POR QUE O SENHOR JOÃO "FICOU ENCANTADO"?



Lembrando 19/11/1967, quando João “ficou encantado”.

A gente tem que ter tenência com o proseado do João, mastigando as falas bem devagarinho, de forma que não acaba que nem aquele que come peixe e fica com o espinho entalado na goela.
        


Numa papelada de tamanho frouxo sobre Guimarães Rosa, o professor – que era suspeitosamente também um escritor – foi costurando o texto, colocando uma palavra atrás da outra, como cambão e cangas de carro de bois, tudo numa certa ordem e seguimento, com as pontuações convenientes e acertadas, de modo a que o leitor, desacostumado dos acontecimentos que sucederam realmente ou deixaram de ser, fosse empurrado para a desduvidosa conclusão de que Guimarães havia sido derrubado por um enfarte, três dias depois de sua posse na tal da Academia Brasileira de Letras, tudo por conta de um esgotamento nervoso e que as pessoas de saber mais comprido chamam de estresse, o qual vinha se arrastando, rastejando como uma cobra surucucu, por quatro anos. Se você pega quatro anos e reparte em pedaços de dias, horas, minutos e segundos, vai ver que é tempo pra danar, inda mais com o coitado sendo exprimido pelo tal do estresse. Vai daí que aquela sofridão, que começa lá pelos pés, vai subindo, subindo, até chegar no coração. Aí, ela, a tal de sofridão, dá um aperto de acabar, como uma laçada de derrubar boi. Pois, veja você se estou explicando direitinho o acontecimento, tudo nas conformidades do que escreveu o professor, pois, se tem uma coisa que me deixa injuriado é ser chamado de mentiroso e falastrão. Ora, vai que alguém lhe promete um presente, um agrado, uma bezerrinha que seja. Promete, mas fica enrolando, empurrando com a barriga, deixando pra depois. A bezerra cresce, vira vaca, fica prenhe um tanto de vez; quando vai olhar, já não tem mais serventia. Foi o que acho que andaram fazendo com esse tal de Guimarães Rosa. Falaram assim e assado: o senhor ganhou o prêmio, está eleito pra Academia, mas espera um pouco até a gente preparar a festança; enquanto isso, vai o senhor se ajeitando, manda fazer o uniforme, que nas nossas reuniões a gente vem de farda, já que tudo é muito solene como numa missa de bispo numa igreja. O Guimarães mandou o alfaiate tirar as medidas e costurar esse tal de fardão, que fico imaginando ser do tipo desses uniformes de milicos. A farda ficou pronta e acabada, mas neca de quetibiriba da tal posse acontecer. Foi por aí que o João pensou: “viver é um rasgar-se e remendar-se”. Ele ficou com cara de tacho, de vez em quando experimentando a vestimenta, olhando prum espelho do guarda-roupa do seu quarto de dormir, “ampliando o ilusório, mediante nova capa de ilusão”. O espelho. Naquele experimento, foi tomando gosto, se achando bem aprumado naquele terno. Na maioria do tempo, no entretanto, o fardão ficava mesmo disposto num cabide do guarda-roupa, com um tanto de naftalina, usada de jeito a espantar as traças. Enquanto isso, a sofreguidão, o desconforto e o destempero iam subindo, subindo. E o João pensava: “afinal, há é que ter paciência, dar tempo ao tempo. Já devíamos ter aprendido, e de uma vez para sempre, que o destino tem de fazer muitos rodeios para chegar a qualquer parte”. Até que chegou o dia da dita posse, depois de tanto tempo. Na hora do festório, lá estava o Joãozito todo orgulhoso e com seu fardão engomado. No entretanto, ele estava, como não podia deixar de ser, cheio de emoção, chegando a falar uma coisa que, na hora, pareceu meio sem pés nem cabeça: “a gente morre pra provar que esteve vivo”. E foi, então, três dias em seguida, que aquela angústia represada estourou, e o coração de João parou, ele morreu, passou desta, “ficou encantado” – segundo alguém me disse que era seu jeito de falar. Onde tô querendo chegar? Agora, na hora da onça beber água, eu quero dizer que acho um absurdo sem tamanho o que aqueles velhinhos da Academia aprontaram com o João. Eles sabem de saber e de sentir na própria carne que não dá pra brincar, fazer hora, engabelar uma pessoa de mais idade. Lá pras minhas bandas, que fica pra lá das veredas do sertão, todo mundo sabe que tem quatro coisa que “mata véio”: emoção, tropicão, pneumonia e caganeira. Se por lá, onde a ignorância campeia feito o burrinho Sete-de-Ouros ou a mulinha Beija-Fulô soltos no pasto, isso é mais que sabido, imagino que mais deveriam saber os doutores cheios de letras, que nem parece que sabem usar de “fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana”. Se eu fosse parente desse senhor, ia até um cartório de justiça e registrava uma baita queixa. Porque está claro como a luz de um meio-dia de sol esturricando que o senhor João “ficou encantado” porque um bando de velhos não deixou ele usar de modo conveniente e demorado o uniforme que havia preparado com tanto carinho. Agora, pensando de outro jeito, remexendo meu pensamento, buscando outra ideia, acho também que pode ser que o acontecido não assucedeu da maneira que eu falei. Vai que o professor, por implicância, por birra com os outros escritores, tenha usado de “informação torta”, tenha escrito aquela papelada de tamanho frouxo pra me colocar contra essa tal de Academia. Como ele sabe que sou um camarada que não leva desaforo pra casa, que sou de dar uma boiada pra entrar numa briga, como ele sabe ou pensa que sabe que não sou de medir a compridão das palavras, pode ser que ele esteja me fazendo de boi de piranha, enquanto ri folgado, tomando sua bebidinha à base de limão e pitando seu cigarrinho de paia. Sei não, esse Guimarães Rosa anda remexendo com meus miolos. Já nem sei pra onde apontar minha cartucheira de cano serrado. Vai que, por desatenção, eu acabo dando um tiro no dedão do meu pé. Depois, eu tô vendo que estou igualim ao que ele mesmo disse: “eu quase não sei de nada, mas desconfio de muita coisa”. Melhor mesmo é deixar todo este dito por não dito. Ou não? O João mesmo dizia: “tudo é real, porque tudo é inventado”.
Etelvaldo Vieira de Melo

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