NOTAS DE UM PASSEIO (II)

SOCIO(EM)PATAIA

Dizem que o Brasil é o país das desigualdades sociais. Existiu um tempo em que era chamado de Belíndia, um cruzamento de Bélgica com Índia.
Agora que deixo o asfalto da teoria e caio no lamaçal da prática, só tenho a dizer que tais considerações não passam de baboseiras, lucubração de quem vive no Mundo das Ideias.
Eu me sinto como aquele intelectual que, entrando numa disputa política, aprendeu com seu padrinho e mentor a comer “buchada de bode”.
Foi depois desse aprendizado que ele passou a falar de maneira menos enrolada, num português apropriado para o entendimento da patuleia.
Quando estou tomando um chá de realidade, vejo que a barreira das desigualdades sociais já foi demolida, não passa de “favas contadas”. E nem preciso ir até um aeroporto para fazer tal constatação.
Perto de Arraial d’Ajuda, onde passo uma semana de lazer e passeio, existe outro vilarejo chamado Trancoso. É lá que astros da mais famosa emissora de TV do país constroem suas mansões.
Pois bem, elas estão ali pra quem quiser ver com os olhos. Talvez até seja possível tirar fotos em frente a algumas delas, para serem postas no Face e deixar os amigos “morrendo de inveja”.
Não é i-s-s-o quebra das barreiras sociais? Ainda acha pouco? Pois tem mais:
Na praia, a preço módico, é oferecida a possibilidade de você ser capa das mais famosas revistas que retratam o mundo de artistas, de famosos, da nata da sociedade. Por alguns reais, através de fotomontagem, você poderá comprar os seus quinze minutos de fama. Nem que isso seja para ficar só com você mesmo e mais ninguém.
Ah, estava me esquecendo: você poderá postar a revista de famosos com você na capa nas páginas do Facebook. Além de deixar os amigos ainda mais vermelhos de inveja, estará estreitando ainda mais o fosso das barreiras sociais.
Ou estou sofrendo das vistas, ou estamos assistindo a uma implosão do capitalismo. Juntando essas coisas ao sucesso das lojas de R$1,99, logo, logo estará se concretizando a profecia de que lobos e cordeiros irão pastar juntos. Lá em Trancoso eu vi fumaça dessa ansiada aproximação entre estribados e zé-povinho.

EM BUSCA DE UM TEXTO LITERÁRIO
Leovigildo – Leo, para os íntimos - está fazendo um curso de redação, tentando aprender um pouco mais do que desenhar seu próprio nome.
O professor tem lhe repassado várias técnicas de produção de texto. Numa delas o texto é produzido fantasiosamente a partir de uma imagem captada pela visão.
Estando de férias por uma semana, e frequentando uma praia, tentou nosso personagem colocar em prática a sugestão do professor.
Sentado numa cadeira e bebericando uma cerveja, com as ondas do mar quebrando à sua frente, pegou uma caneta e um papel, querendo soltar a imaginação e escrever alguma coisa.
A primeira ideia que veio à sua cabeça foi a lembrança dos versos daquela música de um compositor baiano, que dizia: “o mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito”.
Entretanto, Leovigildo viu que o mar e as areias em questão não eram tão bonitos assim, pois havia um pouco de sujeira na água.
Quando tentava fixar a vista em águas mais distantes, uma mulher fez o favor de se acomodar numa espreguiçadeira bem à sua frente.
Todos sabemos que os americanos valorizam os seios femininos, enquanto os brasileiros dão mais valor a outras partes. E foram justamente essas outras partes que tomaram todo o campo visual de Leovigildo, estando elas cobertas por um minúsculo “fio dental”, que nem mesmo era possível ser visualizado por inteiro.
Numa das aulas, o professor leu um texto de Clarice Lispector descrevendo uma de suas personagens. A autora dizia que ela tinha o “traseiro alegre”. Leovigildo entendeu perfeitamente suas palavras: um traseiro alegre é um traseiro saltitante, que pula de lá para cá, que não sabe ficar quieto.
Leovigildo – Leo, para os íntimos - confessa que não encontra as palavras para descrever o traseiro da mulher que se acomodou na espreguiçadeira bem à sua frente. Certamente não era um traseiro alegre. Num primeiro momento, ele lhe pareceu sensual, mas, à medida que ia ingerindo doses de cerveja, a percepção ia se modificando para erótico... sexual... pornográfico.
Quando chegou nesse ponto, a vista de Leovigildo ficou turva, embaralhada, e seus pensamentos se perderam num redemoinho de confusões. É por isso que está ansioso em retomar as aulas de redação e perguntar pro seu professor como produzir um texto literário sob aquelas condições de temperatura, pressão e campo visual, aquelas que ele experimentou numa praia de arraial d’Ajuda, lá na Bahia.
Etelvaldo Vieira de Melo
            

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