COMENDO MORTADELA E ARROTANDO CAVIAR

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Eleutério acalentou durante muito tempo a pretensão de encontrar o sentido verdadeiro da vida. Ele pensava: - Viver só tem sentido se soubermos o sentido da própria vida.
Correu nosso amigo durante anos atrás desse sentido, até que, ao cruzar o “Cabo das Tormentas”, isto é, ao chegar à “Melhor Idade”, acabou desistindo, passando a se contentar com uma explicaçãozinha aqui, outra ali. Como sempre achou que os ditados populares reúnem um rico acervo da própria natureza humana, passou a estudá-los e a decodificá-los para que não venham perder sentido ao longo do tempo. Isso porque muitos deles são ininteligíveis depois de determinados momentos da História.
Por exemplo, há um ditado que diz: “De grão em grão a galinha enche o papo”, querendo mostrar que é a soma de pequenas realizações que nos torna seres completos. Ora, muita gente nem sabe mais o significado do termo “galinha”, e aqueles que o sabem não sabem que as galinhas se alimentavam de milho, pois pensam que elas só se alimentam de ração, confinadas nas granjas. (Este exemplo me ocorreu no momento em que um caminhão passou em frente de casa, com o alto-falante esbravejando: “Olha o ovo! Olha o ovo direto da granja, fresquinho! Venha, minha senhora, comprar. Trinta ovos por dez reais! Só dez reais!”)
De maneira similar, está se tornando difícil entender o significado de outro ditado, que diz: “Comer mortadela e arrotar caviar”. Seu sentido quer dizer: existem pessoas que ostentam aquilo que não são. A dificuldade com o termo “mortadela” se deve ao fato de que ele passou a ser usado para designar um tipo de pessoa, em oposição a outro, chamado de “coxinha”. Já a dificuldade de entender o significado de “caviar” se deve ao fato de que ele raramente esteve presente no cardápio da maioria dos brasileiros, sendo agora enterrado de vez pelo tal do ovo.
Então, dentro desse sentido de ostentação, de aparentar o que não é, vamos ilustrar esse ditado da mortadela e do caviar.
Eleutério, tendo que resolver umas pendências de seu cartão de crédito, ligou para a agência bancária, onde mantém uma conta modesta, porém sincera.
Depois de interagir com um robô (uma “roboa”), tendo teclado uma série de dígitos, acabou sendo atendido por um fulano, que se disse gerente, de nome Carlos.
- Minha senhora – ele falou. – Em que posso ajudá-la?
Eleutério quis confirmar o endereço da agência, já que dificilmente ia até lá.
- O endereço é esse... – e Carlos detalhou a rua e o número. Depois completou: - Mais alguma coisa, senhora?
Eleutério não aguentou mais, dizendo:
- Não é senhora, mas S-E-N-H-O-R.
O gerente, constrangido, tentou remendar a desfeita:
- O telefone está com ruído, dando microfonia. Peço desculpas.
- Não tem de quê – falou Eleutério. – Deixe pra lá.
- A propósito, senhor –falou Carlos, enfatizando o “senhor”, - não tem por acaso carro o senhor?
- Tenho, sim – mentiu Eleutério.
- Pois é, estamos com uma promoção de seguro, com desconto para clientes. Não se interessa, senhor?
- Bom, acontece que o seguro só vence ano que vem – desferiu Eleutério, completando a mentira.
- Então, ano que vem vamos ver isso, senhor.
Eleutério ficou assustado com sua própria desfaçatez. No passado, quando tentava falar uma mentirinha, ficava vermelho feito pimentão maduro e acabava se engasgando. Hoje, não, a mentira flui tranquila e, se preciso, até decorada feito bolo de aniversário.
Eleutério não tem carro. Aliás, nunca dirigiu um, nem mesmo tem carteira de motorista. Vocês sabem muito bem que ele é frequentador contumaz de ônibus. Agora mesmo ele está indo até a Estação Rodoviária renovar a validade de seu cartão “Ótimo”. Depois, ele vai até a agência bancária onde mantém sua modesta conta. Como não é nenhum cliente Van Gogh, poderá ser atendido por qualquer gerente. Mas, se for o Carlos, irá mostrar a ele como é S-E-N-H-O-R e macho, muito macho, além de arrotar muito caviar. Pensando bem, irá também dizer:
- Olha, senhor gerente, estou seriamente pensando em entrar com uma ação de reparo por danos morais, uma vez que o senhor me destratou, chamando de senhora. Para que tal não aconteça, que tal um agradozinho, reduzindo a taxa de anuidade de meu cartão de crédito?
Se fosse rico e famoso, estava na hora de Eleutério brigar por uma indenização polpuda, mas, como já sabem, ele é um pobre com espírito de pobre, um pobre coitado, enfim.
Etelvaldo Vieira de Melo

1 comentários:

Geraldo Uzac disse...

Ótimo texto.

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