AMIGO DE VERDADE



Hoje tive que sair da cama mais cedo que o normal – que é, em geral, tarde. Por isso, posso dizer que meus olhos se abriram de vez quando já estava na cozinha e, automaticamente, por reflexo condicionado, abria a parte de vidro da porta. Por isso, posso dizer com certeza, sem medo de estar cometendo um erro, que foi o cão lá de casa, Thor, o primeiro ser vivo que vi (tal qual aparece na foto).

Temos o costume lá em casa, e não sei se tal costume é costume em outras casas, de conversar com nosso cão. Tive esta rápida conversa com Thor:

- Uuummm... – falei, tentando me aproximar da linguagem canina. O resmungo quis dizer: - Olá, Thorzinho, bom dia! Passou bem a noite?

- Uuummm... – respondeu Thor, esforçando-se ao máximo para uma comunicação mais próxima.

Geralmente, os cães fazem comunicação visual. É o que acontece com Thor, que dificilmente se comunica por latidos (a não ser para as pessoas que chamam ao portão).

- Tudo bem, e você? – falou com os olhos, enquanto abanava freneticamente o rabo (sintoma de que estava feliz em me ver).

- Dormi bem, só acordando umas duas ou três vezes, assustado com meu próprio ronco – falei, recorrendo da mesma forma à comunicação visual.

- Você precisa cuidar disso. Se, até aqui de minha casinha, sua ronqueira incomoda, imagina o que devem sentir Percilina e Deusarina, coitadinhas.

(Para quem não sabe, Percilina Predillecta e Deusarina Rebelada são minhas esposa e filha).

- Nem te conto, Thorzinho; tem vez que meus braços e costas ficam roxos de hematomas, tantos os cutucões que levo à noite da Percilina – falei um tanto quanto magoado. – Teve dia em que até pensei em ir a um posto policial registrar um BO.

- Pois cuida de resolver esse embrulho – falou o cachorro, olhando para meus olhos com olhar intenso. – Procure um otorrinolaringologista.

Surpreendi-me com a fluidez com que ele pronunciou tal palavrão.

- É o que vou fazer esta semana. Já fiz a audiometria, a vídeo-endos-copia nasos-sinusal e a vídeo-faringo-laringos-copia.

Enquanto tentava desenrolar minha língua, Thor perguntou:

- Tem os resultados parciais?

- A audiometria acusou uma leve perda auditiva, coisa que eu já sabia por exames anteriores. Teve um otorrino que, ao se informar de minha idade, comentou: “Por seus quilômetros rodados, você quer o quê? Conforme-se: está bom demais do jeito que está”. Conformar até que me conformo; o problema é as pessoas no meu entorno aceitarem isso. Estou pensando seriamente em andar com uma placa com os dizeres: “POR FAVOR, TENHA PACIÊNCIA COMIGO. SOU PORTADOR DE UMA LEVE PERDA AUDITIVA”.

- Eu é que estou numa boa – falou Thor, rindo com os olhos. – Além de escutar muito bem, converso com as pessoas usando de comunicação visual. Além disso, por causa desse “olhos nos olhos”, liberamos oxitocina, o chamado hormônio do amor. É por isso que cães e humanos se amam cada vez mais. Por que você não faz o mesmo?

- Taí, gostei de sua sugestão. Meu temor é de que as pessoas não entendam assim. Imagina o que pode acontecer: “- O que foi, ficou lerdo de vez?”; “- Por que está me encarando? Não gosto de homem, não. Sai pra lá!”; “- O que você está querendo com esse olhar pidão?”. Sei lá, definitivamente, não dá pra seguir seu conselho. Os riscos de ser mal interpretado são muitos.

Minha conversa com Thor foi interrompida bruscamente. Isso acontece nas vezes em que não consigo manter os olhos nos olhos e acabo desviando os meus, ou dou uma piscadela. Nesses momentos de perda de sincronia, o olhar de Thor fica perguntando: “O que você está querendo? Fiz alguma coisa errada? Em que posso lhe ajudar?”.

Por essa e por outras, o cão é o primeiro na lista dos melhores amigos do homem.

Agora, para você que duvida disso, que julga ser eu uma pessoa exagerada, que tem parafusos a menos no cérebro por dar tanto valor à espécie canina, faço uma simples pergunta: - Quando você se dignou ter uma conversa tão afetuosa assim comigo?

Etelvaldo Vieira de Melo


SONATA DE OUTONO (1ª Parte)


CAPÍTULO I - DAS HOMENAGENS À PARTE 

Começo minha narrativa cheia de saudade. Minha atual distração são lembranças da vida. Procuro manter o equilíbrio, ante os chamados de Socorro Urgente do povo na luta com a Flor do Lácio. Sou uma vovó escritora, estudante de música, professora aposentada da Federal.

            Confinada no apê, penso vira e mexe nas vividas vívidas recordações.

 Toquei muito acordeon na juventude.

Meu irmão Jaime (J’aime Jaime), perdi. Era um virtuose das violas. Aos três, quatro anos, entrava com ele nos botequins onde se tocava bandolim, violino, flauta. Ele vivia de tanto rir, enquanto eu, quase neném, morria e ressuscitava de encantamento musical e artístico.

J. ria rios de lágrimas, me oferecendo uma colher de conhaque com mel.

‘É para ficar tonta quando eu tocar. Todo mundo neste bar se embriaga quando eu entro no quadradinho de Fá do cavaco ou canto o próprio Nelson Cavaquinho’.

Pelo amor de Deus, não me olhes assim

Vejo nos teus olhos humilhação

Já sei que não gostas mais de mim.’.

 Levava uma sova daquelas, todas as vezes em que fugia do serviço no Correio, junto comigo, as mamadeiras e as afinadas. Meu papai o trazia pelas orelhas do Clube do Som até nossa casa.

Depois, às 20 horas, Sebastião, que eu sempre chamo de manoTão, Jaimiko e eu entrávamos no Circo de Cavalinhos. Amarravam-me as pernocas de bebê no fundo da canoa, tangiam as grossas cordas de sisal, e íamos ouvir harpa, instrumento dos serafins.

PRELÚDIO PRÉ- REQUISITO PARA ESCRAVIDÃO

 - Uma garotinha de três anos pra lá e pra cá nas alturas? (vociferava mamãe). Tomem treze varadas. Jaime, com quinze ou vinte anos, saía chorando. Tão, altaneiro, escondia-se para abrir o bué. Em incerta feita, meu pai maestro também feneceu flor faleceu disse adeus, A Deus, e larguei o instrumento de vez. Mas a paixão e a busca do velocino de ouro, a técnica textual, obrigaram-me a procurar, argonauta, nova harmonia, melodia, arpejos, para abrandar o que em mim arde e perdura: a Literatura.

.............

            Hoje, na quarentena, toco sonatas e MPB no teclado eletrônico, instrumento bom para uma pessoa de 72 anos. Ouço música na folha do papel ou das samambaias. Gosto do Fagner, Renato Russo, Charles Aznavour, Edith Piaf. Também dos americanos Lady Gaga, Beyoncé, Michael Jackson, Ray Charles. Trabalho solitária, escrevo livros, poesito, hesito, desisto, insisto, escutando CD.

David, netinho de quatro anos, quando a guerra ininterrupta entre doença, vírus, partidos políticos, países ricaços, findar, subirá faceiro:

- Óila quem chegou! Tem bigadeilo? Manga? Linga de gato? Bicoto?

Colocará na cama em forma de casinha a mochila ‘de ficar com vovó’ quando mamãe sai com papai. Beijinho-minuto, pulará no teclado eletrônico, bom entendedor em clicar botões, e pam, pam, pam. Bam, bam, bam.

Enfim, farto de ‘tocar’, fuçará tudo no meu escritório. Papéis, canetinhas, desenhos, livros infantis, romances de cem páginas, por toda parte. Morou no exterior a partir dos sete meses.

- Tem água? Yogute?

Aos três, lia fluentemente, contava até dois mil em Inglês, ensinava-me Geografia, na troca da fralda noturna. Férias no Brasil.

- A carrocinha pegou... (eu, cantarolando.).

- ...um mião de cacholos de unha veiz.

- The wagon picked up...

- ...six thousand dogs at once. Ah, ah, ah!

CAPÍTULO II

          Ademais, curso o nível avançado na Universidade onde lecionei. Lamento:

- Ai! Cavaleira da triste figura, combatendo moinhos de vento, carroças de prisioneiros.

Arquiteta dos castelos e princesas onde há hotelarias e prostíbulos.

Amante de Dulcineu!

- ‘Por que lamentar, criatura? Você é uma sortuda.’. - Voz em off do leitor.

- Sucede, querido leitor, que o coronavirus maldito amarrou as coroOnas em casa. Tenho aulas online às sextas-feiras às oito e meia da manhã.

-Se....

- Se fico isolada, confinada, finada, extraparada? Eu, hein?

- Se fico triste? Ah, rapaz, tenho companhia. Converso com as plantas, peixes coloridos, tartarugas, passarinhos. São companheiros alegres, tagarelas, tal qual as estrelas do Olavo Bilac. E eles amavelmente me respondem 

Camões po a/e mou: 

‘E, afora este mudar-se cada dia,

outra mudança faz de mor espanto,

que não se muda já como soía.’. 

Só mudo. Nado dentro da atual circunstância. F. Pessoa: ‘Navegar é preciso, viver não é preciso.’ Viver nunca teve precisão. É indeciso e perigoso. Navegar pelo mar afora da tecnologia é preciso. Não há bússola, mas nos aventuramos, naufragamos, emergimos, sofremos profundos desafios por necessidade. Luto, substantivo e verbo: sobrevivência no cala-boca do Calabouço Número 19.

(Continua)

Graça Rios

 

 

 

 

 

 

 

 

PERFECCIONISMO

 Sempre haverá uma alternativa para os comunicadores mais criativos. Ou isso ou o mundo para de girar.


U CIRCU DUS LEITÔ

Cê iscritô paiaço di circu é padecê dus figo sem cumê fígodu.

Tein jente leitãural ki couá couá couuué ké y reké dus artô daz orba

passienssa gozassãos kasca gróçias.

Miriveja, sô diretô Riolbaudo.

Disrepenti, pôza nus 1/2 matto iscriturar 1 bizerro 7 xifre.

Kuzói nuviado, mélê málê mulê.

Sárbio sabiá, arsobia-çi simpina se cispinha y mi re lá...

nós pinu, opina.

Anus paiaçado, eça polichinela  iscrevinhemo

1ma  corônica viruslenta, mode festejá

TRUÃO VOLUMTARO

no Istituto Braille.

Criemo meta: usemo metá  fora.

Vamo ki vamo, pratéia,

kids tóira eu manjo.

Arm u spetacro:

                                              Serto templus: inçerto ssego                                                                                               

pasçô a urzá nus  óleos, visêra.

Tão pinitente insdijente invizuar

nunkis + di - nunkis

ô viu ver-te

verdi maleros

lazuli brânkio

 

 

INTREVALIU

BUZINASSO NO PICADÊRO

Marcô çirugia ka dotora Luzia.

Insseja adispois da farta du zerzui

nus borçu, arretirá o grobo osculá + us antóiz.

Vvver á próvidos, próral, prófussa, próstata.‘

Tein +1 sisnão: Áz bufunfa.

E nem bafano Enem bestano Enem bufano, Pilim pimpina narjibêra.

O Circu mandemo us dito pr1 prefessô in Purtugal.

U ditu diz dita pelus  tatu phone:

- Das Letra bufão, querujudá u nóz cego probis.

5 miliscudu dá? Vem ká: teu raparigu tomén dá?

- É pôco, lôko luso. MANDA 7!

- Que iço, paiaço Xorisso !

Lionardo dá 20, pois, pois.

E us dado nas meza du Bancuw

???

- Maria 10 Grassa Rizo

MAIÓ PAIAÇA

CIRCU DUS LEITÔ

Countra Correntis: 20481- 1

Arjença: 000000000 – 0 - 00

- Tu agaranti kintegra tudas fanfa pru çegu?

- Par lavra de minêro in mina dimdinhêru.

FOI- CE

KINRIKEI-SI

Graça Rios

UM POUCO DE POESIA, BEM POUCO, QUASE NADA

 

POUCO

(À moda de Carlos Drummond de Andrade)

 

Um pouco de tudo

De tudo um pouco

Um pouco de saudade

Da dor um pouco

Um pouco de angústia

- ainda bem que pouco -

Da lágrima um pouco.

 

Um pouco de vazio

Um pouco de tédio

Do medo quase muito

Poucas verdades

Muito poucas certezas

Quase muitas mentiras

- quase. -

 

Um pouco de alegria

Um pouco de amor – oh, quão pouco!

Tantos sonhos que sobram poucos

Poucas fantasias para os sonhos desfeitos.

 

De esperança ainda pouco

Porque não tem como caber muito

Onde só cabe o pouco

Um pouco de tudo

De tudo um pouco

Pouco muito pouco

Quase nada.

Etelvaldo Vieira de Melo


EXCEÇÕES

 Quem leva um direto de esquerda nunca se esquece.


POR QUE PICA-PAU QUEBROU O BICO?

 

“Pica-pau quebrou o bico de tanto bicar seu amor.”

   Encontrei esta frase em meio a um texto de estudo. A primeira ideia que me veio à cabeça foi: - Onde já se viu bicar um amor? O pica-pau, no máximo, poderia se permitir dar umas bicotas, nunca bicadas, no seu objeto de afeto.

   Depois, conjecturei: - E se o amor do pica-pau for uma árvore? Tomado de ansiedade, ele se põe a bicar, tanto e com tal furor, que acaba quebrando o bico.

   Neste caso, também reprovo sua conduta. Não sabia ele que a pressa é inimiga da perfeição? Por acaso, a escola da vida não lhe ensinou que, quem tudo quer, tudo perde?

   E se a árvore em questão fosse daquelas de madeira bem dura, que quebram brocas e só são perfuradas por pregos de aço?

   Sendo assim, também estaria em desacordo com o pica-pau. Nunca podemos ir com muita sede ao pote, pois cuidado e caldo de galinha nunca fazem mal a alguém.

   Mas, afinal, por que o pica-pau bica a madeira da árvore? Talvez o pica-pau em questão tivesse pressa em arranjar um ninho, com sua amada em estado avançado para gestação de uns ovos.

   Também esta hipótese é possível, pode ser que a frase esteja mal construída, com o autor se esquecendo de um termo. Talvez a frase correta seja: “Pica-pau quebra o bico de tanto bicar por seu amor”.

   Deste modo, eu não iria fazer nenhum reparo, a não ser lamentar o terrível acidente que pode lhe trazer sequelas para o resto da vida.

   Existe também a possibilidade de que o pica-pau bica o tronco da árvore em busca de lagartos e insetos que se escondem em seu miolo.

   Neste caso, teria o pica-pau minha reprovação. Será que ele é tão infantil que não se dá conta de que o apressado come cru ou queima a língua?

   Estou vendo que uma simples frase, como tudo na vida, permite infindáveis leituras. Com este exemplo, poderia me alongar indefinidamente, levantando hipóteses, tentando entender as razões que levam um pica-pau a quebrar seu bico. E a lição que tiro daí é que nunca devemos nos precipitar nos juízos de valor. Sem mais nem menos, eu não posso ficar dizendo que uma coisa está certa ou está errada. A realidade pode ser bem diferente daquilo que imaginamos.

   Sobre este tema mesmo, estou agora recordando: li em algum lugar que o pica-pau bica a madeira... com a língua, que é extremamente dura. Sendo esse comentário verdadeiro, o autor da frase estaria construindo uma figura literária, usando de uma simbologia? Neste caso, qual seria seu propósito, sua intenção?

   Pode também ser que estivesse fazendo uma brincadeira com seus leitores.

   Outra possibilidade é a de que tenha sido infeliz e, por ignorância, acabou usando uma imagem despropositada.

   Estou aqui, mais uma vez, perdido em meio a explicações para o simples fato de um pica-pau ter quebrado seu bico. Explicações que podem me levar a um caminho sem volta, chegando ao ponto de desmerecer um pica-pau que quebra seu bico ao bicar seu amor. Um gesto que, afinal, pode ter sido um acidente de trabalho, mas que também pode ter um sentido poético, ou romântico. Ou erótico, sei lá.

   PS: Para não ser tachado de mineiro, que gosta de ficar em cima do muro, deixo minha explicação definitiva: O pica-pau, de nome Abelardo, estava dormindo numa serralheria e sonhava com sua amada, a Heloísa. Durante o sono, trocavam longos e apaixonados beijos. Pela manhã, ao acordar, Abelardo viu que estava abraçado a uma barra de ferro e, pior, no chão estavam pedaços de seu bico. Pode parecer estranho, mas foi esta a explicação mais lógica que consegui encontrar.

   Etelvaldo Vieira de Melo

BOLA QUADRADA

 Ah, o futebolês avacalha o respeitável português...




LIBERDADE AMORDAÇADA: VOLUME 2 (GLOBALIZAÇÃO TEM DESSAS COISAS)

 

Sem dúvida, o estrangeirismo contribui e muito para amordaçar a Liberdade. Junto com a dominação cultural, ele vai demolindo a identidade de um país, com a progressiva substituição de valores. O texto original é de 10/11/2012.

Traumas na minha adolescência fizeram com que eu adquirisse rejeição a línguas estrangeiras, notadamente o inglês e o francês. E não adiantou nada estudar tais línguas em cursos regulares: eu simplesmente estava travado para qualquer tipo de aprendizagem.

Com o inglês, aconteceu de estar com um grupo de colegas quando pronunciei, não me lembro com qual propósito, a palavra “Firestone” assim como é escrita. A reação, com risos e gracejos, foi de tanta intensidade que, a partir daí, nem ousava pensar uma palavra nessa língua. Quantas e quantas vezes passei diante de sorveterias, com “água na boca” de desejo para pedir um “sundae”, mas cadê a coragem? E o medo de cometer outro deslize de pronúncia? Eu não suportava a ideia de que pessoas rissem novamente de minha ignorância. E, assim, o “sundae” foi jogado para escanteio, embora sempre estivesse no topo de meus sonhos de consumo.

Com o francês, o vexame foi mais restrito, mas nem por isso incomodou menos. O vigário da cidade me pediu para colocar uma correspondência no correio, endereçada a um tal de Sr. Juneaux. Para confirmar o que havia escrito, me pediu para ler. Li tal qual, ipsis litteris. Horrorizado, o padre me recriminou: “Você não sabe que, em francês, ‘eaux’ se pronuncia ‘ô’? A pronúncia correta é, portanto, Junô.” – E ele me olhou de uma maneira como se eu fosse um caso perdido, e aquele olhar de recriminação até hoje me assombra nos pesadelos.

O tempo foi passando, as feridas se cicatrizaram mais ou menos, mas o bloqueio psicológico continuou, tornando-se mais acentuado com a globalização e a onda de estrangeirismo que tomou conta do país. Só que me tornei esperto o suficiente para não pronunciar uma palavra estrangeira, sem que ela passasse duas, três vezes pelo filtro da audição.

Quando criança, tive um colega de escola que, por causa de seu nariz adunco, sempre era motivo de gracejo para os outros meninos:

- Cala a boca aí, seu filhote de tucano – dizia alguém, quando ele se atrevia a abrir a boca para falar qualquer coisa.

Apesar das brincadeiras das quais foi vítima, creio que chegou à vida adulta sem maiores tropeços. Hoje, seria manchete de jornais: “Criança é vítima de bullying” – com direito a foto em primeira página e depoimentos de especialistas e psicólogos. Porque, convenhamos, o termo “bullying” tem seu charme e inspira consideração e respeito. Mas joga por terra aquela máxima de Nietzsche, quando diz “O que não me mata, me fortalece”.

Todavia “bullying” não está só. Na onda de estrangeirismo, aparece uma coletânea infindável de termos: a expansão da cozinha, a área gastronômica da casa recebe, hoje, a denominação de “Espaço Gourmet”; a entrega em domicílio se chama, agora, “delivery”; se você for de carro a uma lanchonete, poderá dispor do serviço de “drive-thru”, ou então poderá recorrer ao autosserviço, melhor dizendo, “self service”; para divulgar sua empresa, poderá solicitar, junto a uma gráfica, a confecção de “folder” – prospecto, no velho e ultrapassado português. E, para ficar tudo “cool”, é tudo uma questão de customizar as expressões de acordo com as circunstâncias.  

Dias desses (quero dizer, acerca de oito anos atrás), fui surpreendido pela iminente necessidade de ir a um “outlet”. Que bicho é esse? – pensei comigo. – Será que morde? Também pensei na possibilidade de ter que me preparar adequadamente, quem sabe, ter que me barbear, colocar um terno, passar um pouco daquela loção importada, Handsome – da Paris Elysees, que meu irmão Jovelino Floreano, o Jojó, me presenteou. Foi conversando com pessoas, juntando as pontas daqui e dali, que me dei conta de que o tal “outlet”, no bom e tradicional português, não passava da querida e velha amiga “ponta de estoque”.

Percebo que esse avassalador estrangeirismo quebra possíveis resistências de quem gosta de andar com nariz empinado.

- Onde você está indo?

- Vou garimpar algo numa ponta de estoque...

- Que horror...

- Olá, onde você está indo?

- Estou indo fazer compras num outlet...

- Ahhh... Que chique!

E, assim, a vida vai andando pra frente. Pessoas mais sensíveis ao estrangeirismo já sugerem a troca do dia do folclore de 22 de agosto – com os ultrapassados Saci-Pererê, Mula-Sem-Cabeça, Lobisomem – pelo moderno Halloween, ou Dia das Bruxas, em 31 de outubro (abóboras é que não faltam no país).

De minha parte digo que, se arrependimento matasse, eu já estaria morto e soterrado há muito tempo. Deveria, na adolescência, ter procurado aconselhamento psicológico para quebrar o bloqueio com as línguas estrangeiras. Entretanto, não vou ficar aqui lamentando meus erros, porque quem chora o leite derramado ou é Chico Buarque ou é bebê com fome.

Etelvaldo Vieira de Melo

JOGAR 'DIANTE'

 Vida mansa é isso aí...


LIBERDADE AMORDAÇADA: VOLUME 1 (TERRÍVEL, ASSUSTADOR, PERIGOSO)

 

- Cara, você é muito estranho! – falou um sujeito para o outro.

- Ainda bem – retrucou o segundo. – Eu ficaria preocupado se me considerasse uma pessoa normal.

Estamos inaugurando uma série de textos produzidos a partir de 2012, com temas sobre a Liberdade, mostrando como as pessoas, cada vez mais, deixam de ser “estranhas” para se tornarem “normais”: indivíduos ajustados, despersonalizados, massificados, coisificados e confinados em “bolhas”.

O primeiro texto, por coincidência aquele que inaugura minha participação no blog BBCR (03/11/2012), fala da construção da base desse novo tempo distópico: os “sistemas”, onde o “Poder”, camuflado no anonimato, rouba a liberdade e a privacidade das pessoas, moldando novos indivíduos que aprendem a falar e a reverenciar... as máquinas.

💣💣💣

Abri, calmamente, o boleto com a cobrança da fatura mensal de ‘minha’ (força de expressão) operadora de telefonia celular.

Assustado, quase tive um tono adrenérgico, seguido de uma acinesia. (Estas expressões não faziam parte de meu vocabulário, mas – por umas e outras razões – tento me aproximar do mundo médico e seu linguajar.)

Logo, logo, cuidei de ligar para a operadora, sendo atendido por uma voz eletrônica. Segui os processos burocráticos até digitar “0” (zero), pois queria conversar com um atendente de carne, osso e mente racional. A voz eletrônica me alertou para aguardar na linha após o atendimento, para responder a uma pesquisa de satisfação. Pensei comigo: “- Que bom! Hoje vou ter um atendimento educado, mesmo que seja por uma representante do sexo feminino!”. (Antes que as belas virem feras e me atirem pedras, devo esclarecer que minha insatisfação com as operadoras de telemarketing tem base científica: 80% delas me tratam com pouco caso ou grosseria.)

Fui atendido por uma voz masculina. Expliquei-lhe que a operadora estava me cobrando duas faturas e o meu plano era de controle, não havendo justificativa para um pagamento em dobro.

Caprichei na argumentação até ficar sem palavras, mas julgando ter dado conta do recado.

Foi aí que a voz masculina apresentou uma pérola de justificativa para a cobrança, deixando-me ainda mais embasbacado:

- Senhor, a cobrança em dobro foi uma decisão do sistema. Mês que vem a sua fatura será de apenas uma franquia.

- Mas como? – retruquei. Não tem sentido o sistema me cobrar por um serviço que não foi prestado. É ilógico, ilegal, imoral.

- Mas, senhor – falou o atendente, tentando ser educado.   (Será que ele sabia da pesquisa de satisfação?) - Não tem nada a ver comigo, trata-se de um erro sistêmico. Mês que vem será cobrado apenas uma franquia.

- E quem garante que será apenas uma franquia? Pode ser que sejam duas, três...

- Não, absolutamente...

- Já imaginou se os sistemas de cartão de crédito, das empresas de luz e água aderirem à brincadeira? Pelo que estou vendo, esse tal de sistema tem uma mente complexa e um humor variável.

- Bem, senhor, - falou a voz masculina, danando-se para a pesquisa de satisfação. – Mais alguma coisa?

- Não, é só, já que você não pode fazer nada. Vou recorrer à Ouvidoria da empresa e ver se desmascaro esse sistema.

Dito e feito. Acessei o site da operadora, gastei duas horas com os procedimentos burocráticos mais as tentativas de identificar o código secreto, podendo – finalmente – registrar a minha reclamação. Quando cliquei “enviar”, uma última surpresa: - O sistema não está operando no momento; por favor, tente mais tarde...

Depois do acontecido, fiquei pensando sobre o tema, chegando a perdoar muita gente que tinha como irresponsável, bandido e corrupto.

- Os maus políticos são maus não por culpa própria, mas do sistema político que os torna corruptos.

- Os agentes carcerários são uns coitados, mesmo quando acusados por suborno e violência. Será que não percebem que tudo é culpa do sistema prisional?

- Os eleitores nunca, jamais podem ser acusados de não saberem votar. O sistema eleitoral que é ignorante, impedindo a escolha dos melhores candidatos.

- A educação no Brasil está caindo aos pedaços? O país ocupa as últimas posições na escala de investimentos e resultados no ensino?  Claro que a culpa é do sistema educacional!

Estou vendo que, definitivamente, deixamos o tempo em que um simples fio de bigode valia como uma declaração em cartório. Hoje ninguém vale nada, o que conta é o sistema.

Mas eu preciso guardar comigo essas declarações ou deletá-las. Pretendo digitalizá-las, mas morro de medo de que o sistema operacional do computador apronte uma pra cima de mim, deturpe minhas palavras e eu acabe vendo “o sol nascer quadrado”!

P.S. A propósito do Sistema Político:  Estamos entrando em véspera de eleição e o Sistema Político Brasileiro continua o mesmo, quase sempre aquele jogo de cartas marcadas, onde o que está fora não entra e o que está dentro não sai, aquele sistema de capitania hereditária que filho recebe de pai.

A República de Curitiba, com sua Lava Jato, diz que se empenhou no combate à corrupção, mas não moveu sequer o dedo mindinho para pedir uma reforma do tal sistema, tido e havido como gerador de quase toda a corrupção política do país. Depois, falam que o brasileiro não sabe votar, que o povo tem o governo que merece. Meu estômago embrulha ao ouvir tamanha idiotice.

Etelvaldo Vieira de Melo


PERGUNTAR É PRECISO

Será mesmo indispensável apresentar o sujeito, a ação que praticará e enfatizar o sexo dele?!