CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE UM... BOSTA

Resultado de imagem para fotos de fezes humanas
Imagem: olhardigital.com.br
O texto a seguir é desaconselhável para pessoas com problemas com o SNI.
Calma! Estou me referindo a um distúrbio neurológico chamado Síndrome de Narina Irritável. Tal distúrbio acomete aquelas pessoas cujas glândulas olfativas são demasiado sensíveis: ao contato com um mau cheiro qualquer, logo provocam espirros ou urticárias espalhadas pelo corpo.
O antídoto para tal síndrome pode ser o uso de uma máscara, daquela vendida em lojas de R$1,99. Se você tem problema com SNI, coloque uma máscara, antes de avançar na leitura. Eu espero.
(Intervalo para colocação de máscaras)
Este texto é feito com base em reportagem do jornalista Fausto Macedo em seu blog, transcrita por Brasil 247, em 12/01/2020. A manchete dizia:
“Juiz diz que ‘bosta’ pode ser elogio e absolve
homem que xingou guarda municipal”
Tal declaração foi feita em sentença proferida pelo juiz Caio Márcio de Brito, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da cidade de Dourados, Mato Grosso do Sul.
O fato se deu quando o denunciado resistiu ao ser autuado por irregularidade na condução de uma moto, chamando os guardas municipais de “bosta”. O homem alegou ter ficado “nervoso” com a apreensão do veículo.
O juiz, na sua declaração, alega não existirem provas aptas a condenar o acusado pelo delito de resistência, conforme declarações dos próprios policiais.
Sobre a acusação de desacato, por chamar os agentes públicos de “bosta”, o juiz considerou que acatar tal denúncia seria dar “muita relevância para tão pouca coisa”.
No desfecho da sentença, sua meritíssima arrematou: “Ser chamado de ‘bosta’ pode ser até um elogio, porque ‘bosta’ pode ser vista como fertilizante, algo positivo; pode ser vista como um avião (quando se diz: será que essa ‘bosta’ vai voar?); também pode ser usada como forma coloquial, ao se dizer, por exemplo, que a vida está uma ‘bosta’”.
Embora seja uma situação engraçada, as inferências que podem ser feitas daí não me parecem tão divertidas assim.
Em primeiro lugar, chamou minha atenção o fato do juiz não ter mencionado a única vez em que o termo ‘bosta’ pode ter uma conotação positiva, assim mesmo, quando é usado seu sinônimo, ‘merda’. Acontece no mundo teatral, antes da apresentação de uma peça, os atores se cumprimentarem, dizendo: “- Merda pra você”, ou seja, “boa sorte pra você”.
Parece que o juiz é mais chegado ao mundo rural, pois associa o termo ‘bosta’ com ‘fertilizante’. Podemos dizer que tal analogia é correta se considerarmos que faz referência às fezes de bois e de vacas, mas não de gente. Quando o denunciado fala pros guardas “vocês são uns ‘bostas’”, fica claro que estava se referindo a bostas humanas, e não de bois. Está o juiz, nesse caso, fazendo uma ilação incorreta.
Quando diz que chamar os agentes públicos de ‘bosta’ seria dar “muita relevância para pouca coisa” está sua excelência incorrendo em erro de avaliação ou demonstrando preconceito. Comete erro de avaliação porque bosta humana, mesmo quando pouca, é sempre inconveniente e desagradável. Preconceito porque, implicitamente, parece concordar com a tese de que os guardas municipais valem pouco, são uns ‘bostas’.
Se fosse o juiz sendo chamado de ‘bosta’, tal fala ficaria do mesmo tamanho? Certamente que não, pois, na sua visão, chamar um juiz de ‘bosta’ é uma grande ofensa. A ele e a alguns outros é dado o direito de recorrer à Justiça por desacato, com direito a pedido de prisão e multa por danos morais.
Ao dar sua sentença, está sua excelência concordando com o denunciado, chamando também ele os guardas de ‘bostas’, seres irrelevantes.
Pensa que estou carregando em demasia as palavras? Pois é justamente aí que está o perigo: as palavras são perigosas, por detrás de aparentes inocência e brincadeira, podem esconder maldade e preconceito.
Ao proferir sua sentença, não está sua excelência, por exemplo, dando o direito de outra pessoa chamar alguém de ‘macaco’? Pois está, sim, e esse alguém pode alegar em sua defesa que, quando chama o outro de ‘macaco’, não está fazendo uma depreciação, mas um elogio, numa referência aos ancestrais do homem.
Não é por aí? Seguindo esse diapasão, daqui a pouco, declarações homofóbicas, racistas, misóginas e aporofóbicas serão traduzidas como manifestações de amor, simpatia e amizade. Quando diz que ‘bosta’ não é ‘bosta’, está sua meritíssima dando sinal verde para todo tipo de agressão, verbal e física, com os menos favorecidos da sociedade, aqueles que são tidos como ‘bostas’ e ‘bostinhas’. Palavras singelas, mesmo em boca de juiz, não passam de camuflagens para toda ordem de preconceito e racismo.  Compactuar com essa ordem de coisas é concordar com a ideia de que ainda vivemos numa sociedade de castas, onde os menos favorecidos são uns “bostas”, não valem nada.
Etelvaldo Vieira de Melo

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