PAISAGEM BUCÓLICA




Imagem: youtube.com

“Um homem vai devagar / Um cachorro vai devagar / Um burro vai devagar / Devagar... as janelas olham” (Carlos Drummond de Andrade).
Para Aloísio, o Loló.
Existem palavras e expressões que, querendo dizer algo, acabam passando outra ideia. Um exemplo é “paisagem bucólica”, que me acorreu quando um sobrinho, o Loló, falou da apresentação de seu coral de homens num vilarejo perdido nos sertões de Minas.
Quando você ouve ou fala “paisagem bucólica”, instintivamente abre a boca num bocejo? Pois é, parece que tal expressão quer falar de uma paisagem monótona e que chama o sono. No entanto, originalmente, “paisagem bucólica” quer dizer paisagem calma, de beleza simples e que inspira paz interior, tranquilidade, sossego, tudo muito ao contrário da poluição visual e sonora dos tempos modernos.
Imagina você morando nesse arraial, cuja população nem bem chega ao número de dois mil habitantes. Ele tem seu nome, “Mercês de Água Limpa”, e até apelido, “Capelinha”.
Você se chama Lindolfo Cunha, está com quarenta e dois anos de idade, sua aparência é magra e sua pele é bronzeada, em razão da constante exposição ao sol. Seus cabelos compridos estão encobertos por um largo chapéu de palha; seu rosto é envolto por espessa barba - já um pouco grisalha.
Você é casado com Jovelina, conhecida pelo apelido de Fiinha, e tem quatro filhos, três mocinhas e um menino de seis anos, a rapa do tacho.
Durante a semana, você levanta bem cedinho, antes mesmo do galinho garnisé cantar lá no galinheiro. Enquanto toma seu café e come um pedaço de broa de fubá, Fiinha ajeita sua marmita sobre um fogão à lenha.  Logo, logo, você vai para as lidas no campo, ora cortando capim para alimentar o gado da fazenda do senhor Dirceu, ora fazendo capina em terreno de plantação de milho e feijão. Na época da cata de café, Fiinha também vai pra roça, levando como companhia suas duas filhas mais velhas. Todo o serviço é feito para o senhor Dirceu, ele que emprega a maioria das pessoas de Capelinha. O pagamento geralmente é feito através de vales, descontados no armazém do Bené, genro de Dirceu.
De tarde, quando volta do trabalho, você, Lindolfo, depois da janta e de um cafezinho, tem o costume de se pôr de cócoras em frente de casa. Então, corta um fumo de rolo e uma palha com seu canivete “Corneta”; com cuidado, você enrola bem o cigarro e o acende, usando um isqueiro à base de querosene.
Enquanto, calmamente, solta suas tragadas, ouve Fiinha lavando as vasilhas na cozinha; seus filhos estão brincando ali mesmo na rua, jogando “maré”. O sol se põe, a lua já se encaminha para o meio do céu, quando o sino da igrejinha toca seis badaladas, em lembrança da “Ave Maria”. É quando você retira o chapéu em respeito e faz o sinal da cruz. Depois, sabendo que é preciso descansar o corpo dolorido pelo trabalho, fala pros filhos:
            - Vamos intrá, pois já tá na hora de drumi.
Nos fins de semana, aos domingos de tardezinha, você, sua mulher e filhos se arrumam, colocando “roupas de ver Deus”. Você põe um paletó cinza, junto com uma calça de mesmo tom e uma camisa branca; sua esposa se veste de azul-marinho e seus filhos estão todos de branco. Depois, caminham em direção à igreja, para a missa semanal, Jovelina a seu lado, os filhos à frente. Você caminha com dificuldade, pois a botina nova, comprada no armazém do Bené, está apertando um calo de seu pé esquerdo. Os sinos repicam com alegria, um alto-falante na torre da igreja reproduz músicas religiosas. A semana chega ao fim, com as bênçãos de Deus, nosso Senhor.
É esta a “paisagem bucólica” que fica retida na minha mente, e que veio por conta de uma fala do Loló. Não sei por que, ao fim da lembrança, lágrimas teimam em deslizar pelo meu rosto. Com essa ventania de outono, um cisco deve ter entrado no meu olho. Vou pedir pra Fiinha assoprar, pra ver se o danadinho sai.

Etelvaldo Vieira de Melo


Nota: A imagem que ilustra o texto é da região do “Rosário”, em Santo Antônio do Amparo, MG, nos tempos de antigamente. Do outro lado desta avenida - comprida e preguiçosa - fica o Lava-Pés, onde nasci e passei a infância. Santo Antônio e Capelinha são próximas, tanto que andei misturando tudo, o presente e o passado, sentimentos e imaginação. Como haveria de dizer o próprio Drummond, o tempo só deixa retratos na parede e lembranças, suaves, melancólicas, doloridas.

1 comentários:

aloisio disse...

Tio
Obrigado pela homenagem, me senti muito honrado, bela cronica retrata exatamente o que mencionei , continue usando esta fertil imaginação, que nos vamos aqui viajando em suas belas historias
abração Aloisio(lolo)

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