UM RESQUÍCIO DE HUMANIDADE

                 “Desesperar jamais” – cantava um antigo compositor, quando a situação do país era o caos por causa da repressão. As pessoas viviam em tal estado de tensão, que nem mesmo se permitiam sonhar com a liberdade. Quando isso acontecia, acordavam assustadas e transpirando com se vivessem um pesadelo.
            Estas coisas são ditas aqui - ad nauseam- tentando calar a boca daqueles que acham um doce o regime de ditadura. Eles não sabem que a falta de liberdade amarga como fel.


            Outra razão desta lembrança tem a ver com a descrença quanto ao sentimento de humanidade. Ainda sob o regime de ditadura, o país fez opção preferencial para o capitalismo, que era, no início, um capitalismo de periferia, também chamado de capitalismo selvagem. Hoje ele criou modos, aparenta ares de civilidade, mas, no fundo e a bem da verdade – como diria um amigo – ele está ainda mais selvagem. O lema de “cada um por si e os outros que se danem” nunca foi tão verdadeiro.
            Entretanto, existem honrosas exceções, para as quais é preciso chamar a atenção, como um aviso aos descrentes de que ainda resta uma esperança, que existe uma luz no fim do túnel.
            Como exemplo (e sei que isto vale só como exemplo, já que não é uma experiência usual), outro dia fui pegar um lotação com destino á minha residência. Sempre fui usuário do transporte coletivo e, agora, no apagar das luzes de minha existência, disponho de uma carteira de passe livre. Com a carteira, posso escolher entre ficar na parte dianteira do ônibus ou passar pela roleta. Prefiro passar pela roleta, na ilusão de que o motô e o trocador (“oficial de bordo”) “engulam” que eu seja um passageiro usual, e não um “pé na cova” – expressão que usam para designar os idosos. Costumo brincar dizendo que, caso sofra uma desfeita num lotação, tal atitude pode ocasionar até morte. Tudo isso não passa de conversa fiada, eu que já me acostumei a “engolir sapos” e toda espécie de batráquio.
            Quanto ao exemplo, que quase me escapole entre os dedos, ele ocorreu quando peguei o lotação num ponto intermediário entre o centro e minha casa (para ficar bem acomodado, costumo usar dos pontos extremos). Como o lotação já estava lotado, abarrotado mesmo, tive que me conformar em, passando a roleta, enfrentar o transcurso em pé. Foi quando uma mocinha, prestativa, quis me oferecer seu assento (quero dizer, o assento onde ela estava sentada). Delicadamente, bati-lhe no ombro, agradecendo:
            - Não, muito obrigado. Pode ficar sentada.
            E completei:
            - Estou em fase de crescimento e preciso aumentar meu tamanho.
            Ao que ela respondeu, sorrindo:
            - É, minha mãe se esqueceu de me deixar em pé, quando ainda era menor.
            A lei da Física estabelece que, com o tempo, as pessoas encolhem. Quero ver se contrario esse princípio e consigo aumentar alguns centímetros em minha estatura.
            Agora, o que aumenta quilômetros a minha esperança de ver o egoísmo ser suplantado pelo amor foi ter vivenciado aquele simples gesto de uma garota me oferecendo um assento num ônibus, numa manhã de terça-feira, em pleno século XXI.
Etelvaldo Vieira de Melo


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