QUANDO RATOS ABANDONAM O NAVIO

“Dando nomes aos bois”, ou seja, definindo os personagens desta trama, para que as devidas responsabilidades lhes sejam imputadas, declaro – para fins de direito, de culpa ou desculpa, qual seja o caso – que meu nome é Simplício da Simplicidade Simples, sendo eu, em termos, o responsável pelas delações gratuitas enumeradas a seguir.
Um dos valores que mais prezo nas pessoas é o da coerência, se bem que, no fundo, o indivíduo incoerente não deixa de ser coerente: ele é coerente na sua incoerência. Entretanto, espero que fique entendido como coerente aquela pessoa que é fiel aos seus princípios, que não muda sua palavra ao sabor dos ventos, como se fosse uma folha de bananeira.
Esses dias, assistindo a uma entrevista pela TV, pude observar como é verdadeira a descoberta que fiz recentemente: nada é mais incoerente do que o passado. Não deveria ser assim, já que o passado passou e está acabado. Não obstante (para não repetir o entretanto lá de cima), as pessoas manipulam o passado de acordo com os interesses do momento, e ele, o passado, passa a “dançar conforme a música”. Comparando duas figuras políticas antagônicas (F x L), um repórter reconhecia que o conceito de um estava lá em cima, enquanto o do outro estava lá embaixo. Aventou ele a hipótese de que, num futuro, numa balança imaginária de créditos, um historiador os venha colocar no mesmo nível.
Para mim, assim não dá, pois, comigo, as coisas são oito ou oitenta. Sou um sujeito coerente, tão coerente que, desde que me entendo por gente, carrego um lenço no bolso traseiro esquerdo da calça e um pente no bolso traseiro direito (embora o pente quase não tenha mais serventia, pois já foi o tempo em que tinha os cabelos “unsdulados”). Esse pente era da marca “Flamengo”, fato que me levou a torcer para o time de mesmo nome. Enquanto era fabricado, valia para mim a máxima “uma vez Flamengo, sempre Flamengo”. Quando o pente saiu de circulação, deixei de torcer pelo time homônimo. Outra coisa que abandonei de vez foi o hábito de carregar no bolso dianteiro da calça um espelho, daqueles ovais e que mostram a figura de uma mulher (geralmente pelada). Fiz isso porque não tinha mais sentido, a não ser o fato de provocar lágrimas, ao invés de orgulho, toda vez em que me aventurava a mirá-lo (o espelho, não a mulher).
Meu grau de coerência é tanto, que não me importo em passar por ridículo. “Sou o que sou” – como haveria de dizer aquele famoso rabino, que chegou a ser preso nos Estados Unidos por surrupiar mercadorias em loja de departamento.
Estou dizendo tudo isto porque sinto que fiquei ausente dos acontecimentos do Brasil e do mundo, e agora sou surpreendido pelas posturas de certos órgãos da imprensa. Até alguns anos atrás, endeusavam determinados políticos que, agora, são execrados. Será que percebo tamanha incoerência por não tê-los acompanhado durante certo tempo? Ou será que o errado sou eu, que perdi o trem da História?
Existe um ditado que carrega um grande peso de verdade: quando ele está afundando, os ratos são os primeiros a abandonar o navio.
Sinceramente, eu poderia esperar qualquer coisa dos políticos, já que sua classe, na maioria, é constituída de ratos, gatos (no sentido de gatunos), hienas, lobos, raposas, escorpiões, marimbondos de fogo, mosquitos aedes aegypti, cobras, lagartos e até cachorro zangado, mas não tinha essa parcela da mídia na conta de ratazanas.
Para aqueles que, como ratazanas, abandonam o barco do poder, vale aquela famosa frase do comandante da capitania dos Portos da Itália dirigida ao capitão Francesco Schetino: “Vada a bordo, cazzo!”, quando do naufrágio do navio Costa Concordia, em 2012. “Vada bordo” não como gesto de suicídio, mas de coerência. Afinal, não defendiam com “unhas e dentes” o outro lado? E, agora, por que mudaram? Quais são suas reais motivações? Quando o povo, em última instância, é acusado pelo clima de corrupção e de desmandos que assola o país, quero dizer que os culpados são outros, inclusive uma imprensa que só se deixa levar pelos seus interesses menores. Ao final, torna-se cada vez mais difícil uma educação para a cidadania neste país. 
Obs.: Autonomia, postura crítica, coerência, compromisso com a verdade dos fatos e (se possível) defesa do interesse coletivo: eis, para mim, o Simplício, os ingredientes básicos de uma boa imprensa. Estou sendo simplório?

Etelvaldo Vieira de Melo

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