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Cara, você é muito estranho! – falou um sujeito para o outro.
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Ainda bem – retrucou o segundo. – Eu ficaria preocupado se me considerasse uma
pessoa normal.
Estamos inaugurando uma série de textos
produzidos a partir de 2012, com temas sobre a Liberdade, mostrando como as
pessoas, cada vez mais, deixam de ser “estranhas” para se tornarem “normais”:
indivíduos ajustados, despersonalizados, massificados, coisificados e
confinados em “bolhas”.
O primeiro texto, por coincidência
aquele que inaugura minha participação no blog BBCR (03/11/2012), fala da
construção da base desse novo tempo distópico: os “sistemas”, onde o “Poder”,
camuflado no anonimato, rouba a liberdade e a privacidade das pessoas, moldando
novos indivíduos que aprendem a falar e a reverenciar... as máquinas.
💣💣💣
Abri, calmamente, o boleto com a
cobrança da fatura mensal de ‘minha’ (força de expressão) operadora de telefonia
celular.
Assustado, quase tive um tono
adrenérgico, seguido de uma acinesia. (Estas expressões não faziam parte de meu
vocabulário, mas – por umas e outras razões – tento me aproximar do mundo
médico e seu linguajar.)
Logo, logo, cuidei de ligar para a
operadora, sendo atendido por uma voz eletrônica. Segui os processos
burocráticos até digitar “0” (zero), pois queria conversar com um atendente de
carne, osso e mente racional. A voz eletrônica me alertou para aguardar na
linha após o atendimento, para responder a uma pesquisa de satisfação. Pensei
comigo: “- Que bom! Hoje vou ter um atendimento educado, mesmo que seja por uma
representante do sexo feminino!”. (Antes que as belas virem feras e me atirem
pedras, devo esclarecer que minha insatisfação com as operadoras de
telemarketing tem base científica: 80% delas me tratam com pouco caso ou
grosseria.)
Fui atendido por uma voz masculina.
Expliquei-lhe que a operadora estava me cobrando duas faturas e o meu plano era
de controle, não havendo justificativa para um pagamento em dobro.
Caprichei na argumentação até ficar sem
palavras, mas julgando ter dado conta do recado.
Foi aí que a voz masculina apresentou
uma pérola de justificativa para a cobrança, deixando-me ainda mais
embasbacado:
- Senhor, a cobrança em dobro foi uma
decisão do sistema. Mês que vem a sua fatura será de apenas uma franquia.
- Mas como? – retruquei. Não tem sentido
o sistema me cobrar por um serviço que não foi prestado. É ilógico, ilegal,
imoral.
- Mas, senhor – falou o atendente,
tentando ser educado. (Será que ele
sabia da pesquisa de satisfação?) - Não tem nada a ver comigo, trata-se de um
erro sistêmico. Mês que vem será cobrado apenas uma franquia.
- E quem garante que será apenas uma
franquia? Pode ser que sejam duas, três...
- Não, absolutamente...
- Já imaginou se os sistemas de cartão
de crédito, das empresas de luz e água aderirem à brincadeira? Pelo que estou
vendo, esse tal de sistema tem uma mente complexa e um humor variável.
- Bem, senhor, - falou a voz masculina,
danando-se para a pesquisa de satisfação. – Mais alguma coisa?
- Não, é só, já que você não pode fazer
nada. Vou recorrer à Ouvidoria da empresa e ver se desmascaro esse sistema.
Dito e feito. Acessei o site da
operadora, gastei duas horas com os procedimentos burocráticos mais as
tentativas de identificar o código secreto, podendo – finalmente – registrar a
minha reclamação. Quando cliquei “enviar”, uma última surpresa: - O sistema não
está operando no momento; por favor, tente mais tarde...
Depois do acontecido, fiquei pensando
sobre o tema, chegando a perdoar muita gente que tinha como irresponsável,
bandido e corrupto.
- Os maus políticos são maus não por
culpa própria, mas do sistema político que os torna corruptos.
- Os agentes carcerários são uns
coitados, mesmo quando acusados por suborno e violência. Será que não percebem
que tudo é culpa do sistema prisional?
- Os eleitores nunca, jamais podem ser
acusados de não saberem votar. O sistema eleitoral que é ignorante, impedindo a
escolha dos melhores candidatos.
- A educação no Brasil está caindo aos
pedaços? O país ocupa as últimas posições na escala de investimentos e
resultados no ensino? Claro que a culpa
é do sistema educacional!
Estou vendo que, definitivamente,
deixamos o tempo em que um simples fio de bigode valia como uma declaração em
cartório. Hoje ninguém vale nada, o que conta é o sistema.
Mas eu preciso guardar comigo essas
declarações ou deletá-las. Pretendo digitalizá-las, mas morro de medo de que o
sistema operacional do computador apronte uma pra cima de mim, deturpe minhas
palavras e eu acabe vendo “o sol nascer quadrado”!
P.S. A propósito do Sistema Político: Estamos entrando em véspera de eleição e o
Sistema Político Brasileiro continua o mesmo, quase sempre aquele jogo de cartas
marcadas, onde o que está fora não entra e o que está dentro não sai, aquele
sistema de capitania hereditária que filho recebe de pai.
A República de Curitiba, com sua Lava
Jato, diz que se empenhou no combate à corrupção, mas não moveu sequer o dedo mindinho
para pedir uma reforma do tal sistema, tido e havido como gerador de quase toda
a corrupção política do país. Depois, falam que o brasileiro não sabe votar,
que o povo tem o governo que merece. Meu estômago embrulha ao ouvir tamanha
idiotice.
Etelvaldo Vieira de Melo
2 comentários:
Não podia faltar:
Após rescisão de contrato com determinada operadora de TV, ficou agendado que os equipamentos deveriam ser devolvidos no dia 01/10. Tal sucedeu. Dia 02/10, recebi comunicado de cobrança, como se não tivesse feito a entrega dos equipamentos. Dia 03/10, ligo para a operadora. O atendente, depois de verificar meus dados no Sistema, viu que estava tudo certo. Ao fim, me tranquilizou, dizendo:
- Está tudo ok. Houve um erro do Sistema, que já foi corrigido.
Não falei que esse Sistema acaba com nosso sistema nervoso?
EVM
Caro Etelvaldo, nós que já somos antigos, temos que nos acostumarmos cada vez mais com o sistema, pois a tendência é sermos atendidos cada vez mais por robôs. Os seres humanos serão personas estranhas nos serviços de atendimento aos clientes das empresas, por serem mais caros. Sendo assim, melhor do que reclamar e, morrer de raiva, eu acho que a saída é "entrarmos" no tal sistema, que sabe de tudo, e já tomou conta da nossa vida.
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