UMA INJEÇÃO DE OTIMISMO

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Imagem: todos desenhos80.blogspot.com
“A Vida É Bela” é um belo filme, até cansar a beleza do telespectador, por causa do linguajar sem freio do personagem principal da trama. Ele fala feito locutor de corrida de cavalo, chegando a dar calo nos ouvidos da gente.
    Estou me lembrando disso, do filme antigo e do calo nos ouvidos, logo após consultar um antigo otorrinolaringologista.
    Confesso que havia colocado essa categoria profissional no meu Index Librorum Prohibitorum, e seus representantes no rol das “personae non gratae” (acabo de rapar o tacho de minha pseudoerudição). Esse velho médico me fez rever a velha tendência que tenho de fazer generalizações apressadas. Tenho que colocar de vez na minha cachola esse princípio de que “se todo pardal é passarinho, nem todo passarinho é pardal”. Em resumo, preciso me convencer de que ainda existem pessoas honestas e bons profissionais neste mundo, vasto mundo, eu que não me chamo Raimundo, que não corro atrás de uma rima e nem de uma solução.
    Se Ló não achou sequer um justo nas cidades de Sodoma e Gomorra foi porque não pesquisou bem, fez igual esses institutos de pesquisa aqui no Brasil (você já foi entrevistado por algum deles?). Bem feito pra ele, pro Ló, pois, como castigo por sua desatenção (ou foi prêmio?), viu sua mulher convertida em estátua de sal.
    
Imagem relacionadaO médico otorrino que consultei tem nome de origem espanhola e sobrenome árabe. Quem estudou História, o que não é meu caso – por causa do trauma que tive com meu professor cego – sabe que, durante a era medieval, a Península Ibérica foi frequentemente invadida por levas árabes, de otomanos, tártaros, mongóis. Daí, o nome mesclado do doutor. Fisicamente, ele se parece um pouco com Mr. Magoo, aquele personagem de desenho animado; outro pouco faz lembrar Yoda, de Star Wars.
    Esse antigo otorrino é muito brincalhão. Foi ele que andou gozando a minha cara, fazendo elogio pra calça que eu vestia (disse que ela era chique, deveras); foi ele também que apresentou a teoria inusitada de que um casal, para viver em harmonia, deve ficar bem distante um do outro, quanto mais distante, melhor.
    Na consulta de hoje, ele me passou outras preciosidades. Sua grande lição foi a de que devemos nos adequar às contingências da vida e do tempo. Isso significa viver com sabedoria, não nos submetendo às opiniões alheias, mas prezando nosso valor e nossas conquistas. Pode parecer uma assertiva banal, mas as pessoas fazem tudo ao contrário disso: elas não se aceitam e preferem ser submissas às opiniões alheias. Ele me disse: “Você não tem que fazer nada do que os outros pensam, a não ser que seja, primeiro, um pensamento ou desejo seu”.
    Em resumo, encontrei na figura desse médico muito de sentimento de humanidade. Eu disse isso pra ele, que ele é uma figura cada vez mais rara em um mundo pontilhado de individualismo, cada vez mais cheio de ódio, de rancor.
    Depois da consulta, fui para casa com o sentimento de paz com meus semelhantes. Para coroar esse renovado sentimento de crença no ser humano, quando fui pegar o ônibus-lotação, vi que ele se achava cheio. Atravessei a roleta, para não transparecer a ideia de que sou um “pé na cova”, indo me acomodar num vão em frente ao trocador (ou “comissário de bordo” – jargão também empregado pelos trocadores de aviões). Nem bem me ajeitei com minhas sacolas (quase nunca deixo de estar com uma à mão, sendo, por isso, conhecido no bairro como o “Zé da Sacola”), uma moça quase sai no tapa com um rapaz sentado à minha frente. Ela falou, raivosa:
    - Você não vê que tem que ceder o assento para este senhor?
    O pobre coitado ficou todo sem graça e quis se levantar. Educadamente, recusei a oferta, sob a velha alegação de que estou em fase de crescimento.
    O que lamento é ter perdido a moça de vista. Queria ter me aproximado dela para agradecer seu gesto de humanidade, ela que, juntamente com o otorrino, vem mostrar que o mundo ainda não é uma Sodoma e Gomorra, que o brasileiro ainda carrega um pouco de sentimento de solidariedade dentro do coração, que essa onda de ódio e ofensa que tomou conta do país é só uma nuvem passageira.
Etelvaldo Vieira de Melo

1 comentários:

Fátima Fonseca disse...

Passageira? Deus queira!...

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