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“Um homem vai devagar / Um cachorro vai devagar / Um burro vai devagar / Devagar... as janelas olham” (Carlos Drummond de Andrade).
Para
Aloísio, o Loló.
Existem
palavras e expressões que, querendo dizer algo, acabam passando outra ideia. Um
exemplo é “paisagem bucólica”, que me acorreu quando um sobrinho, o Loló, falou
da apresentação de seu coral de homens num vilarejo perdido nos sertões de
Minas.
Quando
você ouve ou fala “paisagem bucólica”, instintivamente abre a boca num bocejo?
Pois é, parece que tal expressão quer falar de uma paisagem monótona e que
chama o sono. No entanto, originalmente, “paisagem bucólica” quer dizer
paisagem calma, de beleza simples e que inspira paz interior, tranquilidade,
sossego, tudo muito ao contrário da poluição visual e sonora dos tempos
modernos.
Imagina
você morando nesse arraial, cuja população nem bem chega ao número de dois mil
habitantes. Ele tem seu nome, “Mercês de Água Limpa”, e até apelido,
“Capelinha”.
Você
se chama Lindolfo Cunha, está com quarenta e dois anos de idade, sua aparência
é magra e sua pele é bronzeada, em razão da constante exposição ao sol. Seus
cabelos compridos estão encobertos por um largo chapéu de palha; seu rosto é
envolto por espessa barba - já um pouco grisalha.
Você
é casado com Jovelina, conhecida pelo apelido de Fiinha, e tem quatro filhos, três
mocinhas e um menino de seis anos, a rapa do tacho.
Durante
a semana, você levanta bem cedinho, antes mesmo do galinho garnisé cantar lá no
galinheiro. Enquanto toma seu café e come um pedaço de broa de fubá, Fiinha
ajeita sua marmita sobre um fogão à lenha.
Logo, logo, você vai para as lidas no campo, ora cortando capim para
alimentar o gado da fazenda do senhor Dirceu, ora fazendo capina em terreno de
plantação de milho e feijão. Na época da cata de café, Fiinha também vai pra
roça, levando como companhia suas duas filhas mais velhas. Todo o serviço é
feito para o senhor Dirceu, ele que emprega a maioria das pessoas de Capelinha.
O pagamento geralmente é feito através de vales, descontados no armazém do
Bené, genro de Dirceu.
De
tarde, quando volta do trabalho, você, Lindolfo, depois da janta e de um cafezinho,
tem o costume de se pôr de cócoras em frente de casa. Então, corta um fumo de
rolo e uma palha com seu canivete “Corneta”; com cuidado, você enrola bem o
cigarro e o acende, usando um isqueiro à base de querosene.
Enquanto,
calmamente, solta suas tragadas, ouve Fiinha lavando as vasilhas na cozinha;
seus filhos estão brincando ali mesmo na rua, jogando “maré”. O sol se põe, a
lua já se encaminha para o meio do céu, quando o sino da igrejinha toca seis
badaladas, em lembrança da “Ave Maria”. É quando você retira o chapéu em
respeito e faz o sinal da cruz. Depois, sabendo que é preciso descansar o corpo
dolorido pelo trabalho, fala pros filhos:
- Vamos intrá, pois já tá na hora de
drumi.
Nos
fins de semana, aos domingos de tardezinha, você, sua mulher e filhos se
arrumam, colocando “roupas de ver Deus”. Você põe um paletó cinza, junto com
uma calça de mesmo tom e uma camisa branca; sua esposa se veste de azul-marinho
e seus filhos estão todos de branco. Depois, caminham em direção à igreja, para
a missa semanal, Jovelina a seu lado, os filhos à frente. Você caminha com
dificuldade, pois a botina nova, comprada no armazém do Bené, está apertando um
calo de seu pé esquerdo. Os sinos repicam com alegria, um alto-falante na torre
da igreja reproduz músicas religiosas. A semana chega ao fim, com as bênçãos de
Deus, nosso Senhor.
É
esta a “paisagem bucólica” que fica retida na minha mente, e que veio por conta
de uma fala do Loló. Não sei por que, ao fim da lembrança, lágrimas teimam em deslizar
pelo meu rosto. Com essa ventania de outono, um cisco deve ter entrado no meu
olho. Vou pedir pra Fiinha assoprar, pra ver se o danadinho sai.
Etelvaldo
Vieira de Melo
Nota:
A imagem que ilustra o texto é da região do “Rosário”, em Santo Antônio do
Amparo, MG, nos tempos de antigamente. Do outro lado desta avenida - comprida e preguiçosa - fica o Lava-Pés, onde nasci e passei a infância. Santo Antônio e Capelinha são próximas,
tanto que andei misturando tudo, o presente e o passado, sentimentos e
imaginação. Como haveria de dizer o próprio Drummond, o tempo só deixa retratos na parede e lembranças, suaves, melancólicas, doloridas.
1 comentários:
Tio
Obrigado pela homenagem, me senti muito honrado, bela cronica retrata exatamente o que mencionei , continue usando esta fertil imaginação, que nos vamos aqui viajando em suas belas historias
abração Aloisio(lolo)
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