OUTRAS FLORES DO CERRADO



PALIPALÃ

É fogo na savana? É cacho de luar? É riso de Vênus?

É espuma no agreste? É arranjo de anjo? É gota no 
   
espelho? É Miró? É milagre? É o que foi? É o há? É
    
lã? É elã? 
     
É palipalã
Imagem: radiologiaanchieta.com.br




TRIBILIN - PIPILIN


Tribilin
roxin
franzidin      
folhin durin
maracujá-do-cerrado

                           Tribilin
                           pipilin
                           florzin                  
                           piquininin
                           de auréolas conformado                            


ENCICLOPÉDIA DE DITADOS POPULARES (VOLUME II)

DOURAR A PÍLULA
            * Expressões similares: engabelar, passar mel, morder e assoprar.
            * Origem histórica da expressão (etimologia):
            Tudo começou por ocasião das Grandes Navegações, nos séculos XV e XVI, com os portugueses buscando um caminho alternativo para as Índias, que não o Mediterrâneo, dominado pelos italianos.  Pelo Atlântico, contornando a África, no extremo sul, próximo à atual Cidade do Cabo, deparavam os navegadores com um acidente geográfico. Ali o mar era raivoso e traiçoeiro. Em 1488, o lusitano Bartolomeu Dias conseguiu cruzar pela primeira vez esse cabo, denominando-o Cabo das Tormentas. Estava, então, sendo inaugurado um novo caminho para as Índias, numa conexão entre os oceanos Atlântico e Índico, fato concretizado por Vasco da Gama em 1497.
            O rei de Portugal, Dom João II, renomeou aquele cabo, batizando-o de Cabo da Boa Esperança. A História registra este diálogo, feito através do WhatsApp, entre o monarca e Bartolomeu:
            - Majestade, acabo de atravessar um cabo aqui no extremo sul da África – falou Bartolomeu, todo ofegante. – Acho que ele vai dar lá nas Índias. Vou batizá-lo de Cabo das Tormentas.
            - Não faça isso, Bartô – retrucou o rei. – Agindo assim, você espanta quem quiser se aventurar ir até lá. Vamos “dourar a pílula”, chamando este acidente tormentoso de “Cabo da Boa Esperança”.
Estava o rei João, com aquele gesto, inaugurando, ora, pois, pois, o costume de “dourar a pílula”, embora eu – sinceramente e a bem da verdade – nem mesmo sei se naquele tempo havia essa tal de pílula. Sei que ela se tornou famosa na década de 60. Então, pílula era sinônimo de anticoncepcional e tão somente, um palavrão para as mentes conservadoras.
            Quanto ao seu sentido, a expressão significa fazer uma maquiagem em algo amargo ou doloroso. Seria como uma espécie de anestésico, mas que não anestesia completamente.
            * A expressão hoje:
            Exemplos recorrentes de “dourar a pílula” são: os centavos colocados nos preços de mercadorias, como no exemplo de uma sandália vendida a R$99,99; pessoas idosas serem chamadas de portadoras da “melhor idade”; um feio ser consolado com palavras de que vale mais a “beleza interior” (e ele pensando: “engana que eu gosto”).
            Um exemplo bem acabado para exemplificar o conceito vem dos tempos de antigamente, quando as mães davam óleo de rícino ou Emulsão Scott para seus filhos. Elas tapavam as narinas de seus rebentos e enfiavam-lhes o óleo goela abaixo, arrebentando-lhes a boca, a faringe, o esôfago, o estômago, o intestino delgado, o grosso, o reto e o ânus. O gosto era amargo e, só de pensar, meu sistema digestivo desembrulha. A compensação era não sentir o cheiro, horrível também. Para “dourar a pílula” havia também a promessa:
            - Se tomar direitinho, depois ganha um torrão de açúcar.
            Um exemplo atualizado desta expressão tem a ver com as pessoas do mundo moderno. Elas não aceitam a ordem natural da vida, que é fecundar, gestar, nascer, desenvolver, adolescer, juvenescer, procriar, amadurecer, envelhecer e morrer. Hoje, muitos riscam o termo “envelhecer” de seus dicionários e o substituem por rejuvenescer, o que é arduamente conquistado através de plástica e de botox.  Entretanto, envelhecer – com seus tributos e atributos, com seus ônus e bônus – ainda faz parte da ordem natural dos fatores. Fugir dos estragos do tempo ainda não passa de artimanha de “dourar a pílula”.
Etelvaldo Vieira de Melo 

MAIS FLORES DO CERRADO

MULUNGU

Mulungu dos periquitos joões-de-barro
das borboletas e insetos cascudos
cabuçufolha.

20 metros de flores
na mata ciliar.
Árvore rugosa avó
dos beija-flores
e do voo das abelhas.

Imagem: www.remediocaseiro.com






 FLOR DE IPÊ

Ipê branco
de pérolas raras
cúmulos de pétalas
caindo na vereda  

Ipê rosa
sobre o rio
encontrando o azul
entre cirros
róseo jardim

Ipê amarelo
estrelado anelo
tapete que conforma
a bandeira do Brasil

Ipê roxo
de saudade
dos cachos de nimbos
que choraram uvas
 nas chuvas de abril

UM RESQUÍCIO DE HUMANIDADE

                 “Desesperar jamais” – cantava um antigo compositor, quando a situação do país era o caos por causa da repressão. As pessoas viviam em tal estado de tensão, que nem mesmo se permitiam sonhar com a liberdade. Quando isso acontecia, acordavam assustadas e transpirando com se vivessem um pesadelo.
            Estas coisas são ditas aqui - ad nauseam- tentando calar a boca daqueles que acham um doce o regime de ditadura. Eles não sabem que a falta de liberdade amarga como fel.


            Outra razão desta lembrança tem a ver com a descrença quanto ao sentimento de humanidade. Ainda sob o regime de ditadura, o país fez opção preferencial para o capitalismo, que era, no início, um capitalismo de periferia, também chamado de capitalismo selvagem. Hoje ele criou modos, aparenta ares de civilidade, mas, no fundo e a bem da verdade – como diria um amigo – ele está ainda mais selvagem. O lema de “cada um por si e os outros que se danem” nunca foi tão verdadeiro.
            Entretanto, existem honrosas exceções, para as quais é preciso chamar a atenção, como um aviso aos descrentes de que ainda resta uma esperança, que existe uma luz no fim do túnel.
            Como exemplo (e sei que isto vale só como exemplo, já que não é uma experiência usual), outro dia fui pegar um lotação com destino á minha residência. Sempre fui usuário do transporte coletivo e, agora, no apagar das luzes de minha existência, disponho de uma carteira de passe livre. Com a carteira, posso escolher entre ficar na parte dianteira do ônibus ou passar pela roleta. Prefiro passar pela roleta, na ilusão de que o motô e o trocador (“oficial de bordo”) “engulam” que eu seja um passageiro usual, e não um “pé na cova” – expressão que usam para designar os idosos. Costumo brincar dizendo que, caso sofra uma desfeita num lotação, tal atitude pode ocasionar até morte. Tudo isso não passa de conversa fiada, eu que já me acostumei a “engolir sapos” e toda espécie de batráquio.
            Quanto ao exemplo, que quase me escapole entre os dedos, ele ocorreu quando peguei o lotação num ponto intermediário entre o centro e minha casa (para ficar bem acomodado, costumo usar dos pontos extremos). Como o lotação já estava lotado, abarrotado mesmo, tive que me conformar em, passando a roleta, enfrentar o transcurso em pé. Foi quando uma mocinha, prestativa, quis me oferecer seu assento (quero dizer, o assento onde ela estava sentada). Delicadamente, bati-lhe no ombro, agradecendo:
            - Não, muito obrigado. Pode ficar sentada.
            E completei:
            - Estou em fase de crescimento e preciso aumentar meu tamanho.
            Ao que ela respondeu, sorrindo:
            - É, minha mãe se esqueceu de me deixar em pé, quando ainda era menor.
            A lei da Física estabelece que, com o tempo, as pessoas encolhem. Quero ver se contrario esse princípio e consigo aumentar alguns centímetros em minha estatura.
            Agora, o que aumenta quilômetros a minha esperança de ver o egoísmo ser suplantado pelo amor foi ter vivenciado aquele simples gesto de uma garota me oferecendo um assento num ônibus, numa manhã de terça-feira, em pleno século XXI.
Etelvaldo Vieira de Melo


CALIANDRA


NOTAS DE UM PASSEIO (II)

SOCIO(EM)PATAIA

Dizem que o Brasil é o país das desigualdades sociais. Existiu um tempo em que era chamado de Belíndia, um cruzamento de Bélgica com Índia.
Agora que deixo o asfalto da teoria e caio no lamaçal da prática, só tenho a dizer que tais considerações não passam de baboseiras, lucubração de quem vive no Mundo das Ideias.
Eu me sinto como aquele intelectual que, entrando numa disputa política, aprendeu com seu padrinho e mentor a comer “buchada de bode”.
Foi depois desse aprendizado que ele passou a falar de maneira menos enrolada, num português apropriado para o entendimento da patuleia.
Quando estou tomando um chá de realidade, vejo que a barreira das desigualdades sociais já foi demolida, não passa de “favas contadas”. E nem preciso ir até um aeroporto para fazer tal constatação.
Perto de Arraial d’Ajuda, onde passo uma semana de lazer e passeio, existe outro vilarejo chamado Trancoso. É lá que astros da mais famosa emissora de TV do país constroem suas mansões.
Pois bem, elas estão ali pra quem quiser ver com os olhos. Talvez até seja possível tirar fotos em frente a algumas delas, para serem postas no Face e deixar os amigos “morrendo de inveja”.
Não é i-s-s-o quebra das barreiras sociais? Ainda acha pouco? Pois tem mais:
Na praia, a preço módico, é oferecida a possibilidade de você ser capa das mais famosas revistas que retratam o mundo de artistas, de famosos, da nata da sociedade. Por alguns reais, através de fotomontagem, você poderá comprar os seus quinze minutos de fama. Nem que isso seja para ficar só com você mesmo e mais ninguém.
Ah, estava me esquecendo: você poderá postar a revista de famosos com você na capa nas páginas do Facebook. Além de deixar os amigos ainda mais vermelhos de inveja, estará estreitando ainda mais o fosso das barreiras sociais.
Ou estou sofrendo das vistas, ou estamos assistindo a uma implosão do capitalismo. Juntando essas coisas ao sucesso das lojas de R$1,99, logo, logo estará se concretizando a profecia de que lobos e cordeiros irão pastar juntos. Lá em Trancoso eu vi fumaça dessa ansiada aproximação entre estribados e zé-povinho.

EM BUSCA DE UM TEXTO LITERÁRIO
Leovigildo – Leo, para os íntimos - está fazendo um curso de redação, tentando aprender um pouco mais do que desenhar seu próprio nome.
O professor tem lhe repassado várias técnicas de produção de texto. Numa delas o texto é produzido fantasiosamente a partir de uma imagem captada pela visão.
Estando de férias por uma semana, e frequentando uma praia, tentou nosso personagem colocar em prática a sugestão do professor.
Sentado numa cadeira e bebericando uma cerveja, com as ondas do mar quebrando à sua frente, pegou uma caneta e um papel, querendo soltar a imaginação e escrever alguma coisa.
A primeira ideia que veio à sua cabeça foi a lembrança dos versos daquela música de um compositor baiano, que dizia: “o mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito”.
Entretanto, Leovigildo viu que o mar e as areias em questão não eram tão bonitos assim, pois havia um pouco de sujeira na água.
Quando tentava fixar a vista em águas mais distantes, uma mulher fez o favor de se acomodar numa espreguiçadeira bem à sua frente.
Todos sabemos que os americanos valorizam os seios femininos, enquanto os brasileiros dão mais valor a outras partes. E foram justamente essas outras partes que tomaram todo o campo visual de Leovigildo, estando elas cobertas por um minúsculo “fio dental”, que nem mesmo era possível ser visualizado por inteiro.
Numa das aulas, o professor leu um texto de Clarice Lispector descrevendo uma de suas personagens. A autora dizia que ela tinha o “traseiro alegre”. Leovigildo entendeu perfeitamente suas palavras: um traseiro alegre é um traseiro saltitante, que pula de lá para cá, que não sabe ficar quieto.
Leovigildo – Leo, para os íntimos - confessa que não encontra as palavras para descrever o traseiro da mulher que se acomodou na espreguiçadeira bem à sua frente. Certamente não era um traseiro alegre. Num primeiro momento, ele lhe pareceu sensual, mas, à medida que ia ingerindo doses de cerveja, a percepção ia se modificando para erótico... sexual... pornográfico.
Quando chegou nesse ponto, a vista de Leovigildo ficou turva, embaralhada, e seus pensamentos se perderam num redemoinho de confusões. É por isso que está ansioso em retomar as aulas de redação e perguntar pro seu professor como produzir um texto literário sob aquelas condições de temperatura, pressão e campo visual, aquelas que ele experimentou numa praia de arraial d’Ajuda, lá na Bahia.
Etelvaldo Vieira de Melo
            

PLANTAS DO CERRADO



Imagem: viagem.uol.com.br


FLOR MORANGO-DO-CERRADO

Abajur vermelho
pendurado no galho
por uma teia de aranha

(arte e manha).






DANDELION
Imagem: remediodaterra.com.br
Um leão felpudo
vai correndo na savana.
Sua juba malcriada
balança sob o sol.
Mais um outro,
mais um outro
vêm sentir cheiro de terra
(seca)
Se um menino vê o leão,
assopra
e a fera, desdentada,
se dissolve no ar.

NOTAS DE UM PASSEIO (I)

SOBRE NOMES

Alguns leitores ocasionais deste blog comentam, ocasionalmente, como chegam a ser engraçados os nomes de pessoas que invento ou que copio aqui e ali.
Sempre achei que a ficção procura fazer confronto com a realidade, notadamente quando seu gênero é o da crônica. Quanto à questão dos nomes, o que não podia imaginar é como a realidade consegue superar a ficção.
Isto é verdade especialmente no nordeste brasileiro, e foi o que observei quando estive em Arraial d’Ajuda, na Bahia.
Numa barraca na praia de Pitinga, fomos atendidos por um fulano. Quando converso com alguém, sempre procuro saber seu nome. Os orientais falam que saber o nome de uma pessoa é uma forma de ter um domínio sobre ela. Sendo assim, logo quis saber:
            - Qual o seu nome?
            - Desmil – falou ele.
Julguei que aquilo ou era apelido ou uma maneira de botar o freguês pra correr, mas ele confirmou:
            - É nome verdadeiro, de registro em cartório.
Curioso, quis saber por que.
            - É que meu pai só conseguiu se casar com minha mãe depois de dar dez mil cruzeiros para seus familiares. Quando nasci, ele teve ideia de registrar aquela lembrança, de como eu havia custado tão caro.
Caro mesmo foi a consumação daquela barraca. Não cheguei a gastar dez mil reais, mas saí da praia com uma mão na frente e a outra atrás.
QUANDO UM PINGO É MAIS DO QUE UMA LETRA

Muitos atos são conscientes, outros são inconscientes, e existem aqueles que são nem uma coisa ou outra.
Quanto à interpretação de tais atos, tudo depende dos interlocutores. Existem aqueles que têm o desconfiômetro quebrado, existem aqueles que a simples menção de um pingo não só enxergam uma letra, mas uma frase inteira.
Creio que a colocação de uma figura de “namoradeira” no balcão da recepção da pousada onde estive hospedado em Arraial d’Ajuda foi um ato meramente decorativo.
Acontece que, do outro lado, estão dispostas mesas e cadeiras onde é servido o café da manhã. A namoradeira está colocada de modo a ficar “olhando” para as pessoas ali sentadas fazendo o desjejum.
O que me chamou atenção na estátua foi o seu olhar opaco. Ela fica ali olhando para as pessoas, com a mão no queixo. Sua expressão corporal, em especial seu olhar, parece dizer: “Puxa, como você come! Que coisa!”.
Creio que não era intenção dos donos da pousada refrear o apetite dos hóspedes, mas me senti como aquele para quem um pingo é uma enciclopédia.
Por isso, todo dia, no café da manhã, eu me sentava de costas para a “namoradeira”. Quando me levantava, depois de ter comido e bebido tudo que pudera suportar, e deparava com aquele olhar de reprimenda, dizia em pensamento: “- Sinto muito, mas agora Inês já é morta!” – Ou, traduzindo para um português mais consistente e inteligível: “- Sinto muito, mas agora a vaca já foi pro brejo com chifre e tudo!”.
Etelvaldo Vieira de Melo


               

FLOR DE PEQUI

Imagem: caliandradocerrado.com.br

Em Montes Claros:
pequi no arroz.
Em Taiobeira:
“lavra” o pequi
tira a pele
(segredo, segredo)
seca os pedaços
come o ano inteiro.
Em Salinas:
veste os mais pobres
com licor e óleo
castanha e sabão.
Rói o fruto
antes do espinho
(esse é o pão).
Em Flor de Pequi:
o fruto maduro
qual o habitante
não há de servir?



NEM AS PEQUENAS COISAS NOS AJUDAM A SER FELIZES

Sempre fui adepto da recomendação feita por Gandhi de que a felicidade é feita de pequenas coisas, como descascar batatinhas para um almoço. É por isso que sempre me julguei um sujeito fácil, de pouca exigência, que me contentava com um tiquinho de nada.
Falando em batatas, como sou de levar a sério o conselho dos sábios (às vezes, até mesmo dos ignorantes), seguindo os preceitos acrescidos de juros e correção monetária (pois ainda não eliminei de meu inconsciente a cultura inflacionária), não só cuido de descascá-las, como procuro buscá-las em seus locais de venda, os sacolões.
Você torce o nariz e faz ares de deboche para estas palavras? Pois é você quem sai perdendo por não cultivar tal hábito.
Em primeiro lugar, é no sacolão que você encontra o substrato, melhor dizendo, o coração pulsante de um bairro ou comunidade. As pessoas que frequentam um sacolão criam laços de afinidade e empatia, mesmo que não cheguem a trocar uma palavra, mesmo ignorando os nomes uns dos outros.
É no sacolão que você se despe de sua anomia, que você se torna gente, se humaniza, compartilhando com seus semelhantes a busca de ingredientes para o alimento do corpo.
Creio que uma das razões pelas quais os políticos não têm a simpatia popular está no simples fato de não frequentarem os sacolões. Olha que eles dispõem de muito tempo para isso: os deputados federais e senadores têm compromisso em Brasília um ou dois dias por semana. Frequentando os sacolões eles irão até onde o povo está, eles irão se humanizar! Poderemos até ter na prática aquilo que é um sonho: com os sacolões compartilhados, teríamos os políticos distritais, com cada político frequentando um sacolão.
Só faço dois reparos, o primeiro em forma de questão de ordem: como dividir os sacolões entre os políticos, se esses são em maior número? O segundo reparo é de “passar uma borracha” em tudo isso que proponho, caso os políticos tenham, o que é bem provável, alergia do povo.
Voltando ao que interessa, os sacolões, são eles que representam a sociedade em sua ordem democrática: em suas bancas estão dispostos produtos para todas as castas sociais, a E, a D, C, um pouco da B. Já a casta A não aparece, pois ela faz suas compras em outro mundo, outro planeta. (Certos sacolões se autodenominam “ABC”, mas isso não passa de estratégia de marketing.)
Alguns sacolões são subsidiados por óticas, já que seus frequentadores têm que “gastar” a vista mexendo e remexendo nas frutas e nos legumes, procurando os menos péssimos. Foi daí que levei o hábito de apalpar as bundinhas das latas nos supermercados, quando ali estou fazendo compras.
Além de democrático, o sacolão reforça a ideia dos quinze minutos de fama que todos têm direito. É lá que o chuchu, uma vez ou outra, abandona sua insignificância, atingindo preços estratosféricos. Quando atinge esse preço lá nas alturas, todos os consumidores deixam de lado o pouco caso com essa leguminosa e passam a querer consumi-la desesperadamente. Depois querem que a gente consiga entender o psiquismo humano!
No sacolão, certos ditados populares caem em descrédito ou invertem seu sentido: falar, por exemplo, que algo está “a preço de banana” hoje quer dizer “muito caro”.
Acho que já andei fazendo estas anotações em tempos passados. Não importa, “o sol é novo toda manhã”, mas não deixa de ser o mesmo sol.
Uma coisa que ainda não falei (ou será que já falei?) diz respeito ao sentido do termo “sacolão”. Em tempos passados, as mercadorias eram vendidas a um preço único, o mais baixo possível; algumas outras ficavam por conta da exceção e eram vendidas mais caro. Hoje, até essa ordem está conspurcada (uma das 1.000 palavras que você deverá pronunciar um dia): o sacolão virou fachada, tudo está com preço nas alturas. Aquelas mercadorias com preço mínimo são de tanta inferioridade que nem mesmo Laurentino, que acabou de pingar colírio para comprar uns óculos, por causa da vista gasta, nem mesmo ele, que não enxerga um palmo à frente do nariz, se sente com estômago para ingerir tanta porcaria.
Pelo dito e pelo não dito, fazer sacolão é uma prática que atende muito bem àquela máxima de Ghandi de que devemos dar valor aos pequenos atos da vida. Agora, fazendo justiça ao título de texto, o que lamento são os preços exorbitantes de frutas e leguminosas. Tempos atrás, uma cebola fazia chorar quando era descascada; hoje, só de ver seu preço, lágrimas deslizam pelo meu rosto. Em época de inflação e com salário engessado, nem as pequenas coisas nos ajudam a ser felizes.
                                                                                                          
                                                                                                            
                                                                                       Etelvaldo Vieira de Melo