COMENTÁRIO CINEMATOGRÁFICO

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Faz tempos, li O Quarto de Jack, da dramaturga Emma Donoghue. Ontem, assisti ao filme homônimo, sob direção do irlandês Lenny Abrahamson. Confesso ao leitor: achei a obra escritural adocicada e muito extensa. Súbito, porém, a vejo transformada numa epopeia que conduz Brie Larson (MA/Joe) à conquista do Oscar de melhor atriz. Gentil, a boa estrela concede ao menino Jacob Trambley (Jack), nove anos, o laurel da glória.
A película trata do sequestro e prisão de Joe num recinto fechado, acondicionado para se viver. Após cinco anos, sucede a história do filho, sugando-lhe ainda um dos seios, enquanto espalha longa cabeleira no leito. Após várias experiências com a claraboia, os parcos móveis, a televisão, planejam fugir (e fogem) do Velho Nick raptor. A seguir, apresentam-se em traveling inúmeros problemas de adaptação mútua ao neouniverso.                                                             
A simbologia dos elementos cárcere, martírio, fuga, parece clara. Segundo a Psicologia, o homem permanece fechado dentro de si até iniciar-se o trajeto de libertação. Prefere continuar no estado homeostático do útero (Quarto com dispositivos), embora já se tenha produzido a hiância, ou seja, o corte do cordão umbilical (cinco anos nas tetas da Ma).
Segundo Platão, o indivíduo jamais se resigna com o desconforto pós-parto. Almejará sempre isto depois aquilo, a fim de se compensar da frustração de nunca jamais habitar entre quentes águas e farto alimento intrauterino. A inútil ansiedade por completa satisfação o levará além da janela dos olhos (claraboia ilusória/autêntica do Quarto). O que possui de bem ou bens revela-se insuficiente à absoluta felicidade. Então, conforme cena do infantoprotagonista diante da porta, fugirá, descodificando a saída/entrada local. Memórias do tempo decorrido em isolamento acompanharão esse par, quer na excursão vindoura, quer no volver ao lar antigo.                                              
Uma vez resgatados da escapula pelos agentes policiais, Joe e Jack enfrentarão dificuldades exteriores ao presídio: hábitos, costumes, pressões mentais. A mídia lhes invadirá o corpus histórico, mais o corpo físico. Familiares chegarão próximos ou ofendidos pela ausência e distanciamento domiciliares. Eis o caminho de penas até o (im)possível ninho de libertação. Consoante Heráclito, ninguém mergulha duas vezes no mesmo rio da mesma forma. Ambos, mãe e filho, aqui e acolá, serão dessemelhantes em idênticas situações.
Ao rever o Quarto, aparentemente curados, Jack e Ma saúdam as cascas de ovos, o espelho, a pia, a mesa. Como? Em outra dimensão. Nietzsche sabe: Deus ali está morto. Em seu lugar, resta o eterno retorno ao fim dos princípios. Joe se comprometeu, atual, com o neon da real fantasia. Jack desligou-se da mama espumosa; da certeza de completar tudo, trancafiado: à pergunta da vovó, responde que o Quarto era bom. Podia ir dele do começo ao fim.
Kafka dispõe o personagem d’O Processo no portal da cela. Argus guardião propõe-lhe escape. Foi-se a sentença! Porém, o senhor K. titubeia ante o livre-arbítrio. Prefere recuar para o catre imundo e morrer sozinho porque ...
Por quê? O artista Juarez Machado parece responder à incógnita. Depois da porta aberta, existem mil portas fechadas/reabertas. Algumas barrocas, outras clássicas; umas, íngremes despenhadeiros, outras escaláveis calvários por mar ou terra. Encantador, esse tomo chamado Saída.
Na fita, Jack vai Jack vem das comportas Cultura versus Natureza: a mãe, esta; a Capital, aquela. Joe/Ma, por sua vez, tenta suicídio, visando a não soçobrar sob o abismal vazio. Vovô biológico evita encarar o garoto; vô substituto mostra-lhe a ternura do relacionamento consigo e junto ao cão de amorável focinho. Vovó ensina aos dois preceitos éticos; neto e filha reagem-lhe ao discurso e ao meio hostil.
Simone de Beauvoir considera a morte de Zazá, por amor ao filósofo Merleau-Ponty, estopim da própria independência e rebeldia. Seu desengano familiar, acrescentado ao da melhor amiga, fazem-na construir os alicerces da moderna literatura de opressão feminina. A partir do exemplo contestador de Elizabeth Mabille (Le Coen), colega no Cour Désir, alforria-se do domínio patriarcal. Daí em frente, amasia-se com Sartre em regime de moradias separadas. Desanda a escrever e passear à noite pelos cabarés franceses. Perfila-se, incontinenti, contra a droga da obediência.
Passados o suplício do encarceramento, a culpabilidade da progenitora que a tornou ‘boazinha’, a ponto de sucumbir às mentiras de Nick sobre o animal doente (apesar daquela, durante o episódio de autoextermínio, anunciar: ‘Eu estou aqui, Joe’); ultimados os obstáculos existenciais passados e presentes, Ma regressa às origens do Quarto, despede-se, e vem/indo para... onde?
The End. De acordo com Beauvoir, a jovem forra, emancipada do que foi/será, leva pela mão leve seu pequenino fruto, capaz de acompanhá-la ao (não) lugar do perenal desejo.
                                                                  Graça Rios

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