Estava Eleutério sentado no banco da guarita de ônibus perto de sua casa. Precisava ir até a cidade dar conta de algumas pendências domésticas, a serem solucionadas lá no Mercado Central. Estava ele só, até que apareceu um vizinho, o Zezé da Margarida. Eleutério ficou feliz, pois sua língua estava coçando e, como se sabe, quando a língua de uma pessoa da “melhor idade” começa a coçar, é sinal de que ele precisa, com urgência, “jogar conversa fora”, pois, caso contrário, pode entrar em estágio de depressão. Começaram a conversar.
- Estou indo até ali embaixo. Vou pegar o ônibus, pois não estou em
condições de andar – falou o Zezé.
- Mas o que aconteceu?
- Sei lá, deve ser um nervo torcido. De repente, desce aquela dor pela
perna, ardendo pra encardir.
- Precisa tomar cuidado pro nervo não torcer ainda mais, dando um nó –
brincou Eleutério.
- Pois é, se der nó cego, aí vai danar de vez – completou Zezé. E
acrescentou: - Depois de uma certa idade, a gente tem que se conformar com uma
dorzinha aqui, outra ali.
- Que nada! Essa dor que você sente é porque seu motor é novo e está
amaciando. Daqui a pouco, estará rodando que é uma beleza.
Nesse interim, passa um ônibus, que não para, apesar de terem dado
sinal.
- Será porque o “motô” viu que a gente é da “melhor idade”? – quis
saber Eleutério.
- Não, aquele ônibus estava vindo da “vistoria”. Eu vi escrito no
painel.
- Ainda bem. Se depender de certos “motôs”, a gente fica sem viajar.
- É, parece que eles se esquecem que um dia vão chegar lá. Se é que vão
chegar – falou Zezé, rindo com ironia.
Ficaram em silêncio por um tempo. Depois de terem tomado fôlego, Zezé
falou:
- Está vindo chuva por aí.
- Como você sabe?
- Ouvi no rádio.
- Esse serviço de meteorologia mais erra do que acerta – falou Eleutério,
satisfeito por não ter se engasgado com a palavra escabrosa.
- É mesmo. Desse jeito, até eu posso trabalhar lá.
- Antigamente, as pessoas sabiam da chuva quando o calo do pé começava
a doer.
- É mesmo.
- Acho que o Serviço de Meteorologia deveria contratar pessoas com
calos – Eleutério repetiu com orgulho a palavra danada.
Enquanto isso, apareceu um ônibus que servia para o Zezé.
- Eu vou neste – ele falou. – Boa viagem pra você.
- Pra você também. Obrigado. Até mais.
Daí a pouco apareceu o ônibus do Eleutério. Assim que o pegou, foi
procurar o assento preferencial, aquele de cor amarela. Nos bancos de trás,
estavam duas senhoras, que logo começaram a conversar, atendendo também elas ao
imperativo de ter de conversar fiado, jogar conversa fora. Uma tinha a voz
firme, assertiva; a outra tinha a voz tremeliquenta, quase apagando.
A assertiva direcionou a conversa para o tema religião. A do tremelique
pareceu não ter gostado, pois custou a se manifestar. Só o fez quando viu que a
assertiva queria doutriná-la. Disse:
- Eu sou católica e muito bem resolvida.
A crente detalhou seu processo de conversão, falou que ela se deu num
momento particularmente difícil de sua vida. Agora, estava empenhada em
divulgar a campanha dos cinco minutos de oração em favor do Brasil.
Eleutério, com a barriga cheia da conversa jogada fora, preferia dar um
cochilo a ouvir aquele blábláblá, especialmente a partir do momento em que seu
ouvido artificial direito começou a dar pane, requerendo nova bateria. Assim,
ficou sem ouvir direito a conversa e sem poder se entregar totalmente aos
braços de Morfeu. Antes, não havia gostado nem um pouco daquela campanha dos
cinco minutos de oração em favor do Brasil. Pensou ele: - Agora que a vaca está
indo pro brejo com chifre e tudo, estão querendo consertar? Por que seus pastores
não pedem perdão por terem induzido os fiéis a votarem naquele mico?
Chegando ao centro da cidade, ao descer do ônibus, Eleutério trocou um
olhar de cumplicidade com a tremeliquenta de voz quase sumindo. Através de um
sorriso discreto, deu-lhe os parabéns pelo destemor e pela firmeza com que
lutou em defesa de sua fé.
Etelvaldo Vieira de Melo
1 comentários:
Bom dia para todos nós. Gostei.
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