No tempo de antigamente, quando as empregadas domésticas passavam férias na Disney (pra desespero de gente como Paulo Guedes), Loprefâncio Caparros também cometia a extravagância de fazer seus passeios. O presente caso lhe foi contado por um guia turístico, quando visitou Recife. A narrativa aqui é feita em forma de cordel, um cordel afolosado, modesta homenagem à terra natal de La Belle de Jour do Alceu, o Valença.
Vou contar uma coisa procê
pedindo a devida atenção
não sei se é de seu conhecimento
já que o fato se deu por volta de mil e
seiscento
no tempo da colonização.
Corria 1630 quando uma tropa holandesa
aportou pras bandas de Pernambuco
botando todo mundo pra correr sob mira
de trabuco
suspendendo assim a dominação
portuguesa.
Instalou-se ali a Companhia das Índias
Ocidentais
E seu objetivo era exportar açúcar a
peso de ouro
sendo aquilo então uma raridade, um
tesouro
com os ‘camisas-laranja’ querendo cada
vez mais.
Para administrar aquela operação
de modo que tudo saísse a contento e não
fosse mal
julgaram por bem contratar os serviços
de um alemão
que respondia pelo nome de João Maurício
de Nassau.
Esse galego
era um cabra tinhoso, empreendedor, inteligente:
exportando açúcar, atendeu aos
interesses da Companhia
e para a cidade de Recife, cuidou de
fazer melhoria
deixando todo mundo contente.
Mas o ser humano, metido a cavalo do cão,
com o que tem nunca se satisfaz
estando sempre na contramão
não dá valor ao que ficou para trás.
Recife é uma cidade formada por ilhas
carecendo de pontes para ligar uma às
demais
sem as quais, pais não podem ver as
filhas
sem as quais, filhos não podem ver os
pais.
Maurício, cabra da pêia, quis uma ponte erguer
mas o dinheiro lhe faltou quando estava
no meio do caminho.
E aquela situação de rosca quase põe tudo a perder
com a mundiça a mangar sem dó
ou carinho:
- É mais fácil um boi voar
do que Maurício sua ponte terminar.
Aquilo mexeu com os brios do alemão
deixando-o mais vermelho que maduro
pimentão.
Falou: Eles hão de ver a obra terminar!
E assim ele fez com sacrifício a
construção
Até ficar pronta para inauguração.
- Não só vocês estão vendo a ponte
acabar
como terão oportunidade de ver um boi
voar -
Disse mais aquele atrevido fanfarrão.
Durante o dia, circulou com um boi pela
cidade
o boi do Melchior, conhecido pela
mansidão
despertando entre todos natural
curiosidade.
E todos começaram a se perguntar:
- Será que ele é mesmo capaz de fazer um
boi voar?
Maurício fez cobrar pedágio dos curiosos
moradores
inaugurando uma prática corriqueira
depois entre governadores.
(Arrecadou 20.800 florins segundo nota
de historiadores.)
Quando a tarde chegou, ele se recolheu
aos seus aposentos
e, tendo preparado de antemão um boi
empalhado,
fez com que ele deslizasse numa corda
até o outro lado
fato que deixou todo mundo tabacudo, abilolado.
Tinha Maurício, por experiência
europeia,
conhecimento do ditado que dizia:
“À noite, todos os gatos são pardos –
exceção pro angorá”.
Pode você perguntar: “De onde Maurício
tirou a ideia
de que naquele ditado do gato, angorá
não cabia?”
Ora, ele responderia, é preciso avaliar
as coisas com atenção
pois é dito e revisado que toda regra
tem uma exceção
e o gato angorá não está aí por aresia nem por enrolação.
Ele põe um ponto final nessa prosa
antes que comece a esfriar
contando as aventuras de um homem
que, mesmo comendo brocha, pôs um boi pra voar.
Vocabulário Pernambuquês: Afolosado:
frouxo / Galego: pessoa loura ou alourada / Metido a cavalo do cão: metido a
besta / Cabra da pêia: corajoso / Situação de rosca: situação difícil de sair /
Mundiça: povão, ralé / Mangar: zombar / Tabacudo: bobo, besta / Aresia: conversa
fiada, jogada fora / Comendo brocha: passando por apuros.
Etelvaldo Vieira
de Melo