“Viver
é melhor que sonhar”, cantava com sua voz fanhosa o filósofo da MPB Belchior.
Mas será isso mesmo?
Certa
tarde, estava eu caminhando pela calçada de uma avenida. Trocava os passos com
cuidado, pois estava desprotegida dos óculos que normalmente me acompanhavam.
Tal fato sucedeu num tempo em que ainda não havia me submetido a uma operação
de catarata, cirurgia que restaurou de vez minha visão, livrando-me inclusive
de uma miopia que me obrigava a usar os referidos óculos.
Enquanto
trocava os passos, intuí mais do que percebi um homem caminhando no outro
passeio e olhando insistentemente para mim. Um frêmito me percorreu, começando
no dedão do pé e subindo até a raiz dos meus cabelos. Esfreguei discretamente
os olhos, desconfiada de que aquilo não passava de uma miragem, um sonho.
Perguntei para os meus botões:
-
Será que, finalmente, está chovendo no meu canteiro de quiabo e ora-pro-nobis?
No
outro passeio, o homem continuava a olhar para mim, correndo o risco de trombar
em outros transeuntes ou dar de cara com um poste.
De
soslaio, eu o observava: era alto, tinha corpo uniforme, quase atlético, seus
cabelos eram escuros com tons prateados. Aqueles detalhes fizeram com que eu
desse um suspiro e, quando me convenci de que não estava tendo uma miragem, fiz
mentalmente uma prece de agradecimento aos deuses.
Chegando
a um ponto de semáforo, eis que meu príncipe encantado caminha resoluto em
minha direção. Enquanto ele se aproximava, senti que minhas pernas bambeavam, o
coração disparava, toc-toc-toc, quase me deixando sufocada.
Quando
chegou pertinho, ele olhou bem para mim e disse:
-
Aaah!- E fazendo ar de espanto e decepção: - Mas é você, Conceição?
-
Oh! A decepção é mútua e verdadeira, meu caro Pereira – falei.
Sim,
era eu, e ele era ... um velho conhecido e amigo, o Bartolomeu Pereira - baixinho, gordinho, careca e tão míope quanto eu.
Então,
que fique registrada aqui discordância com o que disse Belchior: às vezes, um
sonho, uma ilusão ou fantasia pode ser bem melhor do que a realidade.
Se
o fato narrado tivesse acontecido à noite, valeria muito bem o ditado “de
noite, todos os gatos são pardos”. Estou vendo que, para quem está “matando
cachorro a grito”, gato é pardo em qualquer hora do dia.
PS:
Explicação científica para os gatos pardos: Segundo a Física, com baixa
luminosidade, os cones (células fotossensíveis da retina), que são responsáveis
pela visão colorida, são menos sensíveis do que os bastonetes, células que
distinguem apenas as diferentes intensidades de brilho. Assim, no escuro, as
coisas parecem ser acinzentadas ou pardas. BBCr também é cultura.
1 comentários:
Quanto à frase do Belchior, depende do dia, do momento, do ano, etc. Por exemplo: 2020 foi um ano feito mais para sonhar do que para viver.
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