alguns ventiladores e eles atingiam em cheio os cabelos de mulheres e moças que haviam se produzido com todo esmero para a cerimônia e aquilo era um fato que deixava todas elas aborrecidas.
         O tempo já beirava as vinte e duas horas quando o pastor começou a berrar suas locuções. Ele nem precisaria usar de microfone, já que seu tom de voz era tão alto que, se ali estivesse um fiscal da prefeitura, haveria de lhe aplicar uma sonora multa, por excesso de decibéis.
         E lá estava o dito pastor falando seus impropérios, cuidando de destrinchar o livro do Gênesis, em sua narrativa sobre a criação do homem e da mulher. A interpretação dada pelo pastor era tal como estava escrito, ipsis litteris, sem tirar nem por.
         Ora, convenhamos, aquela narrativa fala dos tempos antigos, quando havia um acordo tático, com a mulher dizendo assim para o homem:
         - Vou cuidar da comida e dos afazeres do lar; enquanto isso, você cuida do provimento da casa, usando de sua força bruta.
         O homem, então, pensou: “Eu serei o varão, o senhor, a cabeça da família”.
         Enquanto isso, pensou a mulher: “Sei o que você está pensando e eu vou deixar você pensar assim. Por enquanto, como adiantamento, vou segurá-lo pela barriga” – numa alusão ao fato de ser ela a dona da cozinha e ao ditado de que a mulher segura o homem pelo estômago. Sabia a mulher também que era dona de outras chaves que abriam outras portas, portões e cancelas. Por isso, sabia muito bem que teria seu homem sempre à mão.
         O pastor, contudo, parece não ter percebido isso. Sua fala era dirigida quase que exclusivamente ao noivo, tratado de varão, senhor, cabeça.
         Nesta altura, minha esposa me cutucou, sussurrando ao meu ouvido:
         - Não sou nenhuma mula sem cabeça, não!
         A fala do reverendo depreciava tanto a mulher, que eu não via a hora em que todas haveriam de se levantar, deixando o templo indignadas.
         Isso não ocorreu porque a noiva teve o cuidado de preparar a liturgia segundo suas conveniências, com encenações que contrariavam as palavras do celebrante. Por exemplo: enquanto ele vociferava varão pra cá e varão pra lá, um casal de crianças caminhava pelo centro do templo em direção aos noivos, levando as alianças. O menino puxava uma carroça... onde a menina estava acomodada.
         Ao final de tudo, ao contrário de meu temor, todos saíram felizes do templo: o pastor e os homens com o sentimento de serem senhores, as mulheres rindo interiormente, confortadas com o recado dos gestos daquela celebração.
         Tudo conforme ao que ouvi minha esposa falando, certo dia, para minha filha:
         - Os homens necessitam do sentimento de autoridade. A gente só finge que aceita. Assim, eles pensam que mandam, enquanto fingimos que obedecemos. É nesse jogo de faz de conta que iremos exercer nossa dominação, usando de nossas poderosas armas.
         É por isso que, depois de muitos anos de estrada, acatei as sábias palavras do ditado ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Etelvaldo Vieira de Melo

 

        
         

2 comentários:

Andréa disse...

Adorei o texto. Me lembro da história das caixinhas existentes dentro do cérebro do homem, que não podem serem abertas simultaneamente.
A caixinha do nada ainda tenho minhas dúvidas, mas tenho que concordar que faz todo sentido.
Enquanto lia o texto as minhas caixinhas, todas conectadas, já reformulavam um velho ditado.
Enquanto o pastor busca o fubá, a noiva esta com a angu prontinho pra servir.
De vez em quando o Fábio pergunta para o Lê:
Quem manda aqui em casa?
E ele devolve a resposta em forma de pergunta:
Mamãe?
E eu morro de rir...

Andréa disse...

Adorei o texto. Me lembro da história das caixinhas existentes dentro do cérebro do homem, que não podem serem abertas simultaneamente.
A caixinha do nada ainda tenho minhas dúvidas, mas tenho que concordar que faz todo sentido.
Enquanto lia o texto as minhas caixinhas, todas conectadas, já reformulavam um velho ditado.
Enquanto o pastor busca o fubá, a noiva esta com a angu prontinho pra servir.
De vez em quando o Fábio pergunta para o Lê:
Quem manda aqui em casa?
E ele devolve a resposta em forma de pergunta:
Mamãe?
E eu morro de rir...

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