SONATA DE OUTONO (1ª Parte)


CAPÍTULO I - DAS HOMENAGENS À PARTE 

Começo minha narrativa cheia de saudade. Minha atual distração são lembranças da vida. Procuro manter o equilíbrio, ante os chamados de Socorro Urgente do povo na luta com a Flor do Lácio. Sou uma vovó escritora, estudante de música, professora aposentada da Federal.

            Confinada no apê, penso vira e mexe nas vividas vívidas recordações.

 Toquei muito acordeon na juventude.

Meu irmão Jaime (J’aime Jaime), perdi. Era um virtuose das violas. Aos três, quatro anos, entrava com ele nos botequins onde se tocava bandolim, violino, flauta. Ele vivia de tanto rir, enquanto eu, quase neném, morria e ressuscitava de encantamento musical e artístico.

J. ria rios de lágrimas, me oferecendo uma colher de conhaque com mel.

‘É para ficar tonta quando eu tocar. Todo mundo neste bar se embriaga quando eu entro no quadradinho de Fá do cavaco ou canto o próprio Nelson Cavaquinho’.

Pelo amor de Deus, não me olhes assim

Vejo nos teus olhos humilhação

Já sei que não gostas mais de mim.’.

 Levava uma sova daquelas, todas as vezes em que fugia do serviço no Correio, junto comigo, as mamadeiras e as afinadas. Meu papai o trazia pelas orelhas do Clube do Som até nossa casa.

Depois, às 20 horas, Sebastião, que eu sempre chamo de manoTão, Jaimiko e eu entrávamos no Circo de Cavalinhos. Amarravam-me as pernocas de bebê no fundo da canoa, tangiam as grossas cordas de sisal, e íamos ouvir harpa, instrumento dos serafins.

PRELÚDIO PRÉ- REQUISITO PARA ESCRAVIDÃO

 - Uma garotinha de três anos pra lá e pra cá nas alturas? (vociferava mamãe). Tomem treze varadas. Jaime, com quinze ou vinte anos, saía chorando. Tão, altaneiro, escondia-se para abrir o bué. Em incerta feita, meu pai maestro também feneceu flor faleceu disse adeus, A Deus, e larguei o instrumento de vez. Mas a paixão e a busca do velocino de ouro, a técnica textual, obrigaram-me a procurar, argonauta, nova harmonia, melodia, arpejos, para abrandar o que em mim arde e perdura: a Literatura.

.............

            Hoje, na quarentena, toco sonatas e MPB no teclado eletrônico, instrumento bom para uma pessoa de 72 anos. Ouço música na folha do papel ou das samambaias. Gosto do Fagner, Renato Russo, Charles Aznavour, Edith Piaf. Também dos americanos Lady Gaga, Beyoncé, Michael Jackson, Ray Charles. Trabalho solitária, escrevo livros, poesito, hesito, desisto, insisto, escutando CD.

David, netinho de quatro anos, quando a guerra ininterrupta entre doença, vírus, partidos políticos, países ricaços, findar, subirá faceiro:

- Óila quem chegou! Tem bigadeilo? Manga? Linga de gato? Bicoto?

Colocará na cama em forma de casinha a mochila ‘de ficar com vovó’ quando mamãe sai com papai. Beijinho-minuto, pulará no teclado eletrônico, bom entendedor em clicar botões, e pam, pam, pam. Bam, bam, bam.

Enfim, farto de ‘tocar’, fuçará tudo no meu escritório. Papéis, canetinhas, desenhos, livros infantis, romances de cem páginas, por toda parte. Morou no exterior a partir dos sete meses.

- Tem água? Yogute?

Aos três, lia fluentemente, contava até dois mil em Inglês, ensinava-me Geografia, na troca da fralda noturna. Férias no Brasil.

- A carrocinha pegou... (eu, cantarolando.).

- ...um mião de cacholos de unha veiz.

- The wagon picked up...

- ...six thousand dogs at once. Ah, ah, ah!

CAPÍTULO II

          Ademais, curso o nível avançado na Universidade onde lecionei. Lamento:

- Ai! Cavaleira da triste figura, combatendo moinhos de vento, carroças de prisioneiros.

Arquiteta dos castelos e princesas onde há hotelarias e prostíbulos.

Amante de Dulcineu!

- ‘Por que lamentar, criatura? Você é uma sortuda.’. - Voz em off do leitor.

- Sucede, querido leitor, que o coronavirus maldito amarrou as coroOnas em casa. Tenho aulas online às sextas-feiras às oito e meia da manhã.

-Se....

- Se fico isolada, confinada, finada, extraparada? Eu, hein?

- Se fico triste? Ah, rapaz, tenho companhia. Converso com as plantas, peixes coloridos, tartarugas, passarinhos. São companheiros alegres, tagarelas, tal qual as estrelas do Olavo Bilac. E eles amavelmente me respondem 

Camões po a/e mou: 

‘E, afora este mudar-se cada dia,

outra mudança faz de mor espanto,

que não se muda já como soía.’. 

Só mudo. Nado dentro da atual circunstância. F. Pessoa: ‘Navegar é preciso, viver não é preciso.’ Viver nunca teve precisão. É indeciso e perigoso. Navegar pelo mar afora da tecnologia é preciso. Não há bússola, mas nos aventuramos, naufragamos, emergimos, sofremos profundos desafios por necessidade. Luto, substantivo e verbo: sobrevivência no cala-boca do Calabouço Número 19.

(Continua)

Graça Rios

 

 

 

 

 

 

 

 

1 comentários:

Maria disse...

Sua doce nau singra os mares enfeitada de flores, velas aos ventos do hoje, do ontem e do por vir. Salve Graciosa! Salve!

Postar um comentário