CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE UM... BOSTA

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Imagem: olhardigital.com.br
O texto a seguir é desaconselhável para pessoas com problemas com o SNI.
Calma! Estou me referindo a um distúrbio neurológico chamado Síndrome de Narina Irritável. Tal distúrbio acomete aquelas pessoas cujas glândulas olfativas são demasiado sensíveis: ao contato com um mau cheiro qualquer, logo provocam espirros ou urticárias espalhadas pelo corpo.
O antídoto para tal síndrome pode ser o uso de uma máscara, daquela vendida em lojas de R$1,99. Se você tem problema com SNI, coloque uma máscara, antes de avançar na leitura. Eu espero.
(Intervalo para colocação de máscaras)
Este texto é feito com base em reportagem do jornalista Fausto Macedo em seu blog, transcrita por Brasil 247, em 12/01/2020. A manchete dizia:
“Juiz diz que ‘bosta’ pode ser elogio e absolve
homem que xingou guarda municipal”
Tal declaração foi feita em sentença proferida pelo juiz Caio Márcio de Brito, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da cidade de Dourados, Mato Grosso do Sul.
O fato se deu quando o denunciado resistiu ao ser autuado por irregularidade na condução de uma moto, chamando os guardas municipais de “bosta”. O homem alegou ter ficado “nervoso” com a apreensão do veículo.
O juiz, na sua declaração, alega não existirem provas aptas a condenar o acusado pelo delito de resistência, conforme declarações dos próprios policiais.
Sobre a acusação de desacato, por chamar os agentes públicos de “bosta”, o juiz considerou que acatar tal denúncia seria dar “muita relevância para tão pouca coisa”.
No desfecho da sentença, sua meritíssima arrematou: “Ser chamado de ‘bosta’ pode ser até um elogio, porque ‘bosta’ pode ser vista como fertilizante, algo positivo; pode ser vista como um avião (quando se diz: será que essa ‘bosta’ vai voar?); também pode ser usada como forma coloquial, ao se dizer, por exemplo, que a vida está uma ‘bosta’”.
Embora seja uma situação engraçada, as inferências que podem ser feitas daí não me parecem tão divertidas assim.
Em primeiro lugar, chamou minha atenção o fato do juiz não ter mencionado a única vez em que o termo ‘bosta’ pode ter uma conotação positiva, assim mesmo, quando é usado seu sinônimo, ‘merda’. Acontece no mundo teatral, antes da apresentação de uma peça, os atores se cumprimentarem, dizendo: “- Merda pra você”, ou seja, “boa sorte pra você”.
Parece que o juiz é mais chegado ao mundo rural, pois associa o termo ‘bosta’ com ‘fertilizante’. Podemos dizer que tal analogia é correta se considerarmos que faz referência às fezes de bois e de vacas, mas não de gente. Quando o denunciado fala pros guardas “vocês são uns ‘bostas’”, fica claro que estava se referindo a bostas humanas, e não de bois. Está o juiz, nesse caso, fazendo uma ilação incorreta.
Quando diz que chamar os agentes públicos de ‘bosta’ seria dar “muita relevância para pouca coisa” está sua excelência incorrendo em erro de avaliação ou demonstrando preconceito. Comete erro de avaliação porque bosta humana, mesmo quando pouca, é sempre inconveniente e desagradável. Preconceito porque, implicitamente, parece concordar com a tese de que os guardas municipais valem pouco, são uns ‘bostas’.
Se fosse o juiz sendo chamado de ‘bosta’, tal fala ficaria do mesmo tamanho? Certamente que não, pois, na sua visão, chamar um juiz de ‘bosta’ é uma grande ofensa. A ele e a alguns outros é dado o direito de recorrer à Justiça por desacato, com direito a pedido de prisão e multa por danos morais.
Ao dar sua sentença, está sua excelência concordando com o denunciado, chamando também ele os guardas de ‘bostas’, seres irrelevantes.
Pensa que estou carregando em demasia as palavras? Pois é justamente aí que está o perigo: as palavras são perigosas, por detrás de aparentes inocência e brincadeira, podem esconder maldade e preconceito.
Ao proferir sua sentença, não está sua excelência, por exemplo, dando o direito de outra pessoa chamar alguém de ‘macaco’? Pois está, sim, e esse alguém pode alegar em sua defesa que, quando chama o outro de ‘macaco’, não está fazendo uma depreciação, mas um elogio, numa referência aos ancestrais do homem.
Não é por aí? Seguindo esse diapasão, daqui a pouco, declarações homofóbicas, racistas, misóginas e aporofóbicas serão traduzidas como manifestações de amor, simpatia e amizade. Quando diz que ‘bosta’ não é ‘bosta’, está sua meritíssima dando sinal verde para todo tipo de agressão, verbal e física, com os menos favorecidos da sociedade, aqueles que são tidos como ‘bostas’ e ‘bostinhas’. Palavras singelas, mesmo em boca de juiz, não passam de camuflagens para toda ordem de preconceito e racismo.  Compactuar com essa ordem de coisas é concordar com a ideia de que ainda vivemos numa sociedade de castas, onde os menos favorecidos são uns “bostas”, não valem nada.
Etelvaldo Vieira de Melo

FEITOS UM PARA O OUTRO

Ivani Cunha

RIR-SE FRENTE AO ESPELHO



O título acima é inspirado no livro que Eleutério recebeu de presente de Dom Marcos Noronha, antigo bispo de Itabira, contando as lembranças de seu tempo de seminário.
De repente, não mais do que de repente, tal livro sumiu do campo de visão de Eleutério, levando-o à suposição de que tenha sido surrupiado. Coincidentemente, tal fato se deu logo após a visita de um ex-amigo, Maurindo Compassado.
Eleutério refletiu:
- Se foi por ter cometido tal pecado que fez Maurindo cortar relações comigo, seria bom que reconsiderasse. Afinal, eu mesmo fiz isso outras vezes quando, indo até sua casa e fingindo me perder entre as estantes de sua vasta biblioteca, afanava um ou outro livro de meu agrado. O que vale dizer: chumbo trocado não dói (ou não deveria doer).
O nome Eleutério é de certa solenidade: significa libertador, indicando uma pessoa que preza sobretudo a independência – a sua e a dos outros. Já sua aparência física é bem comum: estatura mediana (baixa, para os padrões modernos), calvo e com uma barriga bem saliente, devido ao alto consumo de carboidrato. Interagindo com as outras pessoas, aparenta calma e ponderação, o que também pode ser visto como lerdeza, retardo mental. Enfim, ele é o tipo do ser humano genérico, facilmente confundido com outras pessoas.
Como exemplo, ele já foi confundido com gente famosa: Steven Spielberg foi uma delas. Em visita ao Museu de Cera Madame Tussaudes, em Londres, e estando Eleutério de boné, teve que tirar várias fotos para outros turistas ao lado do diretor de ET. Pessoalmente, acha que tem uma certa semelhança com o ator William Hurt. (As fotos que ilustram o texto apontam também uma semelhança com Walter White, personagem da série Breaking Bad.)
Aconteceu por esses dias ter sido nosso personagem acometido por uma traiçoeira gripe, que o deixou prostrado e tossindo feito jumento (tal expressão é usada aqui na falta de outra mais adequada; se for ofensiva, que me desculpe esse mamífero perissodáctilo). Quando percebeu que “a vaca estava indo pro brejo", procurou um Pronto Atendimento, atendendo aos reclames de Percilina Predillecta.
A médica que o atendeu foi muito prestativa, cumulando-o de atenção e pedidos de exames: radiografia, sangue, medicação intravenosa e vaporização. Como complementos, receitou um antibiótico, um spray nasal, um antialérgico e um corticoide (com a leitura desses textos, você pode não ter um enriquecimento literário, mas certamente ficará a par de receitas para muitas doenças).
Tudo isso aconteceu num sábado, quase véspera de Natal. No domingo, estando mais disposto, pediu para Percilina cortar-lhe o cabelo. Queria experimentar um aparador de pelos 4 X 1, que havia adquirido também na Black Fraude (junto com a Alexa), naquela filosofia de se proporcionar momentos felizes.
O danado do aparelho, além de danado de bom, também era danado de perigoso. Naquele tira daqui e dali, trocando uma lâmina por outra, acabou fazendo um “caminho de rato” inconsertável na já combalida cabeleira de Eleutério. Ao fim, Percilina teve que passar a máquina “zero”, para nivelar tudo.
Depois, ela foi buscar um espelho, para Eleutério admirar sua obra de arte. Quando se viu com a cabeça toda pelada, ele começou a rir, ao ponto de verter lágrimas. Percilina ficou sem graça, sem saber se a situação era comédia ou drama. Eleutério a tranquilizou, dizendo:
- Meu único medo é você deixar de me amar.
- Quanto a isso, pode ficar tranquilo. Você sabe, meu amor por você independe de tanta coisa! – ela falou, dando um suspiro.
Ao fim do relato, é preciso dizer que Eleutério acabou no lucro, apesar do dissabor. É sabido que Percilina, todo dia ao levantar, vai até a porta da cozinha e, através da grade, coça durante alguns minutos a cabeça de Thor, o cãozinho da casa. Pois agora está assim: enquanto que, com uma mão ela coça a cabeça de Thor, com a outra tem que coçar a cabeça de Eleutério. Quando acaba, estão os dois, o cão e Eleutério, rindo com a mais pura satisfação. Como diz o ditado: há males que vêm para o bem. Ainda bem.
Etelvaldo Vieira de Melo

COM POESIA...

Um cartum-poema. Prenda a respiração antes de conferir.

Ivani Cunha

CARDÍACA OU ESCRAVA

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A poesia é um poço sem fundo? Então.
Escrevo desenhando um cão um intento ou
o portão lá e cá
no vento.
Poesia feminina nunca teve recompensa
Nem convicção? Ah, não.
Versejo desejo na tangência do tempo.
Vou indo vindo
Caindo na enxurrada dos beijos processos excessos
fílmicos. Dei pra filmar o mar.
Fiz-me cinéfila? Poi Zé
arremedo de baixo preço.
Poesia é poço sem fundo?
Allah, meu bom Allah!
Já estou pulando carnaval pra lá de Bagdá.
Sou muito completude, certeza, definição?
Isso é o Cão.
Escrevo à flor do nervo,
seu Omar,
Pra me sublimar, aguentar o tranco.
Franga ou franca? Fraca. Tô fraca.
Graça Rios

A PROPÓSITO DE DUAS PALMADAS

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Imagem: hugogloss.uol.com.br
Na noite de Ano Novo, assistimos ao Papa se libertando com duas palmadas de uma mulher que o puxava, quando ele se afastava de uma multidão de peregrinos. No dia seguinte, declarou: “Nós perdemos a paciência muitas vezes. Isso também me acontece. Peço desculpas pelo mau exemplo dado ontem”. Tal fato ocorreu na Praça do Vaticano.
De minha parte, está aceita a desculpa, ainda mais que aquilo serviu de lição para algo que me incomoda.
É sabido que o Papa Francisco tem se constituído ao longo dos anos uma das poucas lideranças mundiais que levanta a voz em favor da Paz, da Concórdia, cuidando dos menos favorecidos, em críticas contundentes ao Capitalismo, que cada vez mais cria um abismo entre as pessoas. Não é à toa que, vez ou outra, leio notícias de que vem dos Estados Unidos um movimento de boicote e de confronto com as teses apregoadas pelo Papa. Sei que um dos mentores desse movimento se chama Steve Bannon, aquele mesmo que influenciou as eleições americanas e brasileiras, através de manipulação das redes do Facebook.
O que tem me incomodado nos últimos tempos é não saber definir qual a estratégia que devo seguir diante das agressões verbais, e até mesmo físicas, ocasionando até mortes, de pessoas que se dizem defensoras desse arremedo de governo que aí está.
Quando o Presidente que está aí se elegeu, num processo nebuloso (tanto é assim que, agora, o Ministério da Justiça e Segurança Pública está aplicando multa ao Facebook de R$6,6 milhões por conta do compartilhamento indevido de dados de brasileiros), eu disse que certamente ele faria um bom governo para muitos. Esperava que esses muitos fosse a maioria da população: os pobres, as minorias, os marginalizados. Tal não se deu. Depois de um ano, estamos vendo quem está satisfeito: os banqueiros, o mercado financeiro, os rentistas (também pudera: 45% do que o país arrecada vai para pagar os juros da dívida pública, enquanto a saúde e a educação ficam com míseros 8% - 4,5% para saúde e 3,3% para educação), as grandes empresas, o agronegócio, o capital estrangeiro. Aparentemente, também estão satisfeitos os puxa-sacos, aqueles que, mesmo não se beneficiando diretamente, contentam-se com as migalhas que lhes são jogadas sob a mesa. Sem contar os trogloditas fascistas, que saíram do armário com a eleição do capitão.
(Voltando ao que disse anteriormente: de R$100,00 que o governo arrecada, R$45,00 são destinados para pagar os chamados “serviços da dívida pública” – juros, especialmente, enquanto a Saúde fica com R$4,50 e a e a Educação com R$3,30. Como poderia dizer o Ministro da “Educassão”: - É “imprecionante”! Isso não é “descente”, merecia uma “suspenção”, uma “paralização”.)
Assim, desse modo, podemos dizer que o primeiro ano de governo que está aí foi bom pra muita gente. O vice-Presidente, por exemplo, disse que 2019 foi um ano maravilhoso, excelente; os militares, de modo geral, também devem estar satisfeitos com a reforma da Previdência, uma vez que não precisaram sacrificar nada, só tiveram lucro.
Quanto à dificuldade em lidar com aqueles que pensam diferente de mim, confesso que me senti reconfortado com o tapa do papa: ele mostrou que somos seres humanos, que não temos sangue de barata. Quando tenho que conviver no dia a dia com figuras misóginas, racistas, homofóbicas, aporofóbicas (que têm aversão aos pobres), entreguistas, muitas vezes não sei qual atitude tomar. O que sei é que anda me incomodando muito o que li de Thomas Carothers, cientista político, em entrevista à DW Brasil:
- Quando a política se torna um conjunto de identidades, as pessoas de um lado olham para o outro lado e deixam de dizer apenas “não concordo com você nisso”, mas dizem “eu sou diferente de você”. Isso rapidamente se transforma em “eu não gosto de você” e, logo depois, em “na verdade, eu te odeio”.
Ano Novo é tempo de renovação, de busca de novos caminhos. Não quero compactuar com a ideia de que o país esteja dividido em bolhas e que a linguagem entre as pessoas seja construída com base no ódio. As questões que coloco pra mim mesmo e deixo transcritas aqui no blog são: como construir pontes com pessoas tão diferentes? existe a possibilidade de diálogo? existe algo em comum que possa nos aproximar? como reagir aos ataques e às ofensas? como ser assertivo diante de situações que consideramos falsas e injustas?
São perguntas que incomodam. Ainda mais se levarmos em conta que muitas pessoas que hoje “odeio”, ontem caminhavam ao meu dado e eu tinha em conta de amigas.
Talvez a resposta para tudo isso esteja no comprometimento que devemos ter com a VERDADE, acima de tudo.  Junto com ele, devemos também ter o entendimento de que a Verdade só é possível quando fundada no Amor, conforme declarou o papa Bento XVI, na sua encíclica Caritas in Veritate, muito bem lembrada no filme “Dois Papas”: "A verdade pode ser vital, mas, sem amor, ela é insuportável”.
Etelvaldo Vieira de Melo

SUJEITO D+

Eis um cartum de formato diferente, por meio do qual destilo meu desagrado ante a enxurrada dos pronomes ele/ela e suas variações no plural na sequência dos respectivos nomes próprios a que se referem. Trata-se de verdadeira praga disseminada por radialistas, comentaristas ou apresentadores da TV e às pessoas em geral. Nas conversas do dia a dia essa praga também está presente. Isso não lhe incomoda, calejado leitor? Enfim, aí está o meu cartum, com a previsão de que poucos o levarão em conta.
Ivani Cunha

OFÍCIO DE NOTAS

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Imagem: GGN
Eu, Leolinda Figueiredo Daltro,
fundadora do Partido Republicano Feminino,
revogo neste documento
feminicídios  filosofismos
movimentos teatrais pró ou contra a mulher.
Oh, anos de prisões mentais & corpus epistêmicos,
contestando-nos  a origem humana.
Há que empolar-se o masculino verbo,
ao tratar em Congresso da feminina efeméride?
Postulantes da matéria, esses vigilantes
somam séculos de uso da linguagem
patriarcal. Suas esposas rendem de cetim
a mancomunação com abusos em seus
corpos insignificados.
Reivindico, pois, em nome das meninas,
jovens, anciãs, neste dia 23 de dezembro de 1910,
Bahia,
direito de voz a toda e qualquer brasileira
quando, por trás da iniquidade,
falarem bem mal de nós outras.
Graça Rios

ANO NOVO DE MINEIRO

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Le Monde Diplomatique Brasil

Todos já foram, só você ficou pra trás. Trabalhou até sexta pegou um buzão às 19:30 para Guarapari, rodoviária lotada, ainda bem que comprou a passagem pela internet, conferiu se o cartão de crédito da compra estava em cima, resolveu seu problema de check-in e foi lá comer um pastelzinho frito até a chegada do ônibus. Desceu as escadas carregando malas, com roupa que nem iria usar, mas vai que precisa, quando chegou na plataforma do ônibus que mais parecia um formigueiro, com gente tentando descobrir qual era seu bus, você finalmente o encontra, despacha a bagagem e entra no busão. Um calor infernal, pois só ligam o ar depois que dá a partida no bus, mas você fica quieto, afinal já venceu todas as batalhas, do aplicativo que demorou mais de 15 minutos pra chegar até você, após várias desistências, o check-in, agora era só relaxar, na medida do possível, com gente entrando, entulhando as bagagens de mão no bagageiro interno, pisando nos seus pés para passar pra cadeira da janela, você prefere corredor, tem as pernas grandes e pode esticá-las. Pega o livro, que você sempre leva consigo nas viagens, vai abanando pra se refrescar. Finalmente o ônibus arranca, liga o ar e lá vamos nós. O motorista, tal qual as aeromoças em voo, dá as instruções de segurança em caso de acidentes, mas mineiramente conclui -  se Deus quiser não vamos precisar de nada disto! Na viagem não dorme, só cochila e desce em todas as paradas, e come tudo que vê pela frente gastando uma grana em lanches e revistas, sempre pensa que vale a pena pra se distrair.
A saída de BH demora mais de duas horas, trânsito infernal, BR 262 lotada de veículos e bus até o funil da barreira da PRF. O que importa é que estamos a caminho do mar. Ao amanhecer você já estará sentindo a brisa do mar na companhia de amigos.
Depois de tortuosa e torturante viagem, com gente que vomita, criança que chora, gente que fala alto e solta pum, você chega ao seu destino. Encontrar um taxi não é tarefa fácil. Depois de quase meia hora consegue um táxi, dá o endereço, mas você não sabe direito, sua informação de rua e bairro deixa a desejar, finalmente eis que encontra a casa. Bate na porta, alguém acordado antes da hora, lhe abre, você vai abraçá-lo, ele urra de dor, passou o dia na praia sob o sol, afinal quer voltar bronzeado, as costas estão em carne viva. Com as mãos levantadas como num assalto, você pede desculpas, e quando a anfitriã vê a mala surpreende- se como quem pergunta – quantos dias esse cara vai passar aqui?
Passado o sufoco inicial, você senta-se à mesa do café da manhã e come pra valer, quando uma das tias acorda e lhe pede para comprar mais pão, você pergunta quanto e ela diz vinte. Ai você conclui que a casa está lotada. Sai preocupado, pois esqueceu de passar no caixa eletrônico, torcendo pra padaria aceitar cartão, de crédito, pois de débito só tinha uma ninharia, ia deixar para os gastos na praia, e volta com um enorme saco de pão e a fim de tomar um banho. A espera é difícil, banheiro com fila pra escovar dentes e quando chega a sua vez a água acaba e é aquele tumulto, vamos ligar pra onde, caminhão pipa?  Alguém diz que precisa ligar a bomba pra encher a caixa d’água e você desiste de tomar banho – vou me banhar no mar!
Pergunta onde é seu quarto e lhe dizem: é aqui no sofá da sala. – PQP! - olha pra cima e vê um ventilador velho barulhento que balança todo enquanto gira e você pensa como vai ser dormir ali – e se essas hélices se soltam e me cortam a cabeça? Mas relaxa troca de roupa na sala mesmo, fazendo cortininha com a toalha e o resto da casa acorda. Parece arca de Noé, tem gente e bicho de todas as espécie e idades, aos burburinhos vão lhe apresentando a bicharada, você já sabe que não pode abraçar, estão todos ardendo, e procura se entrosar, pois quem te convidou é um amigo que ainda não se levantou e você fica ali com aquela cara de penetra até que o dito cujo se levanta e faz as apresentações – esse é meu brother, trabalha comigo, tava sem programa eu convidei, tudo bem? - Claro, o que não tem remédio, remediado está, fala a mãe entre os dentes com sorriso simpático.
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Finalmente o mar, aquele azul e imenso, mas só do meio para o fim, pois a praia estava apinhada de gente. Achar um lugar pra armar uma tenda que coubesse todo mundo mais o cooler e as comilanças foi tarefa hercúlea. A gente se ajeitou, quem não coube debaixo da tenda que se virasse com o sol na moleira e nas costas, agora ele entendeu. Entrar no mar era outro desafio, tinha que pedir licença pra dar um mergulho, ou como diz o mineiro – dar uma caída! E você lá, na cerveja, caipirinha, salgadinhos da praia – queijo coalho, espetinho de camarão, pamonha e peroá frito - afinal o ano estava acabando e você, pelo visto, queria se acabar junto com ele.
Fim do dia, a volta pra casa, fila pro banho e você como visita ficou por último, apesar de ter ficado fora da tenta e ter queimado feito um pimentão, esperou pacientemente a sua hora, torcendo pra água não acabar. Quando finalmente chega a sua vez o ajantarado já está sendo servido e você se preocupa se vai sobrar pra ti. A macarronada era farta e lhe sobrou. Banhado e jantado, depois de 12 horas de viagem, cerveja e praia você quer dar aquela descansada, mas sua cama - o sofá – está ocupado com as pessoas vendo novelas na TV. Você vai pra varanda, arranja um lugar no chão e se refestela por ali mesmo colocando suas costas quentes no frio ladrilho e dorme e ronca sendo acordado várias vezes, pois estava atrapalhando a novela.
Acorda depois de algumas horas de sono sentindo um revolver na barriga e sua cabeça girar feito roda gigante desatinada, seu corpo se levanta num sobressalto pois algo lhe vem à garganta e você corre para o banheiro e põe pra fora tudo que ingeriu gulosamente na praia e na viagem identificando cada um à medida que os expelia em jatos pela boca. Quando terminou este jorro e você pensou que era só isso, outro jorro se avizinhou, agora para baixo, seu intestino botou pra fora tudo que conseguiu nele chegar. Envergonhado, com o banheiro cheirando a esgoto, você sai pedindo desculpas e se dispondo a limpar. Todos te olham estranho, embora lhe perguntem se está tudo bem.
A noite envelhece e finalmente você pode dormir no sofá que lhe era devido com aquele ventilador assassino, mas não tinha escolha, ou isso ou calor. Mas você não conseguiu dormir, passou a noite de carreirinha sala/banheiro. Ao amanhecer, abatido e vomitando bílis, lhe recomendam que procure um atendimento médico. Lá chegando foi atendido com brevidade, devido ao seu estado pois foi constatado uma séria infecção intestinal. Colocado no soro lá passou os últimos dias daquele ano, na virada fez tim-tim com as enfermeiras e médicos do posto de saúde brindando com soro. Seu amigo foi vê-lo algumas vezes, mas você foi agraciado com a famosa salmonela, por pouco não vai dessa pra melhor.
No dia 1º foi liberado, passou em casa, pegou sua mala e foi pra rodoviária em viagem de volta feliz por ter sobrevivido a tudo aquilo. Mas depois disto se alguém lhe convidar pra uma passar a virada do ano na praia corre o risco de ganhar de volta um bom palavrão. Réveillon só no conforto do lar.
Neusa Lima

CONJUNTURA

Ivani Cunha

A MENINA QUE CARREGAVA ÁGUA NA PENEIRA

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Imagem: poetizandoimagem.webnode.com
O ano passado fez-se a menina minha irmã
estampada de verde na fotografia Canon Prima Zoom 60.
Sapatinhos brancos, vestidos rendados, áureos cabelos,
            feneceu ainda renitente sob o espanto das sete primaveras.
            Poderia a pequena flor depezinha na cadeira à minha frente
  livrar-se da morte e dos poderosos vermes?
Enfrentaria sem temor a súbita doença nos tecidos gerais cerebrais?
Afastaria com bolsos vazios o alto preço dos remédios?
Quimeras!

  Adeus ano 2019,
     criança sumariamente (en)cober  t     a
  pelo terroso manto atemporal.
Graça Rios