Sem dúvida, o estrangeirismo
contribui e muito para amordaçar a Liberdade. Junto com a dominação cultural,
ele vai demolindo a identidade de um país, com a progressiva substituição de
valores. O texto original é de 10/11/2012.
Traumas na minha
adolescência fizeram com que eu adquirisse rejeição a línguas estrangeiras,
notadamente o inglês e o francês. E não adiantou nada estudar tais línguas em
cursos regulares: eu simplesmente estava travado para qualquer tipo de
aprendizagem.
Com o inglês,
aconteceu de estar com um grupo de colegas quando pronunciei, não me lembro com
qual propósito, a palavra “Firestone” assim como é escrita. A reação, com risos
e gracejos, foi de tanta intensidade que, a partir daí, nem ousava pensar uma
palavra nessa língua. Quantas e quantas vezes passei diante de sorveterias, com
“água na boca” de desejo para pedir um “sundae”, mas cadê a coragem? E o medo
de cometer outro deslize de pronúncia? Eu não suportava a ideia de que pessoas
rissem novamente de minha ignorância. E, assim, o “sundae” foi jogado para
escanteio, embora sempre estivesse no topo de meus sonhos de consumo.
Com o francês, o
vexame foi mais restrito, mas nem por isso incomodou menos. O vigário da cidade
me pediu para colocar uma correspondência no correio, endereçada a um tal de
Sr. Juneaux. Para confirmar o que havia escrito, me pediu para ler. Li tal
qual, ipsis litteris. Horrorizado, o padre me recriminou: “Você não sabe que,
em francês, ‘eaux’ se pronuncia ‘ô’? A pronúncia correta é, portanto, Junô.” –
E ele me olhou de uma maneira como se eu fosse um caso perdido, e aquele olhar
de recriminação até hoje me assombra nos pesadelos.
O tempo foi
passando, as feridas se cicatrizaram mais ou menos, mas o bloqueio psicológico
continuou, tornando-se mais acentuado com a globalização e a onda de
estrangeirismo que tomou conta do país. Só que me tornei esperto o suficiente
para não pronunciar uma palavra estrangeira, sem que ela passasse duas, três
vezes pelo filtro da audição.
Quando criança,
tive um colega de escola que, por causa de seu nariz adunco, sempre era motivo
de gracejo para os outros meninos:
- Cala a boca
aí, seu filhote de tucano – dizia alguém, quando ele se atrevia a abrir a boca
para falar qualquer coisa.
Apesar das
brincadeiras das quais foi vítima, creio que chegou à vida adulta sem maiores
tropeços. Hoje, seria manchete de jornais: “Criança é vítima de bullying” – com
direito a foto em primeira página e depoimentos de especialistas e psicólogos.
Porque, convenhamos, o termo “bullying” tem seu charme e inspira consideração e
respeito. Mas joga por terra aquela máxima de Nietzsche, quando diz “O que não
me mata, me fortalece”.
Todavia
“bullying” não está só. Na onda de estrangeirismo, aparece uma coletânea
infindável de termos: a expansão da cozinha, a área gastronômica da casa
recebe, hoje, a denominação de “Espaço Gourmet”; a entrega em domicílio se
chama, agora, “delivery”; se você for de carro a uma lanchonete, poderá dispor
do serviço de “drive-thru”, ou então poderá recorrer ao autosserviço, melhor
dizendo, “self service”; para divulgar sua empresa, poderá solicitar, junto a
uma gráfica, a confecção de “folder” – prospecto, no velho e ultrapassado
português. E, para ficar tudo “cool”, é tudo uma questão de customizar as
expressões de acordo com as circunstâncias.
Dias desses (quero
dizer, acerca de oito anos atrás), fui surpreendido pela iminente necessidade
de ir a um “outlet”. Que bicho é esse? – pensei comigo. – Será que morde?
Também pensei na possibilidade de ter que me preparar adequadamente, quem sabe,
ter que me barbear, colocar um terno, passar um pouco daquela loção importada,
Handsome – da Paris Elysees, que meu irmão Jovelino Floreano, o Jojó, me presenteou.
Foi conversando com pessoas, juntando as pontas daqui e dali, que me dei conta
de que o tal “outlet”, no bom e tradicional português, não passava da querida e
velha amiga “ponta de estoque”.
Percebo que esse
avassalador estrangeirismo quebra possíveis resistências de quem gosta de andar
com nariz empinado.
- Onde você está
indo?
- Vou garimpar
algo numa ponta de estoque...
- Que horror...
- Olá, onde você
está indo?
- Estou indo
fazer compras num outlet...
- Ahhh... Que
chique!
E, assim, a vida
vai andando pra frente. Pessoas mais sensíveis ao estrangeirismo já sugerem a
troca do dia do folclore de 22 de agosto – com os ultrapassados Saci-Pererê,
Mula-Sem-Cabeça, Lobisomem – pelo moderno Halloween, ou Dia das Bruxas, em 31
de outubro (abóboras é que não faltam no país).
De minha parte
digo que, se arrependimento matasse, eu já estaria morto e soterrado há muito
tempo. Deveria, na adolescência, ter procurado aconselhamento psicológico para
quebrar o bloqueio com as línguas estrangeiras. Entretanto, não vou ficar aqui
lamentando meus erros, porque quem chora o leite derramado ou é Chico Buarque
ou é bebê com fome.
Etelvaldo Vieira de Melo
1 comentários:
Meu caro Ethelvaldo, excelente texto. Você tem a capacidade de expor de forma clara e simples, o nosso cotidiano. Já passei muita vergonha por pronunciar, de forma errada, palavras estrangeiras. Com isso deixei, na maioria das vezes, de expressar algum ponto de vista ou um pedido, por não ter o domínio de outros idiomas. Até parece que que vivemos em outro país!
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