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“A Vida É Bela”
é um belo filme, até cansar a beleza do telespectador, por causa do linguajar
sem freio do personagem principal da trama. Ele fala feito locutor de corrida
de cavalo, chegando a dar calo nos ouvidos da gente.
Estou me lembrando disso, do filme antigo e
do calo nos ouvidos, logo após consultar um antigo otorrinolaringologista.
Confesso que havia colocado essa categoria
profissional no meu Index Librorum Prohibitorum, e seus representantes no rol
das “personae non gratae” (acabo de rapar o tacho de minha pseudoerudição).
Esse velho médico me fez rever a velha tendência que tenho de fazer
generalizações apressadas. Tenho que colocar de vez na minha cachola esse
princípio de que “se todo pardal é passarinho, nem todo passarinho é pardal”.
Em resumo, preciso me convencer de que ainda existem pessoas honestas e bons
profissionais neste mundo, vasto mundo, eu que não me chamo Raimundo, que não
corro atrás de uma rima e nem de uma solução.
Se Ló não achou sequer um justo nas cidades
de Sodoma e Gomorra foi porque não pesquisou bem, fez igual esses institutos de
pesquisa aqui no Brasil (você já foi entrevistado por algum deles?). Bem feito
pra ele, pro Ló, pois, como castigo por sua desatenção (ou foi prêmio?), viu
sua mulher convertida em estátua de sal.
Esse antigo otorrino é muito brincalhão. Foi
ele que andou gozando a minha cara, fazendo elogio pra calça que eu vestia
(disse que ela era chique, deveras); foi ele também que apresentou a teoria
inusitada de que um casal, para viver em harmonia, deve ficar bem distante um
do outro, quanto mais distante, melhor.
Na consulta de hoje, ele me passou outras
preciosidades. Sua grande lição foi a de que devemos nos adequar às
contingências da vida e do tempo. Isso significa viver com sabedoria, não nos
submetendo às opiniões alheias, mas prezando nosso valor e nossas conquistas.
Pode parecer uma assertiva banal, mas as pessoas fazem tudo ao contrário disso:
elas não se aceitam e preferem ser submissas às opiniões alheias. Ele me disse:
“Você não tem que fazer nada do que os outros pensam, a não ser que seja,
primeiro, um pensamento ou desejo seu”.
Em resumo, encontrei na figura desse médico
muito de sentimento de humanidade. Eu disse isso pra ele, que ele é uma figura
cada vez mais rara em um mundo pontilhado de individualismo, cada vez mais
cheio de ódio, de rancor.
Depois da consulta, fui para casa com o
sentimento de paz com meus semelhantes. Para coroar esse renovado sentimento de
crença no ser humano, quando fui pegar o ônibus-lotação, vi que ele se achava
cheio. Atravessei a roleta, para não transparecer a ideia de que sou um “pé na
cova”, indo me acomodar num vão em frente ao trocador (ou “comissário de bordo”
– jargão também empregado pelos trocadores de aviões). Nem bem me ajeitei com
minhas sacolas (quase nunca deixo de estar com uma à mão, sendo, por isso,
conhecido no bairro como o “Zé da Sacola”), uma moça quase sai no tapa com um
rapaz sentado à minha frente. Ela falou, raivosa:
- Você não vê que tem que ceder o assento
para este senhor?
O pobre coitado ficou todo sem graça e quis
se levantar. Educadamente, recusei a oferta, sob a velha alegação de que estou
em fase de crescimento.
O que lamento é ter perdido a moça de vista.
Queria ter me aproximado dela para agradecer seu gesto de humanidade, ela que,
juntamente com o otorrino, vem mostrar que o mundo ainda não é uma Sodoma e
Gomorra, que o brasileiro ainda carrega um pouco de sentimento de solidariedade
dentro do coração, que essa onda de ódio e ofensa que tomou conta do país é só
uma nuvem passageira.
Etelvaldo Vieira de Melo
1 comentários:
Passageira? Deus queira!...
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