O HOMEM QUE FEZ UM BOI VOAR

 

No tempo de antigamente, quando as empregadas domésticas passavam férias na Disney (pra desespero de gente como Paulo Guedes), Loprefâncio Caparros também cometia a extravagância de fazer seus passeios. O presente caso lhe foi contado por um guia turístico, quando visitou Recife. A narrativa aqui é feita em forma de cordel, um cordel afolosado, modesta homenagem à terra natal de La Belle de Jour do Alceu, o Valença.


Vou contar uma coisa procê

pedindo a devida atenção

não sei se é de seu conhecimento

já que o fato se deu por volta de mil e seiscento

no tempo da colonização.

 

Corria 1630 quando uma tropa holandesa

aportou pras bandas de Pernambuco

botando todo mundo pra correr sob mira de trabuco

suspendendo assim a dominação portuguesa.

 

Instalou-se ali a Companhia das Índias Ocidentais

E seu objetivo era exportar açúcar a peso de ouro

sendo aquilo então uma raridade, um tesouro

com os ‘camisas-laranja’ querendo cada vez mais.

 

Para administrar aquela operação

de modo que tudo saísse a contento e não fosse mal

julgaram por bem contratar os serviços de um alemão

que respondia pelo nome de João Maurício de Nassau.

 

Esse galego era um cabra tinhoso, empreendedor, inteligente:

exportando açúcar, atendeu aos interesses da Companhia

e para a cidade de Recife, cuidou de fazer melhoria

deixando todo mundo contente.

 

Mas o ser humano, metido a cavalo do cão,

com o que tem nunca se satisfaz

estando sempre na contramão

não dá valor ao que ficou para trás.

 

Recife é uma cidade formada por ilhas

carecendo de pontes para ligar uma às demais

sem as quais, pais não podem ver as filhas

sem as quais, filhos não podem ver os pais.

 

Maurício, cabra da pêia, quis uma ponte erguer

mas o dinheiro lhe faltou quando estava no meio do caminho.

E aquela situação de rosca quase põe tudo a perder

com a mundiça a mangar sem dó ou carinho:

 

- É mais fácil um boi voar

do que Maurício sua ponte terminar.

 

Aquilo mexeu com os brios do alemão

deixando-o mais vermelho que maduro pimentão.

Falou: Eles hão de ver a obra terminar!

E assim ele fez com sacrifício a construção

Até ficar  pronta para inauguração.

 

- Não só vocês estão vendo a ponte acabar

como terão oportunidade de ver um boi voar -

Disse mais aquele atrevido fanfarrão.

 

Durante o dia, circulou com um boi pela cidade

o boi do Melchior, conhecido pela mansidão

despertando entre todos natural curiosidade.

E todos começaram a se perguntar:

- Será que ele é mesmo capaz de fazer um boi voar?

 

Maurício fez cobrar pedágio dos curiosos moradores

inaugurando uma prática corriqueira depois entre governadores.

(Arrecadou 20.800 florins segundo nota de historiadores.)

 

Quando a tarde chegou, ele se recolheu aos seus aposentos

e, tendo preparado de antemão um boi empalhado,

fez com que ele deslizasse numa corda até o outro lado

fato que deixou todo mundo tabacudo, abilolado.

 

Tinha Maurício, por experiência europeia,

conhecimento do ditado que dizia:

“À noite, todos os gatos são pardos – exceção pro angorá”.

 

Pode você perguntar: “De onde Maurício tirou a ideia

de que naquele ditado do gato, angorá não cabia?”

Ora, ele responderia, é preciso avaliar as coisas com atenção

pois é dito e revisado que toda regra tem uma exceção

e o gato angorá não está aí por aresia nem por enrolação.

 

Ele põe um ponto final nessa prosa

antes que comece a esfriar

contando as aventuras de um homem

que, mesmo comendo brocha, pôs um boi pra voar.

Vocabulário Pernambuquês: Afolosado: frouxo / Galego: pessoa loura ou alourada / Metido a cavalo do cão: metido a besta / Cabra da pêia: corajoso / Situação de rosca: situação difícil de sair / Mundiça: povão, ralé / Mangar: zombar / Tabacudo: bobo, besta / Aresia: conversa fiada, jogada fora / Comendo brocha: passando por apuros.

Etelvaldo Vieira de Melo


LÍRICO POETA


Neste tempo de endemia, por que recebermos, nós, os músicos, novas injeções?

Tomamos, de antemão, milhares delas, ao introduzir pele adentro partituras de Beethoven, Chopin, Mozart.

O efeito colateral posterior coloca todas as Instituições Sanitárias de prontidão.

É que desmaiamos, retorcemo-nos, cuspimos, carpimos, sonambulamos, saltamos - velozes cangurus - com a batuta na mão.

Arrepiados, arreliados, enfurecemo-nos violentamente ao som de flautas violinos tambores surdos tímpanos.

Lá, o maestro, nau sem rumo, descabela-se. Dialoga, soluça, pragueja, implora remédio salvador da orquestra.

Às vezes, rodopia, pia, ruge, avança, histriônico, sobre a plateia.

Provoca-a, berrando: Silêncio, infiéis ateus atores deste tempo/templo de encanto desencanto flor e ardor. Participem do meu convite por dividir equitativamente múltiplos sintomas de empolamento auditivo, oral, nasal, tátil.

Vibrem, senhores bombardinos, trombones, trompas, trombas d’água e fogo pela confortável poltrona neste precioso Concerto.

Vejam seu corpo rubro, a garganta rascante, o sufocamento sem sombra nenhuma de respiradouro. E a falta de recursos artísticos, advinda do maior Poder.

Memento mori.

Em seus poros, percebam a falência dos órgãos. Há, de fato, um deles penando ressoando entre escombros instrumentais. É como se os familiares nunca pudessem ampará-los. Caixões trancados. Cemitério tumba a sós.

Solidão.

Dissonâncias invadem o ar ora impuro presente, e ele, concreto sujeito, permanece carregado de invisíveis seres numa batalha virulenta contra Vossa vil matéria espiritual.

É isso!

Nosso estado interior, engrandecido, esplendoroso, sua, treme, evacua, vomita, suja o ambiente sem cessar.

No desespero sangrento final, canta, solfeja, brama. Tão mau estar assim, in extremis, sapiente sobre a impossibilidade de pintar despontar na pauta o horror de Otelo, o Mouro de Veneza. Angústia Shakespeareana...

Para que vacinas, garoto?

Nossos Mestres do passado/presente/futuro / as aplicaram/aplicam/aplicarão/ direta, sonoramente na plen’alma plenária nossa seresteira.

Eia, pois, artista!

Nosso barroco crânio já fora infectado por coronais vírus criativos milênios Antes de Cristo. Tocávamos mascarados no teatro grego, a fim de interpretar breves mínimas semínimas notas trágicas de Giovanni Pierluigi da Palestrina (c 1525-1594). Sentimos todos os impossíveis calafrios, anemias, síndromes, composicionais.

Foi assim que descobrimos a fórmula do contraveneno político durante seus ataques no palco.

Mesmo assistindo à morte de mil adoecidos segréis trovadores, vítimas do isolamento social, persistimos buscando o Olimpo: Ali, os deuses nos farão curados. Serão tais, os louros do porvir.

Também, fênix, renasceremos da cinza, vacinados pelo espectro do desfruturo tecnológico. Desaparecerão, os astronautas trovadores?

Taciturnos ante o compassado Hospital do Belo Som, seguimos hoje executando harpas, liras, violões, seja por contato lacrimal, seja por inimagináveis inflamações físicas ou espirituais.

Amanhã, voltaremos.

Graça Rios

VAMOS DAR AS MÃOS?

 

Quando a pandemia do coronavírus começou a se espalhar pelo mundo, eu tinha imensa esperança de que aquele mal poderia se reverter num bem maior: a humanidade se conscientizando, enfim, de que é preciso preservar o meio-ambiente e cultivar a solidariedade, uma vez que a Terra se tornou de fato uma aldeia global e que o efeito borboleta já não é mais uma mera ficção cinematográfica.

Ledo engano. Parece até que eu estava fazendo jus ao meu nome -  Ingenaldo. Nem bem as mortes começaram a espocar e as pessoas já aprontavam as garras de seu individualismo, de sua indiferença com o sofrimento alheio (como simples exemplo, veja o que aconteceu com aquele grupo de políticos e empresários mineiros que, em história mal contada, cuidou de vacinar seus familiares, depois de importar o imunizante da Pfizer e violar a lei, não fazendo a doação para o SUS).

No Brasil, o mau exemplo vem de cima, através de nossa autoridade máxima. O presidemente, que deveria ser modelo de solidariedade, de empatia, de amorosidade, revelou-se um ser cruel, que só pensa em si mesmo, que não mostra compaixão para com o povo (“Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”). Resultado disso são as milhares de mortes, com o país se tornando epicentro da pandemia no mundo. Quando ele não demonstra cuidado, se expõe sem máscara e provoca aglomerações, quando faz propaganda contra a vacina, está disseminando o pouco caso para com uma doença que já matou quase 400 mil pessoas entre nós. Pior de tudo é ver como sua atitude irresponsável está influenciando até mesmo pessoas idosas, que se recusam a vacinar, com base em informações mentirosas propaladas por sua excelência e tropa de seguidores.

Se as pessoas fossem despertadas para a solidariedade, não quero dizer que tudo seria fácil e tranquilo. Não. Se o presidemente deixasse de lado sua compulsão em mentir, deixasse de ser ególatra, desse conta de seus erros e tivesse um pouquinho de remorso, demonstrasse compaixão, tivesse um discurso de conciliação e não agressivo, provocativo, autoritário, nem por isso a covid deixaria de causar suas mortes, nem por isso deixaríamos de estar vivendo uma situação de perplexidade, de angústia e de sofrimento.

Não quero parecer pessimista. Quando aponto malfeitos, não estou querendo ridicularizar, diminuir, menosprezar, mas chamar a responsabilidade de cada um para a construção de um país decente, onde todos possam viver com dignidade. Essa pandemia poderia ser combatida de uma maneira mil vezes melhor se as pessoas, partindo do exemplo de nossas autoridades, dessem as mãos umas às outras, em gesto inteligente e solidário, enfrentando unidas as adversidades.

Um exemplo simples pode ilustrar o que tento dizer. Ele vem lá do Rio Grande do Sul, num tempo de antigamente.

Em certa ocasião, desapareceu nos milharais dos pampas gaúchos a filha mais nova do senhor Jair, vaqueiro daquela região. Durante três dias, os habitantes da redondeza se mobilizaram à procura de Regina. E eram homens, mulheres, jovens e até crianças, em cavalos, tratores, carros à pé, que – com gritos, buzinadas, lanternas e faróis – caminharam, vasculharam todos os cantos, procuraram durante dois dias e duas noites, mas a menina não aparecia.

Começava o terceiro dia da procura inútil quando o senhor Jair, inspirado pelo amor de pai, teve uma ideia:

- Gente, estamos procedendo errado – falou ele para o grupo de amigos. – Vocês não estão vendo que existem caminhos por onde passamos milhares de vezes e que, ao contrário, há outros nunca visitados?  Vamos organizar uma grande corrente, dando-nos as mãos, percorrendo primeiro uma extensão, voltando por outro caminho, não deixando nenhum palmo sem pesquisar.

Assim fizeram. Vasculharam as roças vizinhas e, ao cair da tarde, encontraram a menina... mas Regina já estava morta.

Conta a história que aquele pai, aquele gaúcho forte, o senhor Jair, não conseguiu conter as lágrimas e, tomando a menina nos braços, falou:

- Gente, por que nós não ‘se deu’ antes as mãos?

Desejo muito que a história desse gaúcho sirva de lição para todos nós, em especial para aquele outro Jair, aquele que fica em Brasília. Está passando da hora dos brasileiros se darem as mãos.

Eu sei que existem pessoas para quem um vaso de flores já é grande demais. Mas também sei que existem pessoas que fazem do mundo o seu jardim. Que tal fazermos do mundo o nosso jardim? Que tal fazermos do Brasil o nosso jardim?

Ingenaldo / Etelvaldo Vieira de Melo

ALONGAMENTOS OFICINAIS EM TEMPOS DE SEDENTARISMO PANDÊMICO

 

💥A máquina, que era mágica, tornou-se trágica quando, trêmula e trôpega, atropelou o coração do homem.

🔪 A mola amola quando perde a mola. E a faca, será que se pode fiar numa faca afiada?

👀Quando soube que o essencial é invisível para os olhos, o cego pensou, aliviado: <Ainda bem!>

🐕  Muitas vezes, um olhar vale mais do que mil palavras. Aprendi tal lição com Thor, o cãozinho lá de casa.

🙏 Quanto menos você compreende uma coisa, mais tende a acreditar nela.

💔 Alguém diz: <Alguns amores vêm e vão, mas nunca vêm em vão.> Pergunto eu: <E, quando vão, é em vão?>

🐷Prova de amor: porco-do-mato dar abraço apertado em porco-espinho.

⏳ Palavras do Dr. João: <Os tempos mudam, no devagar depressa dos tempos>.

💤 O mistério é a verdade adormecida.  

🔑 Aprendizagem é a arte de desocultar mistérios, segredos guardados e escondidos.

🍎 Aquilo que sei de saber e de sabor: não há nada melhor do que aprender a viver a vida.

  Lição da Natureza: Nada é tão simples quanto um pé de orquídea; nada é tão belo quanto uma orquídea em flor.

🌈 Felicidade é o exercício de praticar o necessário. Sabedoria é saber o que é necessário.

🐦De tardezinha, uma avezinha, com uma florzinha no bico, voa sob uma nuvenzinha em busca de sua casinha num pé de jequitibá.

Etelvaldo Vieira de Melo


PONTOS EM NÓS

                                      

Gracioso alinhavo no bordado de Cris

Assentado próximo ao tear, um analista ponto cruza certa cambraia literária. Que formas puras cria tão gentil poeta? Onde fita sinhaninhas, malgrado informe bastidor? Através da peça de tule machadiana, rasga a bainha de todo infame verbo. Máquina afinada, corta com lâmina o feitio dos sectários de Lúcifer. Alfineta a gaze fina com a qual belzebu enrola inocentes, pregueados na sedução, roubo, ignomínia. O amigo sabe: Diabo chuleia, borda, ali, uma Igreja Única, Totalitária, Global. Por isso, utiliza ferrugens na bobina d’outras sés. Convence-se pintor manual dum cós de caimento livresco, sob as Leis do Tártaro. Estampa figuras em carreteis, ante divinos aviamentos, ao desforrar direitos humanos. Molda por baixo esperança, amor, paz. Por cima, moldura sevícia, orgulho, truculência. Ignora o designer de moda, Joaquim Maria, que tece trama de atar leitor. Cristiano emenda-se às malhas da Letra. Mestre realista fia, confia: Desalinha, desconserta, cose as patas do coisa-ruim, filho! Desfia a arquetípica franja de Lucius. Vanitas vanitatum omnia vanitas? Satã perde o fio da meada, misturando fuxicos contra o paradigma dos profetas e reformadores. Alfaiate fogoso, sonha enlaçar a nó górdio toda hegemonia das religiões e doutrinas. Sob véu de cinzas plumas, tudo julga, perverte, vende. Pai da negação, aperta alarga estreita qualquer plataforma alta ou arremate terreno. ‘Por trás da virtude, o vício’, ziguezagueia o tinhoso. Mira, pois, estilista crisântemo! O Sujo, ora traveste-se de tons aristotélicos: ‘O bom é sempre mau’. Sobre matrizes e telas, lantejoula Grande Ordem Nova e Insana das coisas a que denomina Legião. Blasfema aos pés do Onipotente: ‘Encorpado de purpurina carnaval vidrilho, seguidor nenhum terá sede de Ti. Plissará grinaldas em favor da noiva barbárie. Confeccionará panfletos acerca de maniqueísmos políticos... Eis que nesse instante, Lopes al’Cançado trança no bilro fios de renda: ‘Veludo ou seda, diacho, propendem-se a repuxos encolhimentos buracos. Representam o enviesado manto terrestre. Alvo macio hipoalérgênico, nosso terno algodão agasalha rebanhos celestes.  Modelas o nada, Anjo da treva. Desenha-te no abismo. Salve o Senhor Rei do bem costurado Universo’.  Ah! Parece-me que algum monge da Ordem de São Bento frisou a ferro de brasa esse babado: Éden versus Inferno. CristiAMO colcheteia-se.  Traspassa no dedo seu áureo dedal. Após, sutura definitivamente fibras soltas do manuscrito.

Graça Rios

CHEGA DE PASSAR PANO


Uma coisa que assusta na doutrina cristã é quando ela manda amar não só as pessoas que nos querem bem, mas os nossos desafetos, aqueles que nos fazem mal e que nos odeiam.

O segredo desse amor incondicional é revelado pelo próprio Jesus. Quando crucificado, ele disse a Deus:

- Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem.

Quando você se dá conta de que o mal praticado pelo outro decorre dele não saber o que está fazendo, que é fruto da ignorância, fica mais fácil o perdão, não é mesmo?

Daí, podemos dizer que o cristianismo só prega o Amor (quando as pessoas se reuniam para ouvir a homilia, a pregação do apóstolo João, na esperança de algo extraordinário e diferente, ele repetia sempre: - Filhinhos, amai-vos uns aos outros). Amar os que nos querem bem e amar os que nos odeiam, porque são ignorantes.

- Ignorantes de quê? – pode você perguntar.

A resposta é simples: ignorante de que a bondade é um valor e a maldade, um contravalor. Quando a pessoa pratica uma maldade, por ignorância, ela merece perdão. Mas, e quando a pessoa pratica o mal tendo consciência do que está fazendo, como se o mal fosse um bem? Seria uma maior ignorância ou uma pura maldade?

Fico pensando: o que é o perdão? Significa ‘passar pano para o outro’? Jesus, quando perdoava um pecador arrependido, dizia: - Está bem. Você tem o meu perdão. Mas com uma condição, de que não volte a pecar. Perdoar, significa, então, não só relevar uma ofensa, como também, e principalmente, mostrar ao outro o erro que ele cometeu.

Tem um compositor da Música Popular Brasileira que diz ser a Palavra algo perigoso, como uma navalha. E ele falava mais: - Eu não posso cantar como convém, sem querer ferir ninguém.

Não sou exegeta e, por isso, não posso afirmar com certeza que os tradutores dos Evangelhos tenham errado em suas versões das falas de Jesus. Só acho que eles poderiam ser mais incisivos, com as palavras sendo usadas feito navalhas. Traduzindo a passagem do Gólgota (“Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”), ela poderia ter sido dita assim:

- Pai, perdoai-lhes porque eles são estúpidos, cretinos, imbecis, idiotas.

Jesus estaria dizendo a mesma coisa, usando outros termos. E acredito: estaria sendo mais didático. Pois uma coisa é alguém dizer que não sei o que estou fazendo; outra coisa é alguém me chamar de estúpido, ignorante, idiota. A segunda versão pode me machucar, mas irá provocar uma reflexão e uma possível mudança, enquanto a primeira certamente me deixará indiferente.

Esta reflexão é feita a propósito do que anda acontecendo em nosso país, a pátria amada Brasil. Julgo que as pessoas más prosperam (adquirem fama e seguidores) porque nós outros contemporizamos com suas maldades, ficamos, como é usual dizer, ‘passando pano’, em vez de falar o que julgamos ser o Bem e a Verdade.

Santo Agostinho disse que “a medida do amor é amar sem medida”. Considero esta frase bonita, mas incorreta. Para mim, a medida do amor é a inteligência; quem ama sem inteligência acaba fazendo mais estrago do que bem.

Nessa época, em que as notícias circulam mais pelas redes sociais, acontece de muitas pessoas repassarem notas de terceiros, movidas por maldade, ignorância ou descuido. Fico indignado quando recebo algo notoriamente falso. Minha vontade é de falar para a pessoa que me enviou:

- Deixe de ser estúpido, ignorante ou cretino. Deixe de propalar mentiras: não vê que sua ação está ajudando a destruir o país, desunindo as pessoas?

Nessas horas, acontece de alguém próximo me dizer:

- Deixe para lá, não ligue para o que ele está dizendo. Você tem que respeitar a opinião dos outros.

Mas será que tem que ser assim? Está certo eu ficar ‘passando pano’ para as mentiras e os mentirosos? Não é isso que aconteceu no país, fazendo com que chegássemos a esse estado de decomposição?

Por tudo isso, não querendo ‘passar pano’ para aqueles que, por ignorância, ingenuidade ou pura maldade, ficam repassando notícias falsas, eu digo com todas as letras: vocês também são genocidas, vocês são cúmplices, responsáveis pelas quase 400.000 mortes pela covid.

Alguém disse que os cretinos vão dominar o mundo, não por causa de suas capacidades, mas por serem em maior número. Quando, por ingenuidade, fico repassando notícias falsas ou quando, por ‘boa educação’, me calo diante das mentiras, estou sendo cúmplice na propagação do mal. Como bem diz o ditado: “tão ladrão é o que vai à horta, como o que fica à porta”.

Etelvaldo Vieira de Melo

 

PÁSCOA EM TEMPOS DE PANDEMIA

Conceição do Coité é uma cidade do nordeste da Bahia, fazendo parte da microrregião de Serrinha. Segundo dados do IBGE: - sua população gira em torno de 67.000 habitantes, sendo 10,5% ocupada; - o salário médio mensal é de 1,6 salários mínimos, sendo de 46,5% o rendimento mensal per capita de até ½ salário mínimo; - o percentual das receitas oriundas de fontes externas é de cerca de 93,9%.

É para Conceição de Coité que estamos indo neste texto. Como a demora é pouca, visitamos rapidamente a bela igreja matriz de Nossa Senhora da Conceição, sentamos no coreto da praça e demos uma vista d’olhos no parque aquático da cidade, que recebe o pomposo nome de Acqua Show Family Park. Com calor intenso, paramos também na Padaria e Lanchonete São José, ali na Rua João Benevides, 99, onde tomamos um sorvete. Depois, rumamos para a casa de Irineu e Jucicleide, situada na periferia da cidade.

Irineu Cruz, conhecido como Chitão, tem 44 anos; Jucicleide, Juci, tem 39. Eles moram numa casa atualmente pintada de azul, com várias gaiolas de pássaros penduradas na parede de frente. O inusitado da história deles, e que motivou a nossa visita, é o fato de terem 15 filhos, todos com nomes iniciados com a letra “R”.

Quando se casaram, combinaram o seguinte:

- Quando a gente tiver filho, se for homem, eu boto o nome; agora, se for mulher, quem bota é você – falou Chitão.

E, assim, ano sim e ano não, enquanto Juci cuidava de botar mais um filho no mundo, Chitão se esmerava em botar um nome no rebento, copiado de algum jogador de futebol. E assim foi indo, até atingir a cota de 14 homens: Ronaldo, Robson, Reinan, Rauan, Rubens, Rivaldo, Ruan, Ramon, Rincon, Riquelme, Ramires, Railson, Rafael, Rodrigo.

Em setembro de 2020, Jucicleide realizou, enfim, um sonho secreto: deu à luz uma menina, que recebeu o nome de R...aiane Maiara.

- Eu falei que se fosse menino, eu ia ser muito feliz – comenta Juci. -  Quando fiz a ultrassom, que deu menina, aí fiquei mais feliz ainda, porque menino já tive 14 e, com a vinda de uma menina, minha felicidade completou.

Conta Irineu:

- Veio uma menina e é a alegria da casa. A gente já era alegre e somos mais alegres por termos os 14 homens e a menina. Raiane Maiara, foi Juci  que escolheu. Ela botou com 'R' também para acompanhar o lote, que são todos com 'R' e graças a Deus ela escolheu com 'R'. A alegria do Brasil e do mundo.

Após o parto de Raiane, que foi cesárea, Jucicleide achou melhor fazer o processo de ligação das trompas.

- Cancelou mesmo a fábrica - disse aos risos.

Quando quis saber como a família tem reagido nesses tempos de pandemia, já que  vivia dos "bicos" que o pai conseguia para ganhar dinheiro e também do Bolsa Família que a esposa, que é dona de casa, recebe mensalmente, Chitão falou:

- Eu sei que aqui é luta, muita luta para a gente manter essas crianças com café da manhã, merenda, almoço e tudo mais. Sobre o colégio, eles estão estudando pelo celular. A gente vem sofrendo um combate geral com essa pandemia da Covid-19. Presos, trancados, não sai ninguém.

Passando por aperto financeiro (“no total são 14 'bocas', porque três casaram e não moram mais aqui; temos duas netas e um neto"), a saída encontrada por Irineu foi trabalhar com reciclagem e vender ossos de animais para pagar as contas:

- Eu estou vivendo de catar papelão, ossos, ferro velho, na base da reciclagem. A gente está sobrevivendo disso aí agora.

A família também conta com a ajuda do casal de amigos, Rubinho e a esposa Maiara, além de açougueiros da região.

- Rubinho ajuda a gente bastante, se não fosse ele, o que seria da gente? A gente também agradece a todos os açougueiros que estão doando ossos para a gente vender e fazer nossa feira.

E o auxílio emergencial?

- Nós não recebemos nenhum auxílio que o governo deu. Complicou o barco e nós estamos pedindo força e coragem a Deus para manter a batalha nessa linha. O auxílio mesmo, eu não sei porque, a gente correu atrás, procuramos até um advogado e não sei porque a gente tem 15 filhos e não teve o auxílio. É brincadeira um negócio desses? Eu achei um absurdo, não sei que castigo foi esse que deram na gente – lamentou Chitão.

(Enquanto isso, a gente sabe, famosos receberam auxílio, como é o caso da esposa do deputado Daniel Silveira, a advogada Paula da Silva Daniel que, mesmo recebendo salário de R$5,6 mil, não deixou de retirar suas parcelas.)

Ao fim da conversa, Irineu Cruz diz:

- Graças a Deus está tudo em ordem, é chamar por Deus agora, que ele dê vida e saúde para eu trabalhar, estar na luta para criar eles. Peço muita força e coragem para eu manter o trabalho e que nunca falte o pão de cada dia.

Não sei bem por quê, mas achei esta história de Irineu e Jucicleide expressiva para esses tempos de pandemia. Até acredito que ela carrega uma mensagem de esperança própria da Páscoa.

Deus, não sei o castigo foi esse que deram na gente:

Complicou o barco e estamos precisando de força e coragem

Para manter a batalha nessa linha.

Mas, mesmo assim, obrigado, Senhor

Obrigado por deixar tudo em ordem aqui em casa.

Estou chamando o Senhor agora

Para que dê vida e saúde pra toda a família

Para que eu posa trabalhar

Estar na luta para criar meus filhos.

Olhe, Senhor, pro nosso amigo Rubinho e sua esposa Maiara

Também peço o seu olhar para todos os açougueiros

Que nos doam ossos para vender e fazer a feira.

Deus, peço-lhe muita força e coragem para manter o trabalho

E que nunca nos falte o pão de cada dia.

Enfim, Senhor, se não for pedir demais,

Olhe para as autoridades do país

Faça com que se compadeçam dos pobres necessitados

E eles vivam com orgulho

Para alegria do Brasil e do mundo.

Amém.

(Texto produzido com base em pesquisa de Internet e matéria de João Souza, no Portal G1 de 30/03/2021)

Etelvaldo Vieira de Melo

COMENTÁRIO CRÍTICO SOBRE O CONTO “A IGREJA DO DIABO”, DE MACHADO DE ASSIS


Leitores religiosos e mais ingênuos evitariam “A igreja do Diabo” por temor ou por simples repulsa. Os descrentes, na sua vez, esquivam-se do conto talvez por respeito próprio à sua tradição não religiosa. Agora, os apologistas de Satã desejam mesmo é que essa obra seja apagada da História de nossa Literatura.

Estamos diante duma obra-prima da Literatura Universal, cuja personagem principal é a entidade arquetípica, real para uns, mitológica para outros. O anjo caído, o anjo rebelde, tomado por despeito, ódio, vingança e inveja: Lúcifer!

Algum monge divinamente inspirado da ordem de São Bento teria testemunhado a história, deixando-a em manuscrito para os homens comuns, caindo então aos olhos do leitor-narrador-escritor. O que move a história é uma idéia extraordinária ocorrida ao anjo, durante suas reflexões no inferno. Decide ele fundar uma Igreja Única e Global, enquanto se combatem entre si as religiões. O plano nasce da clássica e totalitária percepção diabólica de que tudo entre os seres é vaidade. Vanitas vanitatum et omnia vanitas! Para o desafiador de Deus, as virtudes buscadas pelos homens têm por motivo o orgulho. Pervertendo as virtudes e resumindo-as em um só vício, o mirabolante levanta uma comparação entre elas e a vestimenta distintiva da realeza. A capa – o manto de reis, rainhas, príncipes e princesas – traz na sua essência o tecido e na forma a destacada franja. Esta última, naturalmente, trata-se de guarnição, enfeite. No argumento satânico, a franja é algo que ao mesmo tempo embeleza e esconde, tampa alguma verdade ou vergonha. Isto é, por detrás das virtudes que se vê está escondida a Senhora Vaidade. Com base nessa tese, e impiedoso com os pecadores, o pai da negação e do “moralismo mundano” condena a todos negando qualquer possibilidade de salvação.

Quanto aos tecidos. Podemos traçar um paralelo com os lugares onde se passa a história: o algodão, hipoalergênico, com sua brancura e maciez simbolizaria o Céu; o veludo por sua exuberância, propenso à irritabilidade e dupla possibilidade (pode ser ele fiado com algodão ou seda) seria a vida na Terra; por fim a seda com seu brilho reluzente e sua luxúria infernal “das províncias do abismo”.

Para o Diabo, um fiel modesto e sensato que dá sua vida para salvar outras duas não passa de um misantropo fingindo caridade. Os crentes, para ele, são invejosos; enquanto que as forças infernais vestem-se de justa indignação. Ele goza de amor próprio diante de um Deus vencido; os pobres fiéis não, esses se movem por vanglórias. O Diabo é eloqüente, sedutor e deseja disputar o rebanho das almas até que sua igreja seja a única. Ataca o livre arbítrio dos profetas e do reformador. Abala toda a harmonia angélica. Pretende eliminar a variedade de religiões e doutrinas. Trabalha negando a decência, o arrependimento, a culpa, a piedade e a reconciliação, “cortando por toda a solidariedade humana”. Tudo pode ser vendido e adulterado. O simples fato dum fiel arrumar-se para ir ao templo é, na lógica diabólica, ostentação. Revolve-se o quadro gradual aristotélico dos bons e maus hábitos.

Para concluir sua instituição, precisa ele estabelecer uma Grande Ordem Nova e Insana das coisas, com a força das multidões e legiões de seguidores. Ele mesmo se autodenomina Legião. Sua Igreja é a instauração da barbárie. Que é a barbárie? Trata-se da reversão das civilizações em selvas, os homens tornados animais irracionais em ambientes inseguros, cercados de ruínas e abismos. Instaurada essa barbárie horrenda e dolorosa, os demonizados então praticarão suas virtudes por detrás das aparências pecaminosas e demoníacas. Aparências essas que são as franjas de seda. O homem, seco por dentro, voltará a ter sede de Deus e de Civilização. Após a sofrida experiência das tentações e reconquistados os bons hábitos, necessário se faz banhá-los de humildade para superarmos as renovadas estratégias do Diabo.

O bom escritor deve ser, antes de tudo, um atento ouvidor das tradições, histórias clássicas e alheias, bem como um colecionador de acontecimentos, fatos, lugares e tempos. Personagens e ações se repetem e se atualizam. O rico repertório de citações do contador nos traz saudades ao tempo em que nos empurra para a esperança.

Lopes al’Cançado Rocha, o Cristiano.