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Mensagens
edificantes pululam nas redes sociais, tais como pipoca em frigideira. Elas
aparecem acompanhadas de imagens e, muitas vezes, sob forma de alegorias ou
parábolas.
Hoje mesmo recebi uma dessas
mensagens. Como muitas, estava carregada de certo exagero ou despropósito. Elas
parecem bem-intencionadas, tão somente preocupadas em passar boas lições de
moral. Entretanto, como é preciso considerar que “de boas intenções o inferno
anda cheio”, e que também é bom um exercício de racionalidade, comecei a
decodificar aquilo que estava lendo. Apresento a releitura a seguir; antes,
transcrevo o texto tal como chegou às minhas mãos, ou melhor: aos meus olhos.
Um rato, olhando pelo
buraco da parede, vê o fazendeiro e sua esposa abrindo um pacote.
Pensou logo no tipo de comida que haveria ali.
Ao descobrir que era ratoeira, ficou aterrorizado.
Correu ao pátio da fazenda advertindo a todos:
- Há ratoeira na casa, ratoeira na casa!!
A galinha:
- Desculpe-me, Sr. Rato, eu entendo que isso seja um grande
problema para o senhor, mas não me prejudica em nada, não me incomoda.
O rato foi até o porco.
- Há ratoeira na casa, ratoeira!
- Desculpe-me, Sr. Rato, mas não há nada que eu possa fazer,
a não ser orar. Fique tranquilo que o Sr. será lembrado em minhas orações.
O rato dirigiu-se à vaca e:
- Há ratoeira na casa.
- O quê? Ratoeira? Por acaso, estou em perigo? Acho que não!
Então o rato voltou para casa abatido, para encarar a
ratoeira.
Naquela noite, ouviu-se um barulho, como o da ratoeira
pegando sua vítima. A mulher do fazendeiro correu para ver o que havia pego. No
escuro, ela não percebeu que a ratoeira havia pego a cauda de uma cobra
venenosa. E a cobra picou a mulher...
O fazendeiro a levou imediatamente ao hospital. Ela voltou
com febre.
Todo mundo sabe que para alimentar alguém com febre, nada
melhor que uma canja de galinha. O fazendeiro pegou um cutelo e foi
providenciar o ingrediente principal.
Como a doença da mulher continuava, os amigos e vizinhos
vieram visitá-la.
Para alimentá-los, o fazendeiro matou o porco.
A mulher não melhorou e acabou morrendo.
Muita gente veio para o funeral. O fazendeiro então
sacrificou a vaca, para alimentar todo aquele povo.
Uma
moral da história é apresentada no final do relato, dizendo que “Na
próxima vez que você ouvir dizer que alguém está diante de um problema e
acreditar que o problema não lhe diz respeito, lembre que há uma ratoeira na
casa, toda fazenda corre risco. O problema de um irmão é problema de todos!”.
Sabe
onde estou querendo chegar?
Não
sou contra essas mensagens edificantes e que tentam encher de bons propósitos
nossas ações. Só acho que elas se parecem com esses xaropes para tosse, uma
xaropada: 98,7% deles não resolvem absolutamente nada! Além de mascararem um
problema, sem dar-lhe solução adequada.
Veja
você que, nesta alegoria da ratoeira, muitos problemas são mascarados:
-
Não existe e não tem como existir solidariedade no mundo animal (o rato, por
exemplo, rouba alimento do porco e da galinha).
-
Com muita esperteza, o autor do texto não faz referência ao gato, inimigo
natural do rato.
-
De maneira estranha, o rato não vai alertar outros ratos sobre o perigo que
paira sobre suas cabeças.
-
Qual a preocupação que uma ratoeira pode provocar numa vaca, numa galinha ou
num porco? Ora, de fato, uma ratoeira é uma ameaça... para ratos – daí o seu
nome: ratoeira (eventualmente, pode ser uma ameaça para cobras). Não faz
sentido o rato tentar sensibilizar outras espécies animais de um perigo que
rondava sua cabeça.
-
Do ponto de vista racional, humano, é bem sensata a atitude do fazendeiro em
comprar uma ratoeira. Afinal, ninguém quer conviver com ratos, a não ser que
seja indiano e frequentador do Templo Kasni Mata, ou Templo dos Ratos, onde
esses roedores são cultuados como encarnações de parentes e outros humanos. Um
rato pode fazer estrago em alimentos e ocasionar doenças, todos sabem.
-
Assim como o rato deveria ter, prioritariamente, recorrido aos de sua espécie,
dizendo: “- Devemos nos prevenir e nos organizar diante desta ameaça da
ratoeira!”, de modo análogo, assim deve acontecer com os humanos: quando em
dificuldade, um pobre deve se unir, primeiro, com outro pobre, pois
dificilmente poderá contar coma ajuda, por exemplo, de um banqueiro. Quem
chamou minha atenção para esse detalhe foi uma senadora da República. Falando
sobre a casa do Senado, ela disse: “Pobre não entra nesta casa para fazer
lobby. Aqui não vem aposentado que ganha um salário mínimo, aqui não vem
pessoal que precisa da saúde do SUS; aqui vem o pessoal da FEBRABAN (os
banqueiros) falar com os senadores, aqui vem o pessoal da FIESP”.
O
que quero dizer sobre esta história da ratoeira é que ela está construída sobre
premissas falsas. Não há como tirar uma conclusão positiva sobre seus
antecedentes.
Entretanto,
com um pouco de exercício mental, é sempre possível salvar alguma coisa disso
tudo.
Por
exemplo, podemos fazer algumas perguntas:
-
Quem é que o fazendeiro representa?
-
E sua esposa, que acaba sendo mordida pela cobra?
-
Que cobra é essa, pega pelo rabo? Uma surucucu? Uma jararaca?
(Alerta:
Perguntas assim poderão levá-lo a querer procurar “chifre em cabeça de cavalo”.
Cuidado!)
Você
pode alegar que os humanos não devem ser comparados aos ratos, às galinhas, aos
porcos e às vacas; você pode dizer que temos uma dignidade de seres mais
evoluídos, racionais. Por um lado, concordo com você; por outro, vejo que a
situação pros lados dos humanos pode ser pior do que a que observamos entre
outras espécies animais.
Estou extrapolando ao dizer isso?
Que seja, mas o que quero é chamar a atenção para esse jogo de faz de conta da
comunicação hoje, onde a verdade fica escondida atrás de enganações. Vivemos um
momento particularmente difícil, com as palavras precisando ser pontuadas com
pingos nos “is”.
Não sou contra a fantasia, os
devaneios. Entretanto, acho que o país em que vivemos já anda entupido das
fantasias das novelas, do carnaval e do futebol. É preciso que tomemos chá de
realidade; para isso, precisamos ter os olhos abertos e a consciência atenta.
Caso contrário, vem um rato e nos passa uma rasteira, quando não nos coloca
numa ratoeira.
Etelvaldo
Vieira de Melo
2 comentários:
Caro Etelvaldo,
você continua o mesmo de nossos dias de juventude: pensante instigante.
J.D. Vital
Belo comentário ao texto A Ratoeira! Trabalhei este texto com os meus alunos. Devo acrescentar agora os seus comentários. Marcos G Soares.
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