DISSECAÇÃO A PARTIR DE “CIFRAS E CONSTELAÇÕES EM AMOR COM UMA MULHER”, DE JOAN MIRÓ


Antes de qualquer coisa, devo dizer que não fujo de minhas responsabilidades, assumo integralmente a autoria de meus atos, não tenho medo de cair no ridículo, não me escondo por detrás de nomes falsos ou pseudônimos, nem faço delação premiada (só faço gratuita).
Assim sendo, quero dizer que meu nome é Nestor da Zefinha, conhecido como Nestor do Tamborim – isto mesmo: aquele que “anda na corda bamba e que na escola de samba toca cuíca, toca surdo e tamborim” – também autor e protagonista do relato a seguir.
Hoje tive que sair da cama mais cedo que o normal – que é, em geral, tarde. Por isso, posso dizer que meus olhos se abriram de vez quando já estava na cozinha e, automaticamente, por reflexo condicionado, abria a parte de vidro da porta. Por isso, posso dizer com certeza, sem medo de estar cometendo um erro, que foi o cão lá de casa o primeiro ser vivo que vi.
Temos o costume lá em casa, e não sei se tal costume é costume em outras casas, de conversar com nosso cão. Tive esta rápida conversa com Teteo:
- Uuummm... – falei, tentando me aproximar da linguagem canina. O resmungo quis dizer: - Olá, Teteo, bom dia! Passou bem a noite?
- Uuummm... – respondeu Teteo, esforçando-se ao máximo para uma comunicação mais próxima.
Geralmente, os cães fazem comunicação visual. É o que acontece com Teteo, que dificilmente se comunica por latidos.
- Tudo bem, e você? – falou com os olhos, enquanto abanava o rabo (sintoma de que estava feliz em me ver).
- Dormi bem, só acordando umas duas ou três vezes, assustado com meu próprio ronco – falei, recorrendo da mesma forma à comunicação visual.
- Você precisa cuidar disso. Se, até aqui de minha casinha, sua ronqueira incomoda, imagina o que devem sentir sua esposa e filha.
- Nem te conto, Teteo; tem vez que meus braços e costas ficam roxos de hematomas, tantos os cutucões que levo à noite – falei um tanto quanto magoado. – Teve dia em que até pensei em ir a um posto policial registrar um BO.
- Pois cuida de resolver esse embrulho – falou o cachorro, olhando para meus olhos com olhar intenso. – Procure um otorrinolaringologista.
Surpreendi-me com a fluidez com que ele pronunciou tal palavrão.
- É o que vou fazer esta semana. Já fiz a audiometria, a videoendoscopia nasossinusal e a videofaringolaringoscopia.
Enquanto tentava desenrolar minha língua, Teteo perguntou:
- Tem os resultados parciais?
- A audiometria acusou uma leve perda auditiva, coisa que eu já sabia por exames anteriores. Teve um otorrino que, ao se informar de minha idade, comentou: “Por seus quilômetros rodados, você quer o quê? Conforme-se: está bom demais do jeito que está”. Conformar até que me conformo; o problema é as pessoas no meu entorno aceitarem isso. Estou pensando seriamente em andar com uma placa com os dizeres: “Por favor, tenha paciência comigo. Sou portador de uma leve perda auditiva”.
- Eu é que estou numa boa – falou Teteo, com os olhos dando risadas. – Além de escutar muito bem, converso com as pessoas usando de comunicação visual. Além disso, por causa desse “olhos nos olhos”, liberamos oxitocina, o chamado hormônio do amor. É por isso que cães e humanos se amam cada vez mais. Por que você não faz o mesmo?
- Taí, gostei de sua sugestão. Meu temor é de que as pessoas não entendam assim. Imagina o que pode acontecer: “- O que foi, ficou lerdo de vez?”; “- Por que está me encarando? Não gosto de homem, não. Sai pra lá!”; “- O que você está querendo com esse olhar pidão?”. Sei lá, definitivamente, não dá pra seguir seu conselho. Os riscos de ser mal interpretado são muitos.
Minha conversa com Teteo foi interrompida bruscamente. Isso acontece nas vezes em que não consigo manter os olhos nos olhos e acabo desviando os meus, ou dou uma piscadela. Nesses momentos de perda de sincronia, o olhar de Teteo fica perguntando: “O que você está querendo? Fiz alguma coisa errada? Em que posso lhe ajudar?”.
Por essa e por outras, o cão é o primeiro na lista dos melhores amigos do homem.
Agora, para você que duvida disso, que julga ser eu uma pessoa exagerada, que tem parafusos a menos no cérebro por dar tanto valor à espécie canina, faço uma simples pergunta: Quando você se dignou ter uma conversa tão afetuosa assim comigo?
         Etelvaldo Vieira de Melo 

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