LIÇÕES DE ESPERTEZA

Imagem: eduardotx2.blogspot.com
                  
P
or causa de sua crendice e boa fé, está se tornando cada vez mais difícil para Ingenaldo sobreviver no mundo de hoje. Apesar de seu esforço físico, ele não dá conta de driblar tantas decepções: ao final de cada dia está ele coberto de arranhões e hematomas.
Fridolino Xexeo, seu amigo, encontrando-o certo dia com o braço direito enfaixado e com o olho esquerdo todo roxo e inchado, tentou aplicar-lhe uma vacina através de palavras de alerta. Disse Fridolino:
Você conhece aquela piada do sujeito esperto? Tendo encontrado uma moeda no piso de uma igreja, em frente a uma imagem de São Benedito, fez esta proposta ao santo: “Seu santo, mais honesto que isto não é possível. O senhor mesmo está vendo: acabo de achar uma moeda. Vou jogá-la para o alto. Quando cair, se der ‘cara’, ela será minha; se der ‘coroa’, também. A moeda fica para o senhor, se cair em pé.”
Assim ele fez, jogando-a para cima. Assim que caiu no piso, ela foi rolando, rolando, até ficar em pé, junto à imagem do santo.
Quando viu aquilo, o sujeito falou, indignado: ”Roubar não vale. O senhor segurou com o pé. A moeda é minha!”
Veja, meu caro amigo, como hoje vale a esperteza, como as pessoas não têm mais escrúpulos em furar os olhos dos outros. Por esses dias, foi um técnico lá em casa fazer um reparo no aquecedor solar. Tinha ele uma conversa mansa e humilde, o que me deixou um pouco aliviado. Pensei: “taí um cara que não vai me meter a mão com um preço absurdo”. Ele calculou que gastaria dois dias de serviço, com a mão de obra custando seiscentos reais. Apesar de meu salário não chegar aos pés de sua proposta, considerei que era razoável, e que era o meu salário que não prestava. Acontece que o sujeitinho de fala mansa gastou trinta minutos, quando muito, para terminar todo o serviço. Como o almoço estava pronto, ele não se fez de rogado ao convite, comeu um prato, de comida, que, se não atingiu o cume do Pico da Neblina, ultrapassou o da Serra da Piedade. Piedade que ele não teve na hora do acerto de conta: foram seiscentos reais, sem tirar nem pôr. Depois, ele explicou que havia levado sua caminhonete para fazer uma retífica de motor. O conserto girou em torno de oitocentos reais. Concluindo a conversa, que já me dava voltas no estômago, ele disse: “A vida é assim: um toma lá, dá cá”.
Ingenaldo, você está entendendo minhas palavras, ou estou falando para as paredes?
Ingenaldo olhou por sobre as lentes dos óculos azuis, fazendo um gesto de “sim” com a cabeça.
Quando se despediram, foi ele para o ponto de lotação (Ingenaldo é parente do Eleutério). Ali, uma menina de 9 a 10 anos de idade, que estava de uniforme escolar e carregava nas costas uma mochila, lhe perguntou:
            - Você não viu por acaso uma nota de R$10,00 aí no chão?
Ingenaldo achou estranho aquele tipo de pergunta. A menina insistiu em dar detalhes sobre o sumiço da nota.
            - Eu ia passar na farmácia comprar um xampu para minha mãe. Quando fui ver, o dinheiro havia sumido.
Ingenaldo ficou condoído com o sofrimento da menina, mas estava também impregnado das palavras de Xexeo. Falou:
            - Se eu tivesse dinheiro comigo (na verdade, ele tinha, mas pouco), eu poderia ajudá-la. Fala pra sua mãe, explica pra ela...
            - Eu coloquei o dinheiro aqui no bolso de trás – a menina mostrou o bolso, que apresentava um rasgão.
            - Pois é, deve ser por aí que o dinheiro sumiu.
            - Minha mãe vai me colocar de castigo – e uma lágrima rolou pelo rosto da garota.
Nesta hora, Ingenaldo exorcizou de vez as palavras de Xexeo. Pensou: não vou deixar de ser uma pessoa crédula, não posso abandonar meu sentimento de humanidade.
Assim pensando, retirou uma nota de 10 e deu para a menina.
            - Obrigada – falou ela.
Ingenaldo ficou sabendo que havia plantado uma sementinha de bondade no coração de uma criança. Quem sabe, pensou ele, essa semente não irá florescer e ajudar a colorir o mundo?

Etelvaldo Vieira de Melo

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