MINEIRICE

No curioso romance “A Guerra de Don Emmanuel”, o autor, Louis de Bernières, faz referência a uma tribo indígena da América do Sul cujo vocabulário era constituído tão somente da expressão “inge-inge”. O entendimento ficava por conta das várias entonações, dos gestos, trejeitos e expressões faciais com que a palavra era dita.
Vamos imaginar um diálogo entre dois índios:
- Inge-inge – fala um deles, querendo dizer: “Vamos pescar?”.
- Inge-inge – responde o outro, numa recusa: “Não posso, Anauá me chamou pra capuí”.
(A palavra “capuí” é do vocabulário da língua guaná ou chané, tribo do Mato Grosso. Aparece em seu formato original, para que eu não tenha que subscrever na epígrafe do texto: “O texto a seguir é desaconselhável para menores de 12 anos por conter citações impróprias de sexo e linguagem obscena”. Assim, ele se torna permitido para todas as idades.)
O Brasil ainda preserva muitos regionalismos, apesar da invasão cultural dos plim-plis eletrônicos. Nas Minas Gerais, por exemplo, ainda chega a acontecer este tipo de diálogo, que se tornou anedota, e que eu não tenho vergonha em transcrever:
- Po pô pó? – pergunta um mineiro.
- Po pô – responde o outro.
Para os que moram em outras adjacências, esclareço que o diálogo reproduz um mineiro perguntando pro outro, enquanto está coando café: “- Posso por o pó?”; “- Pode por”, responde o segundo.
Mineiro genuíno – legítimo, melhor dizendo, para que não seja confundido com aquele que é genuíno só no nome, - é desconfiado, arisco, previdente, econômico. Já dizia nosso escritor maior, o Guimarães Rosa, o Joãozito: “Não sei de quase nada, mas desconfio de muita coisa”. Previdente, ele se adianta, pra não chegar atrasado. É por isso que não perde trem.
Falando no dito, “trem” é uma palavra que mineiro emprega para designar um tanto de coisa, ou até mesmo qualquer coisa. Faz lembrar o inge-inge indígena.
Infelizmente, com a globalização e a modernidade, vamos perdendo traços de nossa herança cultural. É uma pena, já que tudo fica disforme na uniformidade da mesmice – como até poderia dizer um compositor baiano, que gosta de empregar essas hipérboles, esses exageros verborrágicos.
A herança cultural é repassada de geração em geração por uma série de fatores, uns determinantes, outros fortuitos e acidentais. A fala mansa, arrastada, parcimoniosa e econômica do mineiro tem a ver com a topografia acidentada do Estado. Definitivamente, não dá pra ficar jogando conversa fora, falando demais (e “dando bom dia a cavalo”), tendo que subir e descer morro. Só de olhar pro horizonte, e descortinar serras, morros e montanhas, já dá uma canseira danada, mais a necessidade de arrastar um banquinho pra colocar o assento.
Porque quase não sai do lugar, o mineiro olha com desconfiança para os estranhos, para os burburinhos e agitos. Não tem nenhuma maldade nesse jeito de ser; o que existe mesmo é insegurança, timidez.
Quanto ao vocabulário quase ingenês, tudo não passa de uma deferência para com a palavra “trem”. O termo que, inicialmente, aparece como meio de locomoção, meio de descansar as pernas, passa a ser usado para designar tudo que aparece pela frente. Vai de uma mulher bonita, “Eita, trem bom, sô!”, até um parafuso que não quer se soltar: “Este trem não sai nem que a vaca tussa!”.
Na minha infância, convivi com dois “trens”, agora usados como meios de transporte.
Por causa de sua topografia acidentada, minha cidade natal nunca dispôs de uma estação ferroviária própria, o que, por longos anos, emperrou o seu progresso, além de nos tornarmos motivo de chacota para os moradores das cidades vizinhas.
            Quando íamos a uma cidade, ou deslocávamos até a Estação da Tartária, ou recorríamos aos préstimos do senhor José Adão e seu caminhão leiteiro.
            A Estação da Tartária era usada para deslocamentos até Oliveira, Perdões ou Lavras. Nessas ocasiões havia algo grave acontecendo, ou seja, tais viagens eram motivadas por problemas de saúde, tendo eu, então, direito a alguns biscoitinhos de maisena ou cream cracker, quase sempre acompanhados de banana prata ou maçãs argentinas. Essas vinham embaladas em papel azul, fininho, e exalavam um inebriante perfume. Tinha vez que só o cheiro da maçã dava conta de sarar minha indisposição.
            Já o caminhão leiteiro do senhor José Adão servia para nos levar até Bom Sucesso, cidade vizinha e onde moravam meu tio e sua família.
            Eu gostava muito desses passeios e que ocorriam uma vez por ano. Quase toda noite, meu tio rateava um tanto de moedas entre os meninos para uma disputa de Bingo. Naquela época, eu era sortudo, chegando a ganhar uns bons trocadinhos. Durante o dia, o tempo era tomado com brincadeiras com um primo de minha idade e sua irmã.  Com essa prima eu me lembro de muitas brincadeiras gostosas de casinha e de médico.
            A chegada até Bom Sucesso era problemática, pois o caminhão do senhor José Adão ia passando pelas fazendas, catando leite. Como as estradas eram todas esburacadas e viajávamos na carroceria, quando chegávamos ao destino, tínhamos que ficar de quinze a trinta minutos nos ajeitando para colocar coração, pulmão, fígado e outras coisas no lugar.
            Deixo aí o registro de minha particular estima para com a palavra “trem”. Pela razão de minha cidade não dispor de uma estação ferroviária própria, sinto-me igual ao Carlos Drummond quando olha para o retrato de sua Itabira: essa falta do trem faz com que eu me sinta um mineiro pela metade, carregando um trauma que talvez ainda necessite ser tratado em sessões de terapia.
O caminhão do José Adão parece que me deixou uma sequela física: frequentemente estou me apalpando, com a sensação de que meus órgãos internos estão fora de lugar; meu coração, por exemplo, ora está batendo do lado direito do peito, ora está na barriga. Como o leite das latas muitas vezes se esparramava pela carroceria, e como o sol era de esturricar, ficava no ar um cheiro azedo. Desde então, “eu não se me dou bem” com o dito leite. Só recentemente é que os médicos modernosos vieram com o diagnóstico acertado, de que tenho intolerância à lactose. Como haveria de dizer mais uma vez o Guimarães, “não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída” pra colocar os pingos nos “is” e acentos nos assentos.
Etelvaldo Vieira de Melo

            

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