A ORDEM DOS FATORES ALTERA O PRODUTO?

Não sei se pedi para vir pra este mundo. O que gostaria é de ter escolhido a ordem dos acontecimentos de minha vida.
Se está certo o que dizem os árabes, maktub! (estava escrito!), se nosso destino está previamente determinado, o que queria mesmo é ter sentado com as entidades superiores e estabelecido a sequência de meu tempo de vida.
Se tal sequência fosse franqueada a todos, para que a vida na Terra não se tornasse uma bagunça, cada pessoa teria seu tempo dividido em fatias de cinco anos, podendo manipular essas fatias. O texto abaixo tenta explicar porque as coisas deveriam ser assim, e não desta forma que está aí.
Eu penso que existe algo de profundamente errado com a vida humana. Creio que não fica bem essa cronologia de nascer, crescer, fazer, aparecer, acontecer, ser, descer, padecer e desaparecer. Minhas razões, para pôr em dúvida aquilo que está estabelecido desde sempre, estão fundadas em arguta observação ao longo da minha existência.
Aprendi que, ao contrário do princípio matemático, na nossa vida a ordem dos fatores altera, e muito, o produto final. Como exemplo, eu me lembro de um técnico de futebol que dirigiu a seleção brasileira. Ele passou por duas situações extremas: a conquista do campeonato mundial de 2002 e a vergonhosa derrota (7X1) para a seleção da Alemanha, em 2014. Se fosse você, qual situação deveria vir por último?
Quando alguém chega perto de você e pergunta: “tenho duas notícias para lhe dar, uma boa e a outra ruim, qual quer saber primeiro?”, irá escolher a ruim, deixando a boa para o final, nem que seja para ficar com um gostinho bom na boca?
Quando está tomando um delicioso sorvete, ou comendo uma torta ou um pudim, você o faz moderadamente, saboreando cada porção até chegar à metade? Daí em diante, tem o sentimento de que o gosto passou a ser um pouco amargo, tudo por causa do fim que se avizinha? Assim acontece comigo, não sei se é este o seu sentimento.
Vamos supor que você ganhe de presente uma árvore de jabuticaba, carregadinha de frutos maduros. Quem lhe deu esse presente foi a dona Leíla, mulher do Bomba, farmacêutico renomado da cidade.
Depois de catar um balde cheio de frutos e depois de lavá-los em água corrente, você se senta à mesa e começa o processo de degustação. Qual o seu cuidado? Certamente, você se preocupa em mordiscar primeiro aquelas frutas menores e de pior aparência, evitando engolir os caroços, para que, depois, não venha a sofrer desagradáveis consequências.
Você deixa para o final aquelas jabuticabas graúdas e pretinhas. Quando morde uma, a sua boca faz um barulho de “ploc”, e seu sentimento é o de um prazer indescritível.
Clarice Lispector não foi uma menina que roubava livros, mas ela os amava de uma maneira que as pessoas hoje não têm como entender. Certa vez, conseguiu emprestado um livro de Monteiro Lobato chamado “As reinações de Narizinho”. Ela, ao invés de começar a ler avidamente, fez exatamente como você com o sorvete ou com as jabuticabas de dona Leíla. Ela abraçava o livro, lia, aleatoriamente, algumas frases, morria de ansiedade de perdê-lo. Resumindo, estas foram as suas palavras:
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
Todos estes exemplos mostram que a felicidade acontece em determinados momentos da vida, com esses momentos nem sempre estando nos finais da história.
Acredito que nossa existência teria outro sentido e seria mais agradável se a cronologia ficasse a critério de cada um, segundo as próprias conveniências. Assim, pode ser que alguém prefira essa ordem que está aí, com o momento mais significativo sendo o da velhice e a consequente morte.
Pode ser que outro alguém queira nascer velho, liquidando de vez aquelas jabuticabas pequeninas e azedas, aquelas múltiplas e infindáveis dores que atacam seu corpo.
Quem sabe, haja alguém que prefira ter como momento final o de seu nascimento. Não quero dizer com isso que o indivíduo em questão nasce e morre logo; ele pode começar, por exemplo, na fase adulta; depois, passa para a infância e a velhice, terminando seus dias no nascimento. O importante é que a pessoa possa escolher aquele melhor momento de sua vida como sendo o derradeiro.
Millôr Fernandes já dizia algo a respeito:
Com precoce sabedoria jamais comemorei meus aniversários em ordem cronológica, porque percebi que assim não envelhecia cronologicamente. Fiz 30 anos aos 28, 34 aos 42 e 53 aos 49. Com isso pulei tranquilamente algumas efemérides deixando-as para quando fossem mais convenientes. Este ano estou comemorando 22 anos, dos quais, aliás, tinha me esquecido completamente.
Como podem ver, não estou criando algo de novo ao fazer estas considerações.
O que queria mesmo é que a vida imitasse aqueles filmes de antigamente, quando o FIM era estampado na tela com o herói e a mocinha se beijando apaixonadamente. Mascando chicletes, a gente saía do cinema como que caminhando nas nuvens. Era desta maneira que todos deveriam partir das próprias vidas. Chegando do outro lado, e havendo um outro lado, quando alguém nos perguntasse se valeu a pena viver, a nossa resposta seria um “sim” entusiasmado, nunca um “não” de quem comeu e não gostou. Além disso, é sempre bom fazer valer o ditado de que “a última impressão é a que vem no final”.
Etelvaldo Vieira de Melo

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